Inácio de Loyola e o peregrinar por uma Igreja mais humilde, servidora e sinodal. Artigo de Gabriel Vilardi

Santo Inácio de Loyola | Foto: Vatican News

03 Agosto 2024

Como Inácio que era tentado a se deliciar com elevações espirituais que lhe distraiam do caminho apontado pelo Senhor (Aut. 55), possa também a Igreja com humildade e simplicidade renunciar às persistentes tentações de grandeza e imutabilidade que lhe assolam nesses tempos sinodais e assim avançar para o momento da tomada de decisão daquilo que foi discernido (eleição). Que a Igreja-Povo de Deus saiba encontrar o Senhor em todas as coisas, inclusive nas incertezas, instabilidades e tensões desse período que lhe toca viver. 

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

Há 500 anos Inácio de Loyola percebeu que as coisas não seriam como esperava e não poderia permanecer na Terra Santa como tanto sonhara. Seu desejo era viver ali onde Jesus de Nazaré viveu. Contudo, outros seriam os caminhos para o serviço ao Reino de Deus. Terminada sua peregrinação a Jerusalém, o fundador da Companhia de Jesus retornou a Barcelona (1524) e compreendeu que era preciso se preparar, se quisesse melhor ajudar as pessoas.

Dedicou-se dois anos ao latim, dando início a um longo percurso formativo que passaria pelas universidades de Alcalá e Salamanca, na Espanha, e culminaria em Paris, em 1535. Mesmo já tendo 33 anos, considerado velho para a época, o Peregrino retomou os estudos, com as aulas de Gramática dadas gratuitamente pelo mestre Ardevol e seu sustendo garantido pela benfeitora e amiga Isabel Roser.

Em tempos de um pontífice jesuíta a Igreja também vive um período de forte mudança de época e se encontra em uma encruzilhada, com temas candentes que precisam ser enfrentados a partir de uma outra perspectiva. Atento aos sinais dos tempos, o Papa Francisco convocou o Sínodo sobre a Sinodalidade, que já teve uma primeira etapa no ano passado e terá a sua segunda sessão em outubro próximo.

Com coragem, o papa deseja que a Igreja deixe-se conduzir pelo Espírito em um amplo movimento de escuta desde as bases. É verdade que em alguns lugares com mais resistência, principalmente do clero e de alguns bispos, mas o Povo de Deus tem falado. Dentre alguns apelos estão mudanças nas estruturas de governança da instituição, maior espaço para as mulheres e os LGBT+.

Para alguns grupos, minoritários mas poderosos, a tradição é imutável e monolítica. Falar de discernimento de novas estruturas eclesiais, da atualização da linguagem doutrinária e da evolução do magistério soa a escandalosas e inaceitáveis heresias. Esses setores e suas pesadas pressões desejam emperrar o processo sinodal e ameaçam desembocar em um resultado frustrante.

Diante desse cenário conturbado em que se desenrola o discernimento do Sínodo, pode a vivência do autor dos Exercícios Espirituais contribuir de algum modo? Inácio viveu em uma época em que o catolicismo também estava sob forte questionamento e a necessidade de reformas era urgente. Como um discípulo fiel e sempre “sentindo com a Igreja” (EE 352-370), o santo ousou se deixar conduzir “sabiamente ignorante” pelo Espírito.

Nesse longo caminho de discernimento empreendido, o jesuíta entendeu que buscar e encontrar a vontade de Deus implica em colocar os meios precisos para que esse processo possa acontecer. Nesse sentido, os Exercícios Espirituais, em sua anotação nº 5, observam que “muito aproveita ao que recebe os Exercícios, entrar neles, com grande ânimo e liberalidade para com o seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu querer e liberdade”. Ou seja, se não houver disposição nesse sentido, com uma mínima abertura, não há possibilidade de discernimento.

Um segundo aspecto experimentado por Inácio foi a importância da tomada de consciência dos limites e fragilidades próprias. Confrontar-se com os afetos desordenados é um passo fundamental nessa jornada para encontrar a vontade de Deus para a Igreja do terceiro milênio. O tempo da cristandade definitiva e felizmente ficou para a trás. Uma autoimagem grandiloquente e autorreferencial precisa ser humildemente purificada em um exercício permanente de “saída do próprio amor, querer e interesse” (EE 189).

De uma atitude voluntarista e que conservava alto grau de arrogância, o Peregrino entendeu que o Senhor lhe chamava ao abaixamento, para servir com humildade, como um simples servo. Diante do absoluto Amor de Deus, Inácio relativizou não só a si mesmo, mas também a própria “mínima Companhia” que queria fosse servidora (Const. 190) e jamais um fim em si:

“Eu me convenço que antes e depois sou todo impedimento. E isto sinto maior contentamento e gozo no Senhor nosso, por não poder me atribuir coisa alguma que boa pareça. E me convenço de que quanto mais uma pessoa estiver versada e experimentada em humildade e caridade, tanto mais sentirá e conhecerá até os pensamentos mais frequentes e outras coisas menores que o impedem e atrapalham”.[1]

Outro ponto central para Inácio de Loyola na sua caminhada de fé é a busca do magis que é o bem mais universal. O jesuíta sabia que a mediocridade e o comodismo não combinavam com o serviço ao Reino, nas mais variadas missões que lhe foram confiadas. Tal qual a Trindade que contempla o mundo (EE 102-109), a Igreja do século XXI para ser em saída precisa lançar um olhar amplo para o horizonte, sem se deixar conter pelos velhos preconceitos e pelas estreitas sacristias de sempre. Uma Igreja encarnada no coração do mundo e que testemunhe aí, com misericórdia, ousadia e profetismo, que o mal não possui a palavra final.

O santo espanhol queria estar disponível para ir aonde fosse preciso, sem as densas amarras de estruturas complexas e limitadoras. Uma Igreja madalena, que se coloca a caminho quando ainda é escuro e que ao invés de oferecer certezas e ensinamentos distantes da vida cotidiana propõe-se a ser corajosa testemunha da aurora que sempre vem. Uma Igreja-Povo de Deus, que, para além das hierarquias e dos rígidos ritos celebrativos, se reconhece como agente sociotransformadora da realidade duramente massacrada pela injustiça e pela desigualdade social.

Em um caminho de muitos percalços e incompreensões até fundar a Companhia de Jesus, Inácio não temeu os acidentes e os fracassos. Entendeu que repetir as velhas fórmulas e insistir no conhecido não cabia mais. A fidelidade ao projeto de Deus exige criatividade e liberdade interior, porque o Espírito não pode ser domesticado segundo os medos e as covardias de cada um ou de grupos de pressão, assim acreditava o Peregrino:

“Não sejais, pelo amor de Deus, negligentes nem tíbios. Procurai manter o fervor santo e discreto para trabalhar no estudo tanto de letras quanto de virtudes; que com um e outro vale mais um ato intenso que mil negligentes, e o que não alcança um frouxo em muitos anos um diligente consegue alcançar em breve tempo”.[2]

Diante das provocações oferecidas pela provada experiência do santo de Loyola seria importante que os padres e as madres sinodais, bem como a Secretaria Geral do Sínodo e seus respectivos assessores responsáveis por conduzir o processo sinodal pudessem se deter em um aprofundado exame de consciência individual e coletivo. Afinal, muitas pessoas que se encontram à margem e se sentiram mobilizadas nesses últimos anos correm o risco de se verem frustradas mais uma vez por absoluta falta de perspectivas de efetivas conversões de mentalidades e estruturas.

Alguns especialistas dizem que há uma probabilidade concreta de que se repita a decepção relativamente às mudanças eclesiais postuladas no Sínodo para Amazônia e nunca ocorridas. Várias das demandas mais ousadas do atual processo sinodal foram retiradas de discussão e transferidas para grupos de estudos criados pelo papa, sendo mais uma vez interditadas ou postergadas para sabe-se lá quando por insondáveis interesses contrários.

Quais são as resistências internas e os condicionamentos que impedem o transcurso de um discernimento mais livre e mais aberto? Quais imagens de Igreja não servem mais para as atuais “circunstâncias de tempo, pessoas e lugares” e precisam ser impreterivelmente abandonadas? Existe liberdade suficiente para avançar rumo a novas estruturas e respostas ou se está preso a modelos fossilizados e ultrapassados que cheiram a mofo? Caminha a Igreja para uma quase irrelevância nas questões sociopolíticas da sociedade, cingindo-se ao culto privado de seus membros ou está realmente disposta a assumir com profecia o seu Ensino Social, entre eles, o cuidado com a Casa Comum e a promoção da amizade social?

O Superior Geral dos jesuítas, Padre Arturo Sosa, SJ, conclamou a todos, certa feita, a não se paralisar pelos novos desafios:

“Devemos enfrentar a novidade, que é algo muito evangélico. Uma das coisas mais bonitas do Evangelho é contemplar como Jesus sai dos esquemas e obriga os outros a fazerem o mesmo. Alguns riem-se dele, outros sentem-se furiosos ou ameaçados, mas todos devem sair dos seus esquemas. É isso o que significa a Igreja em saída, que é capaz de enfrentar situações de um modo inédito, a partir das periferias”.[3]

Talvez tenha chegado um daqueles momentos cruciais da história em que os homens e as mulheres da Igreja terão que se decidir se de fato desejam seguir o Espírito sabiamente ignorantes, mas com liberdade e ousadia ou se, por medo e afetos desordenados, estão tentando enclausura-Lo de volta nas sacristias emboloradas. O momento parece exigir audácia e destemor sob pena de se desperdiçar uma oportunidade valiosa de optar por uma Igreja mais igualitária, servidora e testemunhal.

Como Inácio que era tentado a se deliciar com elevações espirituais que lhe distraiam do caminho apontado pelo Senhor (Aut. 55), possa também a Igreja com humildade e simplicidade renunciar às persistentes tentações de grandeza e imutabilidade que lhe assolam nesses tempos sinodais e assim avançar para o momento da tomada de decisão daquilo que foi discernido (eleição). Que a Igreja-Povo de Deus saiba encontrar o Senhor em todas as coisas, inclusive nas incertezas, instabilidades e tensões desse período que lhe toca viver.

Fugir dos conflitos inevitáveis significa apenas evitar se confrontar com a realidade e assim adiar as mudanças mais necessárias, pondo a perder todo o processo de discernimento em curso. Para aqueles que ainda vacilam conceda o Senhor a graça do “desejo de desejar” aquilo que seu Espírito inspira ao seu povo. Aos que não Lhe opõem impedimentos dê o bom Deus a graça da consolação e da confirmação do caminho de uma Igreja cada vez mais sinodal!

Notas 

[1] CASTRO, José García de (coord.) Escritos esenciales de los primeiros jesuítas: de Ignacio a Ribadeneira. Carta a Francisco de Borja, Roma, final de 1545, Epp I, 140, Obras de san Ignacio, 709.  Santander: Grupo de Comunicación Loyola, 2017, p. 149-150.

[2] CASTRO, José García de (coord.) Escritos esenciales de los primeiros jesuítas: de Ignacio a Ribadeneira. Carta aos jesuítas de Coimbra, Roma, 7 de maio de 1547, Epp I, 499, Santander: Grupo de Comunicación Loyola, 2017, p. 173.

[3] SOSA, Arturo. A caminho com Inácio: conversando com Darío Menor. São Paulo: Ed. Loyola, 2021, p. 96.

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