07 Fevereiro 2024
"A “religião” muitas vezes desempenha um papel muito clássico neste programa: estabilizar ideologicamente a retórica sistêmica. As sociedades europeias e mesmo americanas são significativamente seculares, mas as Igrejas ainda estão bem enraizadas também e precisamente nos grupos socioculturais que impulsionam a viragem pós-democrática", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Settimana News, 01-02-2024.
O “amanhecer” do modelo democrático, que hoje parece estar em declínio, é bastante remoto, e outrora as muitas correntes ideais (incluindo as duas Igrejas Cristãs Latinas - o que, pelo menos do ponto de vista histórico, é curioso dizer que o pelo menos) reivindicaram sua própria contribuição para esta história. Contudo, estreito muito o campo, limitando-o ao horizonte gerado pela Segunda Guerra Mundial e pelos Acordos de Yalta.
Desta forma, já fica esclarecido que esta história não tem sabe-se lá quais raízes “cristãs” ou mesmo humanísticas, mas sim surge de extermínios em massa, bombardeios de uma violência sem precedentes (e os “convencionais” nada tinham a invejar dos nucleares, pelo menos para quem as sofreu), divisões territoriais absolutamente cínicas.
Além disso, este tipo de democracia cresceu sob a égide nuclear dos EUA, que patrocinou simultaneamente várias ditaduras sangrentas; finalmente, a democracia não só tolerou, mas em certo sentido promoveu e abençoou ideologicamente, a desigualdade social sustentada, considerada necessária para apoiar o desenvolvimento econômico.
Além disso, o “contraponto” poderia começar precisamente a partir deste ponto: a (social-)democracia tornou possível, em alguns países, níveis de reequilíbrio de rendimentos desconhecidos na história da humanidade. E depois tudo o resto: conteve a violência do Estado, produziu mecanismos nem sempre ineficazes para equilibrar o poder e, em geral, uma qualidade de vida não alcançada por outras soluções.
Depois de 1989, alguns até viram nesse modelo “o fim da história”, ou seja, a conclusão da jornada da humanidade. Mesmo sem aderir a este delírio, as Igrejas Católica e Protestante, depois de o terem essencialmente rejeitado, tornaram seu este projeto de sociedade, muitas vezes com convicção, acreditando também que estava destinado a uma melhoria talvez lenta mas constante.
Contudo, não é improvável que este modelo fique exposto a uma crise com consequências que ainda não podem ser consideradas. A razão é que a opinião pública de muitos países acredita que outras fórmulas mais autoritárias podem garantir uma melhor qualidade de vida à maioria da população, com a qual se identificam aqueles que outrora seriam chamados de “massas populares”. Isto determina, na Europa, as propostas no poder em países como a Polônia, a Hungria e a Itália; poderá em breve ser o caso de França e, quem sabe, de toda a União. Acima de tudo, porém, há um Trump que aprendeu a lição: se aceitarmos o jogo “democrático”, teremos problemas. Melhor liquidá-lo o mais rápido possível.
Tal transição, obviamente, não pode ser considerada uma alternância normal dentro do esquema “antigo democrático”, mas antes constitui uma mudança de paradigma.
Se ignorarmos (assumindo que é possível...) a observação banal de que as "soberanias" acabam necessariamente por estar em conflito umas com as outras, elas apresentam uma retórica comum (ao estilo geral de Vannacci, variadamente modulada de acordo com gostos e oportunidades políticas), mas acima de tudo, um programa claro: demolição definitiva do Estado-providência, escolas destinadas a reproduzir as classes dominantes no poder, socialização exasperada de custos e perdas e privatização igualmente radical dos lucros. Ou seja, o programa de toda direita, mesmo democrática, ainda mais se autoritária.
A “religião” muitas vezes desempenha um papel muito clássico neste programa: estabilizar ideologicamente a retórica sistêmica. As sociedades europeias e mesmo americanas são significativamente seculares, mas as Igrejas ainda estão bem enraizadas também e precisamente nos grupos socioculturais que impulsionam a viragem pós-democrática.
No cristianismo ocidental, contudo, também encontramos impulsos críticos, por vezes motivados teologicamente em termos não triviais. Talvez as próximas fronteiras que virão não serão, por exemplo, entre católicos e protestantes, mas entre aqueles que, em geral, acreditam que a democracia é o contexto menos pior para a proclamação evangélica e aqueles que, em vez disso, pensam que a ideologia "Deus, pátria, família”, conduzem a um novo cristianismo.
Isso não significa que ainda resta muito tempo.
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As Igrejas e o declínio da democracia. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU