07 Outubro 2009
O que as mulheres têm a dizer da ditadura militar? Esse é um dos objetivos do evento Memórias Insubmissas: Mulheres, Ditaduras militares, Anistia que acontece na Unicamp, a partir do próximo dia 29. Lá, professoras como Margareth Rago irão tratar de questões como os 30 anos de anistia, o desenvolvimento do Feminismo no país e a memória das mulheres desse tempo sombrio no nosso passado recente. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, Rago destacou alguns momentos que foram marcantes para as mulheres que, ao longo do tempo, não foram ouvidas nos debates, análises e reflexões sobre a repressão militar. “As mulheres ficavam bordando a dor na tapeçaria ao invés de escrever e falar. Acho que fomos educadas para se manter em silêncio e o feminismo rompe com isso, mas existe toda uma tradição cultural que vem de séculos dizendo que as mulheres não têm neurônios e inteligência”, aponta.
Luzia Margareth Rago é historiadora pela Universidade de São Paulo e doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas, onde também realizou seus dois Pós-Doutorado e obteve, em 2000, o título de Livre-docência. Há 24 anos, é professora da Unicamp. É autora de Mujeres Libres da Espanha: documentos da Revolução Espanhola. (Rio de Janeiro: Achiamé, 2008); Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930 (São Paulo: Paz e Terra, 2008), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que fazer um evento que relaciona Mulheres, Ditaduras militares, Anistia?
Margareth Rago – Primeiro, porque estamos vivendo um momento especial, que é a comemoração dos 30 anos da anistia, com todas as discussões e questionamentos que isso tem trazido à tona. E, segundo, pela constatação de que as mulheres não estão aparecendo nesses eventos, como sempre. A intenção é dar maior espaço e visibilidade às mulheres, tanto que é um evento de mulheres falando das suas próprias experiências com outras mulheres que são historiadoras, também analisando estas experiências. Temos ex-presas políticas e ex-exiladas, como é o caso da Ivone Gebara e historiadoras como a Raquel Soihet, do Rio de Janeiro, a Graciela Sapriza, do Uruguai, a Susel Oliveira da Rosa, pós-doutora na Unicamp, e eu mesma.
Estamos em um universo feminino e feminista, refletindo sobre a questão da ditadura militar no Brasil e a questão da anistia. Na minha opinião, temos uma historiografia que é marcada por uma dicotomia muito forte. De um lado, praticamente todos os trabalhos que falam da ditadura militar no Brasil são escritos por homens e falam dos homens. De repente, tem um capítulo pequeno, uma nota de rodapé, que cita uma mulher e faz uma concessão, mas, em geral, não há isso. O interior do universo masculino, do partido, do sindicato, da política tradicional, muito acentuadamente é marcado por esta questão de gênero que não é explicitada. De outro lado, temos uma historiografia, já nestes trinta anos, que é uma história do feminismo, que tem as mulheres bravas e lutadoras, mas também um pouco fechadas em um universo muito feminino. Acho é um meio de campo pouco trabalhado e onde quero entrar. Tenho uma pesquisa que trabalha com esta questão, com estas mulheres que transgrediram, que abriram novos espaços, não necessariamente presas políticas, algumas são por acaso. A ideia é essa, abrir espaço para pensarmos a questão desta necessidade feminina que merece um olhar, porque a diferença é muito grande da maneira como foram tratadas, como viveram e como narram o pessoal.
IHU On-Line – Em relação à ditadura que o Brasil viveu, a busca da verdade e da justiça virou uma luta das mulheres?
Margareth Rago – Acho que sempre esteve no horizonte do feminismo esta questão. A história do feminismo do Brasil, desta onda que vem da década de 1970, vem de mulheres militantes, marxistas, ex-presas políticas, como a Amelinha, fundadora da União de Mulheres em 1981, mas que era do PCdoB e foi presa em 1972; e como a irmã dela, Crimeia Alice Schmidt de Almeida, que esteve na guerra do Araguaia e também foi presa nesses anos. E mais a adesão de mulheres que estavam exiladas, como a Danda Prado, filha do Caio Prado, que teve uma experiência totalmente ligada a essa questão.
Então, o feminismo brasileiro é um feminismo de esquerda e esteve altamente envolvido na luta contra a ditadura militar, não tenho dúvida nenhuma disso. Não acho que é uma questão de agora, mas uma questão que esteve presente. Por algum motivo, talvez nós mesmas não estivéssemos tão preparadas em termos teóricos, pois, acho que é uma questão de linguagem, de nós podermos colocar as coisas em termos da narrativa feminina, da especificidade do feminino que não é biológica, que é cultural. Ou talvez porque é difícil falar da dor e do sofrimento no caso das mulheres. Quando um homem conta suas dores, seus problemas na prisão, por exemplo, quando se lê o livro do Flávio Tavares, é tudo muito doloroso, mas ele pode falar. Quando uma mulher vai escrever um livro dizendo como foi estuprada na prisão, é uma questão muito delicada, muito dolorosa.
Esse fato é constatado não só no Brasil. A historiadora do Uruguai, Graciela Sapriza, também acha isso no Uruguai. As mulheres não contam que foram estupradas, pouquíssimas falam disso. E sabemos que as mulheres são estupradas fora da prisão aos montes, imagina na prisão completamente nas mãos de torturadores, que eram brutos, pessoas terríveis. Talvez por aí as narrativas femininas não tenham sido tão fortes. Ou talvez pela questão do silêncio feminino que é cultural, é histórico, tem séculos e séculos, as mulheres ficavam bordando a dor na tapeçaria ao invés de escrever e falar. Acho que fomos educadas para se manter em silêncio, e o feminismo rompe com isso, mas existe toda uma tradição cultural que vem de séculos dizendo que as mulheres não têm neurônios e inteligência.
Os grandes homens do século XIX, como Spencer, Darwin, diziam que as mulheres são um menino de dez anos na evolução das espécies, porque elas têm que acumular energia para parir, e o preço que isso custa é perda de neurônios. A ginecologia, quando nasce no fim do século XVIII e início do XIX, fundamenta incivilidade física da mulher, cientificamente. Há toda uma tradição cultural de opressão às mulheres, e não é à toa que o feminismo explode violentamente, pondo a boca no trombone, como dizemos popularmente. Acho que as mulheres têm muita capacidade de escrever, temos mulheres brilhantes, escritoras, pintoras, artistas e compositoras, mas são sempre muito silenciadas, ou pelo discurso historiográfico, pela família, ou por muitas estratégias de poder, controle e produção da submissão.
IHU On-Line – Como a senhora analisa o “narrar” a ditadura hoje?
Margareth Rago – Entendo que falar da ditadura, escrever sobre ela, trazer essas experiências é absolutamente necessário e é um ato político. Sabemos que os jovens desconhecem o que aconteceu num passado recente, sendo que as feridas ainda não estão cicatrizadas. Então, narrar tem uma dimensão, em minha opinião, de processar o luto. Quando se fala, se revive o trauma, se compartilha com o outro, se chora. Participei de alguns eventos como agora, em maio, em Florianópolis, em que as mulheres falaram de suas experiências na prisão, havia uma argentina, uma uruguaia, uma boliviana e umas brasileiras, todas choraram imensamente, foi uma comoção, porque a dor é muito grande. Existe esta questão que é preciso processar o que aconteceu, é preciso falar, entender o que foi. Isto em uma dimensão pessoal e coletiva também, porque são feridas do país, e o país tem que se acertar, tem que enfrentar sua verdade, porque se não ele não se encontra. Faz parte da memória coletiva enfrentar o seu passado, saber o que aconteceu e colocar a limpo isso, para ele poder elaborar isto, ou então não vira a página. Acho que psicanalistas podem explicar muito bem isto, mas funciona a nível pessoal e coletivo. Um ato político de denúncia, pois os jovens têm que saber o que aconteceu, não se pode romper e simplesmente cair num mundo, como não se tivesse passado, não tivesse acontecido nada, estamos em uma democracia, está tudo ótimo e maravilhoso, vamos em frente.
Este é um compromisso ético e histórico. Existe um compromisso com os que morreram. Acho que este é um compromisso ético com os que não podem mais contar o que aconteceu, e com estes corpos que não foram encontrados, tanto por estas pessoas como pelas famílias, como esta história que está acontecendo com a guerrilha do Araguaia. Até há pouco tempo, essa guerrilha não constava nas histórias do Brasil, não tinha documentos e ninguém sabia de nada. Os militantes que contaram, os que sobreviveram, não tiveram processo, não tem nem o processo penal para se encontrar e saber o que aconteceu. Acho que tudo isso é muito importante, inclusive para garantir que não aconteça mais, que esta história não se repita. E, para isso, as pessoas têm que tomar conhecimento dessa história, saberem o que aconteceu, têm que se indignar sim. As mulheres têm muita história para contar. Elas têm que falar o que foi a violência nas prisões, as violências sexuais, e também na militância. Em um dos artigos que publicamos na Revista Labrys, há um depoimento e, ao mesmo tempo, uma reflexão de uma ex-presa política, que é professora universitária hoje, Eleonora Menegucci de Oliveira, onde ela diz que, até para os militantes companheiros, elas tinham que provar que eram corajosas, e elas faziam a segurança com armas, e as pessoas não falam dessa história. Fica esta ideia de que as mulheres serviam cafezinho e que não pensavam a revolução, não eram militantes tão importantes quanto os homens. Por tudo isso que estamos fazendo este evento no dia 29 de outubro e, ao mesmo tempo, publicando esse dossiê na Revista Labrys, dedicado às mulheres feministas que foram presas políticas, ou não, como a Ivone Gebara, mas que foi mandada para a Bélgica para fazer outro pós-doutorado porque havia saído um artigo em uma entrevista na revista Veja, em que ela defendia o aborto. Ela, como teóloga feminista, foi muito frontal à estrutura hierárquica e patriarcal da Igreja. Ela é uma das grandes filósofas feministas contemporâneas.
IHU On-Line – Como a ditadura influenciou a construção do feminismo político no Brasil?
Margareth Rago – A ditadura, se pudesse, teria impedido. A ditadura não constrói nada, só destrói. Há uma luta contra esta destruição, mas a ditadura destrói tudo, porque significa o silenciamento, é o fim da esfera pública. As pessoas não tinham mais os pontos de encontros, de sociabilidade, de troca política, de reflexão. A ditadura é um atraso profundo na vida de um país. Pense o que a reflexão científica, filosófica e teórica foi atrapalhada pela ditadura. Pense o que foi essa desinformação da juventude hoje, que não teve contato com nada, não sabe de nada que aconteceu. Se tivesse sido criada em um sistema democrático, teria contato com as coisas, com o mundo, com os manifestos, conflitos e protestos. Mas pelo contrário, a ditadura só atrapalhou. Acho que o mundo floresce quando se tem liberdade, acredito na liberdade, e não acredito no poder e na dominação. Olha no nazismo o que aconteceu, olha a ditadura da Argentina. Imagina um jovem argentino de 20 anos que tem uma família e, de repente, ele descobre que a família atual tem um torturador que matou os pais biológicos. A cabeça deste menino não tem como ficar normal, é uma tortura, um trauma.
Então acho que não, que ditadura nunca mais. Tortura nunca mais. Repressão e violência nunca mais. Temos que afirmar a liberdade, compromissos éticos, a solidariedade, a crença na possibilidade de construir novas formas de existência, éticas, libertárias que não se signifiquem submissão, obediência ao outro, pois isso é uma renúncia de si, como explica Michel Foucault. O que é duro, enquanto historiadora, é olhar que temos uma tradição histórica maravilhosa, mas que foi detonada por interpretações que se disseram verdadeiras e abafaram tudo. Não conhecemos nem sequer alguns termos hoje. Por exemplo, parrésia, que quer dizer coragem da verdade. Foucault buscará isso no movimento dos cínicos, lá atrás, antes de Cristo, e você fica chocada, porque o cinismo hoje significa falsidade, não é? E os cínicos eram pessoas que apostavam numa vida verdadeira, transparente, despojada. Ou seja, o oposto. O que constatamos com isso? Que predominou uma cultura da guerra, masculina, machista, homófoba. Isso é uma perda muito grande. Ainda bem que podemos descobrir essas outras dimensões que estão presentes no nosso passado e são tão ricas.
IHU On-Line – Na Argentina, a memória da ditadura é muito viva, muitas vezes, para que esse passado não volte a acontecer. Como a senhora vê a questão da memória da ditadura no Brasil?
Margareth Rago – Antes de falar com você, eu liguei a televisão e apareceu uma senhora falando da filha – e apareceu a foto da filha – que foi morta na Guerrilha do Araguaia. A mulher está falando que é mãe, que ainda não encontrou o corpo e que há “tantos” desaparecidos políticos ainda. Eu levei um susto, porque, na Argentina, isso aconteceu faz tempo. Há muito tempo essas questões foram para a televisão lá! Aqui não. É claro que há muitas diferenças históricas. O país lá é menor, aqui é imenso. A questão lá envolveu muito mais gente, como todo mundo sabe. A questão não é quantitativa. Todo ato de violência tem que ser evitado, impedido. Eu não sei ainda entender as temporalidades. Mas acho que, na Argentina, foram muitos filhos desaparecidos. Todo mundo tem uma historia. A coisa bateu de uma maneira muito forte. Aqui a coisa foi muito dispersa. Vejo que há uma movimentação hoje no Brasil que na Argentina já aconteceu. Mas, de qualquer forma, isso é positivo.
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As mulheres e a ditadura militar no Brasil. Entrevista especial com Margareth Rago - Instituto Humanitas Unisinos - IHU