04 Julho 2023
“Cerca de 40% das terras latino-americanas ainda estão nas mãos de indígenas, negros e camponeses, ou são áreas de preservação natural, portanto, inalienáveis de acordo com a legislação. É sobre esses territórios que o extrativismo avança, em toda a região. Tirar a terra dos povos é como tirar a vida deles, por isso eles a defendem com tanta veemência. E Jujuy é um exemplo brutal”. A reflexão é de Raúl Zibechi, em artigo publicado por Pelota del Trapo, 26-06-2023. A tradução é do Cepat.
Agora é Jujuy (Argentina), mas ontem foi o Peru, Chile e Brasil. E amanhã pode ser qualquer lugar onde a acumulação de capital pela expropriação dos povos e da terra for a principal forma de operação das multinacionais. Uma forma em que contam apenas as riquezas do subsolo, enquanto os seres humanos e não humanos são apenas um obstáculo ao enriquecimento do capital financeiro.
No Brasil, Lula não consegue cumprir a promessa de campanha de avançar na delimitação das terras indígenas, a que todos os governos estão vinculados pela Constituição de 1988, mas que nenhum, nem de direita nem de esquerda, cumpriu com rigor.
No Peru, a reacionária Dina Boluarte lançou as forças armadas e policiais contra os povos andinos para garantir a liberdade das mineradoras de levar as riquezas e deixar apenas destruição ambiental e social. As mais de cinquenta mortes por balas não incomodaram o governo nem os organismos internacionais que, quando lhes interessa, cacarejam pelos direitos humanos.
No Chile, o presidente supostamente progressista, Gabriel Boric, militarizou Wallmapu com um destacamento militar maior do que os governos anteriores, para defender as terras usurpadas por empresas florestais das comunidades indígenas e camponesas. Com a mesma mão que militariza os territórios mapuches, indulta os carabineiros pelos mais de 400 olhos explodidos durante a revolta de 2019, fazendo com que a instituição estatal tenha o maior apoio popular do país.
Sem falar de Chiapas, onde, sob o governo progressista de López Obrador, houve 110 ataques armados contra as comunidades pertencentes à região zapatista de Moisés e Gandhi, do Caracol 10, no município oficial de Ocosingo. Grupos paramilitares que contam com o apoio do partido governista através do governo do Estado de Chiapas.
Em Jujuy, trata-se da extração do lítio, para o que o governo provincial precisa vulnerabilizar os povos indígenas e suas mais de 400 comunidades que se opõem a serem invisibilizados pela nova Constituição provincial. O fato de que o governador Gerardo Morales seja genocida e ecocida, disposto a eliminar qualquer um para saciar sua fome de poder, não deve esconder de nós vários fatos importantes.
O primeiro é que ele pode se tornar o próximo vice-presidente da Argentina, por obra e graça de uma classe média que considera os índios como pessoas de segunda classe, ou seja, não os consideram seres humanos com a mesma dignidade que ela.
O segundo é que Morales faz parte do sistema político que se preocupa apenas em administrar o modelo e, neste sentido, não é muito diferente dos demais políticos, tanto da esquerda como da direita. O governo federal não quer, embora possa, intervir em Jujuy e acabar com a repressão, porque de fato e muito além de suas declarações, já militarizou boa parte dos empreendimentos extrativistas, a começar por Vaca Muerta.
O resto são declarações para ganhar alguns votos. Quem quiser acreditar que existem diferenças fundamentais entre macristas e kirchneristas deveria se perguntar por que nenhum dos dois lados tem a menor intenção de acabar com o extrativismo, a mineração e as monoculturas, a extração de ouro e lítio, a soja e as fumigações.
A única disputa séria entre os dois setores gira em torno de como enfrentar os setores populares: alguns apostam na domesticação com planos e uma boa dose de repressão; ao passo que os demais apostam em maior repressão e uma boa dose de planos. Como se vê, é apenas uma questão de proporção, pois os dois lados apostam na repressão e nos planos, simultaneamente.
Não há outra escolha senão resistir. A uns e outros. Com o tempo, os povos vão descobrindo que são apenas dois lados da mesma moeda. A do extrativismo, que não pode existir sem a militarização dos territórios, sem contaminar a terra e aniquilar os povos.
O modelo não tem limites. Os relatórios anuais do Instituto para o Desenvolvimento Rural da América do Sul, com o qual o Grupo de Estudos Rurais da UBA (Universidade de Buenos Aires) colabora, garantem que cerca de 40% das terras latino-americanas ainda estão nas mãos de indígenas, negros e camponeses, ou são áreas de preservação natural, portanto, inalienáveis de acordo com a legislação.
É sobre esses territórios que o extrativismo avança, em toda a região. Tirar a terra dos povos é como tirar a vida deles, por isso eles a defendem com tanta veemência. Eles não podem negociá-la. Não o farão.
Basta lembrar ao sistema político argentino que está brincando com fogo. A ameaça de extinção das comunidades maias foi o que as levou a se organizar no EZLN e decidir por um levante armado. Algo semelhante acontece no sul do Chile e no sul da Colômbia, assim como na Amazônia brasileira. Eles não querem a guerra, mas não a temem se a sua existência como povos estiver em jogo.
Amanhã, não digam que não sabiam.
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O extrativismo é a morte dos povos. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU