28 Novembro 2020
“Em vista dos acontecimentos dos últimos meses e o crescente número de pandemias – a Covid-19 é só uma das muitas causadas pelo capitalismo –, é essencial repensar as relações econômicas mundiais. A economia deve se subordinar tanto aos mandatos do planeta como às necessidades das sociedades humanas como parte da natureza”, escreve Alberto Acosta, economista equatoriano, em artigo publicado por Rebelión, 26-11-2020. A tradução é do Cepat.
“Não podemos esperar que pessoas como eu cresçam e sejamos quem fique responsável por tudo, é preciso agir agora” - Greta Thunberg, ativista
Brasil, janeiro de 2019: rompe-se uma barragem com águas tóxicas da mina Córrego do Feijão, uma das maiores minas de ferro do mundo. Resultado: mais de 250 mortos, destruição de dezenas de casas e do meio ambiente. Não foi um simples acidente, mas uma violação inocultável dos direitos humanos e dos da natureza. Quando se abre passagem a tais projetos sem incorporar o princípio da prevenção, sem assumir as previsões do caso, estes riscos também são assumidos.
E, como sempre, a lista de responsáveis diretos é longa. Em primeiro lugar, a mineradora brasileira Vale, a maior produtora e exportadora mundial de ferro, que já foi condenada judicialmente a pagar os danos que esse rompimento provocou e que é responsável por outro crime socioambiental semelhante na Samarco Mineração, ocorrido há cinco anos.
A gravidade é que existem empresas, com frequência do norte global, que carregam uma grande culpa pelo ocorrido, mas que não assumem responsabilidade alguma. Este é o caso da empresa alemã TÜV Süd, que meses antes da ruptura certificou a Córrego do Feijão como afirma. Ainda que a empresa com sede em Munique, Alemanha, tenha sido acusada este ano, ainda não foi realizado nenhum procedimento judicial.
Este caso não é único. Há empresas que administram projetos tremendamente destruidores do ambiente e com gravíssimos impactos sociais. Aqui, podemos citar o caso emblemático da Chevron-Texaco, no Equador, causadora de danos às comunidades indígenas e de colonos, assim como à natureza. É um caso muito conhecido inclusive pela sistemática e agressiva negativa da empresa em assumir suas responsabilidades.
Outro caso atual relaciona a empresa suíça Glencore, que administra – como parte de um consórcio internacional – a exploração de carvão em El Cerrejón, a uma das maiores minas a céu aberto do planeta e causadora de gravíssimos danos a humanos e não humanos, contaminando em particular o rio Ranchería, na Colômbia. Cabe lembrar que a Glencore tem uma péssima reputação por várias de suas atividades mineiras na América Latina e na África.
A lista de situações semelhantes é longa e até envolve muitas instâncias do mundo financeiro. De fato, não estranha encontrar nesta lista bancos e organismos multilaterais de crédito associados, direta ou indiretamente, a uma multidão de companhias estrangeiras – muitas transnacionais – que participam ativamente da dança dos créditos, em gigantescos projetos extrativistas, vendendo inclusive tecnologias obsoletas.
Há casos paradigmáticos de empresas internacionais que fazem qualquer loucura com o objetivo de negociar seus produtos, deixando os países “beneficiários” com pesadas dívidas externas.
Um exemplo é a construção de uma instalação termonuclear nas Filipinas. Foi construída nos anos 1970, mas em uma região de terremotos e, além disso, perto de um vulcão. A central nuclear, com um custo de 2,5 bilhões de dólares e que há tempo está rachando e desmoronando, ainda não alimentou sequer uma lâmpada...
E não podemos esquecer os enormes negócios que aproveitam situações aberrantes, como o emprego de trabalho escravo e trabalho infantil em países do sul global, ou o massivo consumo de agroquímicos e inclusive de produtos tóxicos proibidos, além de organismos geneticamente modificados que de um modo ou de outro são nocivos para toda forma de vida.
Aqui, cabe incluir a exploração mineral e petroleira, tremendamente destruidora do meio ambiente e de comunidades, assim como os incêndios na Amazônia, originados pela demanda dos países do norte global que continuam se enriquecendo e sustentando seu bem-estar à custa da miséria do sul.
Em plena era do capital globalizado, deveria ser indiscutível a corresponsabilidade dos comerciantes, credores, construtores, administradores e acionistas destes grandes consórcios. Mais ainda, se muitas dessas atividades estão acompanhadas, com frequência, pela corrupção e por violências múltiplas.
No entanto, na prática, não há instâncias onde possam ser apresentadas as correspondentes queixas. E mais, aqui, até a participação dos paraísos fiscais contribui para manter no anonimato e na impunidade capitais associados à destruição da vida humana e da natureza.
É hora de colocar as relações econômicas internacionais em seu lugar, ou seja, redimensionar tais relações, dar prioridade à satisfação das necessidades básicas das comunidades e sociedades – tanto em nível nacional, como local – e apenas em certos casos, por exemplo, para fortalecer a autonomia regional, permitir a importação de produtos como alimentos ou remédios de países próximos.
Como disse o economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946), em inícios dos anos 1930: “Eu simpatizo (...) com aqueles que minimizariam, antes que com aqueles que maximizariam, o envolvimento econômico entre nações. Ideias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens, essas são as coisas que por sua natureza deveriam ser internacionais. Mas deixem que os bens sejam produzidos localmente sempre e quando for razoável e convenientemente possível, e, principalmente, deixemos que as finanças sejam primordialmente nacionais”.
Em vista dos acontecimentos dos últimos meses e o crescente número de pandemias – a Covid-19 é só uma das muitas causadas pelo capitalismo –, é essencial repensar as relações econômicas mundiais. A economia deve se subordinar tanto aos mandatos do planeta como às necessidades das sociedades humanas como parte da natureza. E se o objetivo é deixar para trás a exploração da natureza para acumular capital, então isto se aplica ainda mais à exploração das pessoas.
Este desafio requer uma abordagem socioecológica e a capacidade de desmantelar a lógica atual de produção e consumo. É necessário romper com os mecanismos e engrenagens perversas do mercado mundial – sobretudo a especulação – e, ao mesmo tempo, promover a mudança: não é uma tarefa fácil. No entanto, caso não seja feita agora, as pandemias se multiplicarão afetando gravemente até mesmo aqueles que acreditam que podem sair imunes do dilúvio capitalista universal.
Neste empenho em repensar a economia global, emerge com vigor a demanda por um sistema internacional de direitos para humanos e não humanos, que estabeleça requisitos de devida diligência ecológica e social para toda organização, seja empresarial ou estatal, que participe do quadro internacional: comercial, financeiro, tecnológico. Um sistema que, no marco da Organização das Nações Unidas, incorpore aqueles tribunais que permitam impugnar qualquer controvérsia surgida nas relações econômicas internacionais e onde seja possível reivindicar o cumprimento das devidas responsabilidades.
Os atuais Tratados Bilaterais de Investimento, que surgiram de uma tentativa falida em estabelecer uma espécie de constituição econômica global que proteja os direitos dos investidores internacionais, confirmam a questão. O Acordo Multilateral de Investidores (AMI) – em inglês Multilateral Agreement on Investment (MAI) – foi discutido de costas para a maioria dos estados do planeta, na segunda metade dos anos 1990. Em pleno auge neoliberal, no marco da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), pretendeu-se tornar realidade este marco jurídico supranacional com alcance global.
As relações entre os Estados nacionais e as empresas transnacionais, caso o AMI tivesse sido aprovado, teriam estabelecido claros limites aos âmbitos do exercício da democracia, assim como aos direitos trabalhistas, às políticas sociais, à própria pluralidade cultural planetária, incluindo a relação com a Natureza. Nem é preciso dizer que o AMI não pôde ser aprovado pela resistência de amplos segmentos sociais, em vários países da própria OCDE, que entenderam com clareza os riscos que isto implicava.
A partir desta realidade, as grandes corporações transnacionais e os governos mais poderosos começaram a arquitetar e instrumentalizar outros mecanismos de proteção supranacional para os investidores estrangeiros por vias bilaterais. Trata-se de sistemas que sempre protegem o mais forte, ou seja, o capital, subordinando os povos e a natureza. Uma situação que é insustentável, caso não queiramos que continuem se multiplicando todos os tipos de pandemias produzidas pela destruição das relações sociais e ecológicas.
Por mais urgente que pareça, esta iniciativa não emergirá da atual estrutura de poder internacional. Nacionalmente também não é fácil, pois as empresas envolvidas em diversas relações econômicas internacionais se escondem perversamente nos potenciais riscos que sua competitividade correria, caso aceitem aquelas indispensáveis normas apegadas aos direitos para humanos e não humanos. Razão pela qual, nestas circunstâncias, os esquemas de responsabilidade adequados deverão ser construídos a partir de cada país, sobretudo a partir daqueles que contam com uma sociedade civil responsável e comprometida com a vigência dos Direito Humanos e os Direitos da Natureza.
A Suíça é um desses países. Conta com uma economia relativamente pequena, mas com uma inegável capacidade de influência transnacional. E conta com uma sociedade civil cada vez mais comprometida com a Consulta Popular sobre a Iniciativa de Responsabilidade Corporativa – Konzernverantwortungsinitiative -, que exige que as empresas com sede na Suíça também cumpram no exterior todas as normativas sociais e ambientais.
Os habitantes do país europeu têm a oportunidade de abrir um precedente efetivo e assim estimular outras iniciativas, como a Lei de Cadeia de Fornecimento – Lieferkettengesetz - na Alemanha, uma proposta de lei com a mesma marca, iniciativa que, com algumas limitações, já se cristalizou na França, no ano de 2017.
A aceitação da iniciativa suíça poderia ser significativa, inclusive em termos econômicos, pois permitiria a Suíça se apresentar como um país e com empresas cujos produtos são fabricados de maneira responsável, dentro e fora, tanto em termos de humanidade como da mãe natureza.
Passo a passo, de todos os cantos do planeta e de todos os níveis estratégicos de ação, estamos comprometidos a mudar o curso da história para que nossos netos e nossas netas não sejam as vítimas de tantas pandemias em curso e tantas mais por vir.
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É hora de colocar a economia internacional em seu lugar. Artigo de Alberto Acosta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU