05 Julho 2023
"Mais de dez anos depois da Primavera Árabe, aquela mudança parece muito distante. As comunidades cristãs parecem cada vez mais fechadas nos guetos e cada vez mais incapazes de sair deles", escreve Marco Ventura, professor de Direito Canônico e Eclesiástico da Universidade de Siena, em artigo publicado por La Lettura, 02-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nascido na Palestina, o cristianismo foi a principal religião do Oriente Médio por séculos. Os cristãos se tornaram minoria após a conquista islâmica e assim permaneceram sob o Império Otomano. Seu declínio numérico se acentuou no final da Segunda Guerra Mundial e ainda mais dramaticamente nos últimos anos. De um milhão e meio de cristãos que viviam no Iraque antes da intervenção estadunidense de 2003, sobraram 300.000. Do milhão e 100 mil na Síria antes da crise iniciada em 2011, restaram 400.000. Nos números, e para além dos números, já é concreto o risco que o cristianismo desapareça do Oriente Médio.
Um livro de Janine di Giovanni é dedicado ao fenômeno, publicado nos Estados Unidos em 2021 e agora lançado pela La nave di Teseo com o título La fede scomparsa. Il tramonto del Cristianesimo nella terra dei profeti (A fé desaparecida. O ocaso do cristianismo na terra dos profetas, em tradução livre). Correspondente de guerra estadunidense de origem italiana com 30 anos de experiência em conflitos do Oriente Médio e outros, a autora reuniu no volume materiais já objeto de suas publicações anteriores. A primeira reportagem sobre os cristãos no Oriente Médio da repórter saiu na Harper's Magazine com o título Vanishing, que mais tarde se tornou o título do livro de 2021. Suas outras matérias sobre o tema apareceram no Air Mail, Vanity Fair, Granta, The Critic e na New York Review of Books.
Di Giovanni divide o livro em quatro partes, cada uma dedicada a um país e período específicos, embora sua experiência em cada uma das quatro áreas se distancie por décadas: Iraque (2002-2019), Gaza (2019), Síria (2011-2020) e Egito (2019-2020). Os contextos e processos são diferentes, assim como são diferentes os cristãos árabes por denominações, tradições, teologias, ritos e disciplinas. No entanto, o fenômeno é geral. Vítimas de um clima generalizado de hostilidade, de sistêmicas discriminações legais, de repetidas ondas de violência de todos os tipos, mas também da crise econômica e social da região, os cristãos estão indo embora. O cristianismo desaparece. O desaparecimento contado pela autora, porém, não se limita à contabilidade da população.
Desapareceram os bairros onde cristãos e muçulmanos viviam juntos, às vezes até na mesma casa; desapareceu o tecido social que favorecia a convivência; desapareceu a elite cristã empreendedora e intelectual; desapareceram os edifícios, demolidos pelos inimigos; desapareceram manuscritos antigos, queimados. Acima de tudo, desapareceram as pessoas: muitas morreram assassinadas, muitas não aguentaram mais e foram embora. Além disso, mais perto da autora, desapareceram as testemunhas encontradas, muitas vezes não rastreáveis, e desapareceram os defensores dos direitos humanos, os colegas e amigos que morreram na guerra enquanto como ela tentavam documentar e contar a tragédia de indivíduos, famílias, povos e países.
O livro, explica di Giovanni, ganhou forma em 2020 durante a pandemia. Ela que tantas vezes havia se encontrado testemunhando a chegada da violência "como uma furiosa tempestade de areia" que devora “tudo no seu caminho”, foi abalada pela violência da pandemia, diferente, mas não menos repentina e furiosa. O trauma do isolamento levou a escritora a conectar sua própria fé à fé dos cristãos do Oriente Médio. Para ela como para eles, em existências tão distantes embora no fundo próximas, a fé cristã se resumiu na combinação do rito, “que tranquiliza nos momentos difíceis”, com um “sentido profundo de pertencer a algo muito maior e mais profundo do que o eu".
Na ligação entre a escritora, os desaparecidos e os sobreviventes, na ligação entre a fé e os dramas, o livro encontra a sua força. Ali está o centro de gravidade de uma reconstrução histórica e geopolítica que sem as vivências e sem a fé não teria autoridade. Nos últimos dois séculos, ao se tornar minoria - e uma minoria cada vez mais vulnerável - os cristãos do Oriente Médio contaram com proteções das quais se beneficiaram ciclicamente e das quais, no entanto, gradualmente foram sufocados. Aconteceu nos últimos dois séculos com o Império Otomano, com os protetorados coloniais franceses e britânicos, com os líderes árabes do segundo pós-guerra e com os ditadores dos últimos 20 anos. O aperto foi se intensificando aos poucos, com uma aceleração após as Torres Gêmeas e a invasão estadunidense do Iraque em 2003, enquanto cresciam a intolerância e a agressividade das massas sunitas, combustível para os projetos totalitários do Hamas na Palestina, da Irmandade Muçulmana no Egito e do ISIS na Síria e no Iraque.
Os cristãos compartilham com os muçulmanos a opressão geopolítica que impede o desenvolvimento, ou seja, aquilo que um funcionário das Nações Unidas na Faixa de Gaza chama de "o pé no pescoço”, no caso específico do Hamas, Estados Unidos, Israel, Egito e Autoridade Palestina. Mas para os cristãos é pior. Apesar das raízes milenares na região e da lealdade à causa comum, tornam-se o bode expiatório da degradação socioeconômica e são cada vez mais esmagados no jogo das potências regionais e globais – entre as quais Rússia e Irã – e, por fim, no cabo de guerra entre os islamistas e os ditadores velhos e novos, de Bashar al-Assad na Síria a Al-Sisi no Egito.
Como conta um empresário cristão do Cairo, "os cristãos do Egito foram reduzidos a peões – cordeiros sacrificiais, em certo sentido – na luta entre Al-Sisi e os grupos extremistas". Esses grupos, explica o homem, "tentam desfazer das afirmações de Al-Sisi de que ele estaria trazendo paz e segurança ao país" e atacam os cristãos para "irritar o governo" e preparar seu próprio retorno ao poder. Consequentemente, reaparece o antigo instinto daqueles que, sitiados, buscam proteção. Como afirma o diretor do Watan, jornal amplamente lido pelos cristãos egípcios, “a maioria dos cristãos se sente segura com esse regime. O que não significa que não desejem uma mudança".
Mais de dez anos depois da Primavera Árabe, aquela mudança parece muito distante. As comunidades cristãs parecem cada vez mais fechadas nos guetos e cada vez mais incapazes de sair deles. Destaca-se, a esse respeito, entre as vozes cristãs coletadas por Janine di Giovanni, a ausência de quem, justamente na época da primavera de 2011, exortou em vão os cristãos a arriscar profeticamente tudo para sair da sombra protetora dos tiranos. Sob o peso da história sagrada e profana, de mais brutal violência, de interesses geopolíticos, resta então a resiliência da fé, um rito que se renova – talvez após a restauração de um mosteiro saqueado – e um sentimento de pertença que não cede. Somos "pedras vivas", dizem de si mesmos os cristãos de Gaza, fazendo eco às palavras sobre o "edifício espiritual" da Carta de Pedro. "Quanto mais somos perseguidos, mais rezamos", completa um monge egípcio. “Não acredito que esse seja o fim da história”, protesta uma das muitas testemunhas ouvidas pela autora e acrescenta: “A história não acabou”. Talvez seja exatamente isso. Na fé da autora, na fé dos cristãos que ficaram e também daqueles que desapareceram, realmente "a história não acabou".
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Não há lugar para os cristãos nas terras do cristianismo. Artigo de Marco Ventura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU