02 Março 2024
“Lentamente, impõe-se uma ordem de dominação dirigida pelas plutocracias em consonância com o poder de um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra neocortical, cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o grau de submissão e o conformismo social”, escreve Marcos Roitman Rosenmann, sociólogo, analista político e ensaísta chileno-espanhol, em artigo publicado por La Jornada, 01-03-2024. A tradução é do Cepat.
Não vivemos na democracia, se por isso entendemos uma conduta fundada na busca do bem comum, da justiça social e da igualdade. Existe uma contradição entre um projeto democrático e a manutenção de relações sociais de exploração. E não só no que diz respeito à exploração de seres humanos por seres humanos, mas também à exercida contra a natureza. Refere-se à degradação do nicho ecológico, à especulação alimentar, à apropriação dos recursos hídricos, às epidemias de fome produzidas por bloqueios, ao patrocínio de guerras, à privatização da pesquisa científica ou limitando o acesso a medicamentos e vacinas às maiorias sociais.
Todos os fatos enunciados, além de questionarem a existência de uma ordem internacional enraizada na paz, evidenciam uma deflação democrática. Neste contexto em que prevalece o capitalismo, devemos somar as instituições que há séculos sobrevivem, como o patriarcado, o racismo, as desigualdades econômicas, o poder das castas, a nobreza, os proprietários de terras e os mandachuvas.
Sem pensar em uma visão idílica da democracia, a realidade social nos leva a acreditar que o futuro da democracia é incerto, quando não contrário aos seus princípios. A origem da democracia, um modo de vida e de governo, encontra-se nas lutas sociais pelo reconhecimento dos direitos dos cidadãos em seu sentido mais amplo. A democracia busca, ao mesmo tempo, equilibrar o poder exercido pelas plutocracias e combater as desigualdades sociais e econômicas por meio da participação política na tomada de decisões. Em outras palavras, que os cidadãos decidam por plebiscito sobre a guerra e a paz, promulguem as leis, controlem os poderes de facto, possam ser eleitos, além de evitar os abusos de poder daqueles que gozam da representação popular.
A democracia é uma proposta de organização social e política. Supõe um programa para a vida em comum, um projeto no qual as prioridades sejam determinadas pelas necessidades coletivas que fazem com que a pessoa, um ser humano, tenha as necessidades básicas atendidas e uma qualidade de vida digna. Tudo isto envolve pensar em um nós coletivo.
Na democracia, cada decisão tem efeitos sobre o tecido social. Construir hospitais, escolas, proteger as crianças, punir a violência de gênero, promover o investimento público em obras sociais e infraestruturas faz parte da democracia. Seu contrário é aprovar uma redução na tributação para as grandes fortunas, elaborar leis antissociais que favoreçam a demissão livre, leis trabalhistas leoninas, limites ao gasto social, criminalizar o protesto social, entregar as riquezas naturais a empresas privadas, vender o patrimônio público aos capitais de risco, reduzir a maioridade penal e favorecer a desregulamentação do capital financeiro e bancário.
As medidas antissociais e os cortes nas liberdades democráticas são cada vez mais comuns, o que nos fala de um processo de oligarquização do poder. A situação de saúde democrática das sociedades atuais é crítica e o diagnóstico futuro não é encorajador. Lentamente, impõe-se uma ordem de dominação dirigida pelas plutocracias em consonância com o poder de um cibercapitalismo que aumenta o seu controle graças à guerra neocortical, cuja capacidade para anular a consciência e a reflexão aumenta o grau de submissão e o conformismo social.
O risco de involução política no planeta é uma realidade a curto prazo. O triunfo das direitas antidemocráticas e o ressurgimento de propostas castradoras dos direitos sociais são um indício a mais do renascimento do fascismo societal. Não se trata do triunfo de uma crítica aos chamados “excessos da democracia” levantados por Hayek, mas uma rejeição à democracia como forma de governo e de vida em comum.
A democracia está sendo atacada e tem aliados em setores sociais que mais deveriam lutar por ela. Renunciar à democracia como projeto societal supõe abrir mão da ideia de uma vida digna, carecer de um sistema de saúde, moradia, educação, ter acesso ao lazer, a uma aposentadoria justa e simplesmente fazer três refeições por dia. Com a desigualdade, qualquer projeto democrático é uma quimera.
Para percebermos o quão longe estamos de viver na democracia, basta citar o Relatório da Oxfam de 2023, ao apontar que apenas no biênio pós-pandemia (2020-2022), 1% da população mundial monopolizou dois terços da nova riqueza gerada em escala global, o dobro dos 99% restantes da humanidade. É cada vez maior a população mundial arrastada para a exclusão social, cuja existência se situa na fronteira do subumano.
Sem medo de errarmos, uma economia e sociedade de mercado construídas sobre a competitividade e a meritocracia destroem qualquer opção de forjar uma ordem democrática. O capitalismo, em seus 500 anos de história, não foi um exemplo em forjar um poder democrático. Contudo, foi em suas entranhas que as lutas democráticas ganharam protagonismo, constituindo barreiras à sua ação predatória.
No entanto, a luta é desigual. Multiplica-se a existência de partidos políticos cujos programas fomentam o ódio, o racismo, a xenofobia, o negacionismo e a necropolítica, ganham adeptos, e o mais preocupante, suas declarações são seguidas por milhões de pessoas. Personagens como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Javier Milei, Nayib Bukele, Giorgia Meloni governam ou governaram. São tempos difíceis.
O sucesso das políticas que levantam muros, a desumanização dos imigrantes, o uso da mão dura e o endurecimento das condenações são testemunho da insatisfação democrática. Mentir, enganar, sentir-se acima da lei, estuprar, sonegar impostos, rir das instituições, hoje, não têm consequências políticas. A sociedade não penaliza os comportamentos corruptos. Em conclusão: sem consciência democrática não há poder democrático.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A democracia, uma prática política em declínio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU