29 Janeiro 2024
Em 5 de novembro de 1999, os tribunais estadunidenses sentenciaram contra a Microsoft, declarando-a um monopólio que sufocava a inovação. Seu fundador e ainda presidente, Bill Gates, começou a concentrar sua atenção na Fundação Bill e Melinda Gates e a mudar sua imagem de explorador para filantropo. O que aconteceu na sequência não surpreende, mas é narrado com muita dureza e detalhes no livro El problema de Bill Gates (Arpa, 2024), escrito por Tim Schwab, um dos poucos jornalistas que ousou investigar o bilionário e sua fundação privada.
A parte de marketing é bem conhecida: Bill Gates é o maior filantropo do planeta, doou bilhões de dólares, sua fundação salvou milhões de vidas e seu cérebro é capaz de prever pandemias, erradicar doenças e solucionar a fome.
O retrato de Schwab não é tão bonito: segundo ele, a fundação segue os passos da Microsoft e monopoliza a saúde pública mundial através do enorme poder – econômico e político – ostentado por Gates, enquanto sua opaca fundação “opera como uma farmacêutica” – uma fonte chega a afirmar que Bill Gates “tenta criar” a maior pharma do planeta – e é um dos mais importantes donos de propriedade intelectual. Há ainda mais: conflitos de interesses, gastos ineficazes de fundos – em parte públicos – e uma estratégia enviesada pela ideologia e a falta de experiência – nunca admitida – do próprio Gates.
A entrevista é de Sergio Ferrer, publicada por El Diario, 25-01-2024. A tradução é do Cepat.
Por que considera Gates e sua fundação tão prejudiciais à saúde pública global?
Em meu livro, apresento Gates como um estudo de caso de um problema maior relacionado à riqueza extrema. Quando permitimos que pessoas se tornem super-ricas – Bill Gates controla atualmente 120 bilhões de dólares de sua fortuna privada, além da dotação de 67 bilhões de dólares da sua fundação –, usarão esse dinheiro para fins políticos. A filantropia, da forma como é praticada por alguém como Gates, é poder político, como contribuições de campanha e o lobismo. Gates não está simplesmente doando dinheiro, está comprando influência.
Por meio da caridade, Gates pode comprar um lugar na mesa democrática de tomada de decisões a respeito de tudo, da política climática à saúde pública e educação. Reúne-se com nossos líderes eleitos e define as prioridades e gastos governamentais. Hoje, milhares de milhões de dólares de fundos públicos provenientes dos contribuintes vão para os projetos beneficentes preferidos de Gates. No entanto, temos muito pouca prestação de contas e transparência em relação ao que está fazendo. Para quem se preocupa com a democracia, Bill Gates representa um problema.
Apesar de todos os problemas descritos no livro, a fundação também realiza projetos e investe muito dinheiro. Você considera que seu saldo líquido é positivo ou negativo?
As atividades da Fundação Gates são muitas vezes difíceis de enquadrar na definição de caridade. Em muitos lugares, funciona mais como uma empresa ou um banco de investimentos do que como uma filantropia; mais como uma aproveitadora ou monopolista do que uma entidade humanitária. Acredito que está provocando mais dano do que bem, e não estou só. Está cercada de críticas, tanto de especialistas independentes como dos próprios beneficiados pela fundação. Organizações de agricultores em todo o continente africano, por exemplo, apelam hoje abertamente a Bill Gates para que pare com a sua cruzada benéfica, porque está provocando muitos danos.
Poderíamos, inclusive, questionar se Bill Gates merece o título de filantropo. Nos últimos 20 anos, a sua riqueza privada aumentou drasticamente. Ele afirma estar doando todo o seu dinheiro, mas continua acumulando cada vez mais riqueza. A fundação sustenta que quer criar um mundo onde ‘todas as vidas tenham o mesmo valor’, mas a crescente riqueza de seu presidente não é um símbolo claro da crescente desigualdade?
Como permitimos que acontecesse este monopólio na saúde pública?
Os meios de comunicação são um cúmplice muito importante na normalização do poder e da influência de Gates. As notícias sobre a fundação tendem a ser acríticas ou favoráveis, e muitos meios de comunicação recebem financiamento da organização, que doou mais de 300 milhões de dólares ao jornalismo. Estas duas coisas estão conectadas. Novamente, Gates não está doando dinheiro, mas comprando influência.
A Fundação Gates também gasta grandes somas de dinheiro em relações públicas e tem feito um excelente trabalho se apresentando como uma defensora da ciência, cujo trabalho é impulsionado por dados. O que não entendemos é que a fundação desempenha um papel desproporcional na forma como essa ciência e esses dados são vistos. Doou mais de 10 bilhões de dólares para universidades, e se você é um pesquisador financiado, tem pouco incentivo para morder a mão que te alimenta. Isto foi tão documentado que os estudiosos inclusive cunharam o termo ‘calafrio do Bill’ [do inglês, Bill Chill] para descrever este efeito.
Ao escrever este livro, tive grandes dificuldades em obter fontes que falassem em público, porque muitas pessoas temem consequências profissionais se criticarem Gates. Por que o humanitário mais celebrado do mundo também é tão temido? É uma das inúmeras contradições que definem Bill Gates.
Acredita que as teorias da conspiração sobre Gates, durante a pandemia de Covid-19, jogaram a seu favor?
Muitos jornalistas continuam publicando histórias que retratam Gates como a vítima de teorias da conspiração. Este tipo de cobertura gera muita simpatia por ele, mas a tarefa do jornalismo não é reconfortar os poderosos, mas, sim, responsabilizar o poder. Quantos dos jornalistas que escrevem sobre teorias da conspiração também estão investigando as críticas legítimas ao poder antidemocrático da Fundação Gates? Não muitos. Bill Gates pode ser visto como o beneficiário, não a vítima, das teorias da conspiração, por causa de toda a benevolência que esta narrativa gera por parte dos jornalistas.
Quais foram as consequências na opinião pública das falhas da fundação, durante a pandemia, e a defesa ferrenha de Gates das patentes de vacinas?
Durante o segundo ano da pandemia, a resposta de Gates falhou espetacularmente e os meios de comunicação começaram a informar. Alguns, inclusive, questionaram se as suas estratégias falidas estavam contribuindo para um ‘apartheid de vacinas’ para as pessoas mais pobres da Terra, a quem prometeu vacinar. Esse ciclo de notícias foi breve, já que a atenção logo mudou para o seu divórcio, seguido por uma série de acusações de má conduta em relação às mulheres.
É uma história importante, mas os jornalistas também precisam investigar a conduta da Fundação Gates, que se apresenta como defensora do empoderamento das mulheres. Muitos meios de comunicação continuam ansiosos em apresentar Bill Gates como um especialista em qualquer assunto, da saúde pública a pandemias e mudanças climáticas.
Gates influenciou a forma como vemos hoje a saúde pública global, mais interessada em soluções tecnológicas do que em atacar as raízes da pobreza e da desigualdade?
Gates não inventou a ideia de progresso através da inovação comercial, mas ajudou a normalizar esse modelo. Frequentemente, apresenta as farmacêuticas como organizações humanitárias porque estão colaborando com a fundação. Falta qualquer tipo de debate público que considere alternativas. Quantas mais vidas poderíamos salvar se tomássemos um caminho diferente daquele a qual Gates nos levou? E se desafiássemos o poder da indústria em vez de nos associarmos a ela, como faz Gates? Quantas vidas estão sendo perdidas quando seguimos as prioridades de Bill Gates, em vez de um processo democrático? O lema da entidade é que ‘todas as vidas têm o mesmo valor’, mas um lema mais preciso poderia ser ‘os mendigos não podem escolher’ ou ‘o mais rico tem a voz mais forte’.
Não duvido que Bill Gates realmente acredite que está ajudando o mundo, mas não basta ter boas intenções. Se você está exercendo poder, deve ser responsável. Ninguém elegeu Gates como autoridade em qualquer assunto, no entanto, exerce grande influência em muitos campos diferentes e não temos como responsabilizá-lo.
É um modelo perigoso dar às pessoas mais ricas da Terra as vozes mais fortes em nossa democracia. Centenas de outros bilionários já prometeram seguir os passos de Gates na filantropia, o que significa transformar a sua riqueza extrema em influência política. É um problema que precisamos abordar hoje, não amanhã, e Bill Gates é o ponto de partida.
Então, o que podemos fazer?
A questão não é fazer a Fundação Gates desaparecer, mas fazer desaparecer a riqueza extrema de Bill Gates. O mundo seria um lugar melhor e a nossa democracia seria muito mais forte, se nunca tivéssemos permitido que homens como ele acumulassem tanta riqueza obscena, mesmo que isso significasse a não existência de sua fundação hoje. Se tivéssemos regulamentado de modo aguerrido o poder de monopólio da Microsoft, Bill Gates não teria acumulado tanta riqueza. Se tivéssemos tributado de modo aguerrido a Microsoft e Bill Gates, forçando-os a pagar sua parte justa, isso também teria diminuído a riqueza e o poder de Gates.
Estas são escolhas políticas que fazemos. E podemos tomar decisões diferentes. Nos Estados Unidos, há um debate político crescente sobre a própria existência de bilionários, e devemos construir sobre esse impulso. Não podemos ser fatalistas. Devemos acreditar que outro mundo é possível e devemos lutar por esse mundo.
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“Para quem se preocupa com a democracia, Bill Gates representa um problema”. Entrevista com Tim Schwab - Instituto Humanitas Unisinos - IHU