21 Março 2023
A formação de uma opinião pública livre dentro da Igreja pressupõe uma multiplicidade de centros como jornais, revistas, associações, interessados não só em fazer circular ideias, mas também em controlar quem governa, porque não é justo deixar a administração e governação de paróquias e dioceses sem controle, mas se deve exigir a máxima publicidade dos atos de governo internos à Igreja.
O artigo é de Dino Calderone, membro do grupo “In cammino: per le riforme di papa Francesco” [A caminho: pelas reformas do Papa Francisco], de Messina, na Itália. O artigo foi publicado por Viandanti, 28-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“O Estado da Cidade do Vaticano como forma de governo, a Cúria, é a última corte europeia de uma monarquia absoluta, a última. As outras já são monarquias constitucionais. A corte se dilui, e aqui ainda existem estruturas de corte, que é aquilo que deve cair.” Foi o que declarou o Papa Francisco na entrevista à Televisa, publicada no L’Osservatore Romano em 28 de maio de 2019.
Não sabemos se a vontade manifestada pelo papa de “constitucionalizar” a monarquia papal pode ser estendida também à Igreja como comunidade de fiéis, mas certamente “aquilo que deve cair” no Estado e na Cúria está intimamente relacionado ao tema da “democratização” da vida eclesial, que não nasceu com o Papa Francisco e com o atual caminho sinodal.
Em 1970, foi publicado “Democracia na Igreja”, um texto curto, mas denso, escrito a quatro mãos pelo teólogo Joseph Ratzinger e pelo sociólogo Hans Maier. O texto tem um subtítulo, “Possibilidades e limites”, que evidencia uma atitude de discernimento e de abertura, pelo menos parcial, dos dois estudiosos. Em 2000, o texto foi republicado com algumas atualizações e acréscimos pelos autores.
Esse livreto é um bom ponto de referência para continuar o debate iniciado há mais de 50 anos. Maier se propõe a discutir e experimentar quatro campos que estão em analogia entre Igreja e Estado: a constituição fundamental eclesial; o Estado de direito; a divisão de poderes; a colaboração dos leigos.
Para o primeiro ponto, escreve Maier, existe um “direito constitucional imutável” que é retirado da disputa dos partidos e excluído do âmbito das decisões democráticas majoritárias. De fato, é preciso ter em mente que, em uma democracia, não é possível votar sobre tudo e que há coisas que não só não podem como também não devem ser admitidas nas aos procedimentos de votação.
Essa é uma consideração essencial para poder compreender, pelo menos em parte, uma possível analogia entre Igreja e Estado. Por exemplo, o fato de a Itália ser uma república democrática indivisível impede que sejam submetidas a votação (no Parlamento ou através de um processo de referendo) tanto a forma republicana quanto a indivisibilidade da nação, mas não impede a existência de partidos que se referem à monarquia ou de quem (Liga Norte pela independência da Padania) propõe a secessão.
Mas, mesmo nesse âmbito, nem tudo é possível. O parágrafo segundo do artigo 75 da Constituição italiana especifica que o referendo não é admitido em algumas matérias (leis tributárias, orçamento etc.). Além disso, de acordo com o dispositivo XII da Constituição, “é vedada a reorganização, sob qualquer forma, do partido fascista dissolvido”.
Na Alemanha, o artigo 21 da lei fundamental estabelece a inconstitucionalidade daqueles partidos “que, pelas suas finalidades ou pelo comportamento de seus membros, tentam prejudicar ou eliminar o ordenamento fundamental democrático e liberal ou ameaçar a existência da República Federal da Alemanha”. No entanto, essas proibições absolutamente não impedem a discussão e o debate livre até mesmo sobre essas questões.
Em analogia com o Estado constitucional, é impossível para a Igreja, escreve Maier, “dispor do mandato e do testamento deixado por Cristo”. Aqui, porém, sobressai uma diferença notável e significativa: para a Igreja é impossível não só mudar o que é imutável, mas também poder discutir aquilo que é declarado imutável e definitivo como, por exemplo, os dogmas.
O cânone 752 do Código de Direito Canônico de 1983 estabelece até mesmo o seguinte: “Ainda que não se tenha de prestar assentimento de fé, deve contudo prestar-se obséquio religioso da inteligência e da vontade àquela doutrina que quer o Sumo Pontífice quer o Colégio dos Bispos enunciam ao exercerem o magistério autêntico, apesar de não terem intenção de a proclamar com um ato definitivo; façam, portanto, os fiéis por evitar o que não se harmonize com essa doutrina”.
Sobre esse ponto, o jurista alemão Bockenforde escreveu que esse dever de obediência é um elemento novo e pejorativo em relação ao antigo Código de Direito Canônico de 1917, para o qual “permanecem excluídas toda discussão e toda crítica que tenham caráter público, até mesmo sob a forma de debate científico” (Bockenforde, “Cristianesimo, libertà, democrazia”, Morcelliana: 2007, pp. 117-118).
O que deve cair, portanto, diz respeito apenas ao cânone 752? De modo mais geral, segundo esse estudioso, o direito canônico deve “reconhecer cada indivíduo como sujeito pessoal e autônomo, que tem o direito de ser ouvido (...) dirimir controvérsias com um juiz imparcial e independente (...) sempre fundamentar as sentenças, tanto jurídicas quanto administrativas. Sem esses pressupostos, o direito canônico não é ‘um ordenamento de direito’, mas um ‘ordenamento de poder’” (p. 120).
É preciso lembrar que termos-chave da eclesiologia conciliar como comunhão, fraternidade, sinodalidade, colegialidade, povo de Deus, participação, serviço não podem ser entendidos de forma redutivamente espiritual, mas devem se transformar em comportamentos concretos. Há âmbitos nos quais existem formas de democracia já atestadas pela tradição mais antiga que seria urgente retomar e desenvolver.
A primeira e talvez a mais urgente diz respeito à possibilidade de que o fiel individual possa se defender da arbitrariedade do próprio pároco, bispo, escritório curial. O princípio de origem medieval segundo o qual “o que diz respeito a todos deve ser tratado por todos” poderia interagir hoje de forma frutuosa com a existência moderna da opinião pública.
Pio XII, em 1950, em um discurso dirigido aos jornalistas católicos, declarou: “Finalmente, gostaríamos de acrescentar mais uma palavra no que concerne à opinião pública no âmbito da própria Igreja (naturalmente, nas matérias deixadas à livre discussão). Só podem se surpreender com isso aqueles que não conhecem a Igreja ou a conhecem mal. De fato, ela é um corpo vivo, e algo faltaria em sua vida se a opinião pública lhe faltasse: uma falta cujo demérito recairia sobre os pastores e sobre os fiéis”.
No documento pós-conciliar Communio et progressio, de 1971, lemos: “As autoridades responsáveis favoreçam e procurem que exista na Igreja, graças à liberdade de expressão e de pensamento, uma troca legítima de opiniões. Estabeleçam, portanto, as normas e condições necessárias a este fim” [n. 116].
A formação de uma opinião pública livre pressupõe uma multiplicidade de centros como jornais, revistas, associações, interessados não só em fazer circular ideias, mas também em controlar quem governa, porque não é justo deixar a administração e governação de paróquias e dioceses sem controle, mas se deve exigir a máxima publicidade dos atos de governo internos à Igreja.
Se o batizado não pode exercer o direito de avaliar as ações do pároco e do bispo e de dar a conhecer publicamente o que pensa disso, estamos diante de uma visão absolutista da autoridade, que não tolera a presença da opinião pública. Não se pode excluir da comunidade eclesial um debate sério e leal sobre tantas questões, até mesmo candentes, como se a origem divina da Igreja lhe garantisse a infalibilidade em nível histórico e humano. Isso seria uma verdadeira heresia, uma espécie de monofisismo eclesial que, da dupla dimensão da Igreja, capta apenas a dimensão divina.
Por exemplo, mais de cinco anos após a publicação da Amoris laetitia, em que ponto está sua implementação em cada diocese? O que os fiéis leigos das diversas Igrejas locais podem fazer para estimular a recepção dessa importante exortação apostólica?
Esperamos que tenham desaparecido totalmente os temores que impediram de acolher prontamente a proposta do papa de convocar um Sínodo para a Itália e que o atual caminho sinodal represente uma grande oportunidade de regeneração, também para derrubar aquilo que não ajuda a fraternidade e a liberdade no Igreja, começando pela liberdade de opinião.
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A opinião pública deve crescer na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU