Ontem vi uma sala de cinema lotada de brasileiros e brasileiras aplaudindo e se emocionando com Ainda Estou Aqui. O país precisa dizer o indizível, assim como fez Eunice Paiva ao longo de sua vida, para curar a ferida não cicatrizada dos mortos não enterrados da ditadura brasileira. É preciso dar um jeito meus amigos.
O artigo é de Alexandre da Silva Francisco, advogado, estudante do bacharelado e mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Poucos filmes trouxeram minhas memórias da infância à tona como Ainda Estou Aqui. Em que pese não ter vivido a década de 70, lembro-me de quando meu pai me levava ao centro do Rio no início dos anos 2000. Tudo era imenso: os prédios, as pessoas, as avenidas. Observava os homens de terno e gravata, as mulheres de salto alto, e achava tudo aquilo muito diferente da minha realidade. Nunca fui às praias da Zona Sul quando pequeno; meus pais diziam que era tudo muito caro e distante, e o metrô não chegava até o Leblon. Conheci a Zona Sul apenas depois de adulto, antes só via pelas novelas de Manoel Carlos. Só depois da faculdade entendi como era a divisão social carioca. E apenas hoje posso dizer que conheço um pequeno fragmento da família Paiva.
Walter Salles me transportou para a cena carioca da década de 70. A magia e a luz que pairavam sobre a família e a casa dos Paiva eram incrivelmente autênticas. A casa à beira-mar, estilo mediterrâneo com muros baixos, mostrava um Rio sem medo da criminalidade e das milícias. O encanto pelos Paiva é instantâneo; Rubens e Eunice formavam um casal extremamente amoroso e afetuoso com seus cinco filhos. Dançava-se ao som de Gil, Caetano, Gal, Os Mutantes, Tom Zé, Roberto Carlos, Juca Chaves, Tim Maia, Erasmo, entre outras lendas.
Mas, apesar de toda a felicidade, o regime que comandava o país era a Ditadura Militar brasileira, a sombra que a nação sempre quis esquecer.
Em uma bela tarde, como qualquer outra na residência da família Paiva, em 20 de janeiro de 1971, militares do CISA, sob ordens do Brigadeiro João Paulo Burnier, invadiram a casa de Rubens Paiva no Leblon. Os militares entraram pela porta da frente, fecharam as janelas, e a escuridão se fez presente. Rubens foi intimado a prestar depoimento. Não havia mandado, não se sabia onde seria prestado o depoimento, nem quem o havia solicitado. Não existia direito; a exceção reinava como regra.
Rubens recebeu os militares como hóspedes da família, subiu para o segundo andar para se trocar e acompanhá-los até o local determinado. Eunice demonstrou preocupação, mas não havia nada que pudesse fazer. Rubens desceu afirmando que voltaria para o jantar e saiu no carro dos homens que o levavam. O destino: DOI-CODI.
Eunice foi levada pouco tempo depois, ficou 12 dias no DOI só com a roupa do corpo, Eliana, filha do casal, ficou presa por 24 horas. Já Rubens nunca mais voltou para casa.
Família Paiva | Foto: Arquivo Pessoal
Segundo a Associação Nacional de Imprensa, a prisão estava ligada ao sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, ocorrido no ano anterior, quando setenta presos políticos foram libertados em troca do diplomata e seguiram para o Chile, como muitos exilados brasileiros.
Cecília Viveiros de Castro e Marilene Corona Franco, que traziam correspondências do Chile para diversas pessoas no Brasil, foram presas no aeroporto do Galeão, e uma das cartas era destinada a Rubens Paiva. Em depoimento ao MPF, Marilene contou que Burnier a ameaçou com uma arma para que ligasse para Paiva e dissesse que as correspondências haviam chegado. A viúva de Paiva, Eunice, recorda-se de que uma mulher ligou pedindo o endereço para entregar uma carta do Chile. Rubens não resistiu, preparou-se calmamente, apresentou os militares à esposa como "hóspedes" e saiu com eles em seu carro, acompanhado por dois policiais.
A vítima foi inicialmente levada ao comando da III Zona Aérea, onde sofreu torturas na presença de Cecília e Marilene, sendo posteriormente transferida ao DOI do I Exército, onde foi morta. Documentos oficiais registram a entrada de Rubens Paiva no DOI, incluindo uma lista de seus pertences, com anotações sobre cadernos que ficaram com o Major Belham.
No DOI, ele foi brutalmente torturado, segundo testemunhas como Marilene e o ex-tenente Antonio Fernando Hughes de Carvalho, membro de uma equipe de interrogatório. Marilene relatou que ouviu gritos de dor de Paiva, reconhecendo sua voz enquanto ele era questionado sobre pessoas próximas. Em dado momento, foi levada a uma cela individual e perdeu contato com ele.
Edson de Medeiros, outro preso, afirmou que no dia 20 de janeiro estava em uma cela com grades no térreo e ouviu gritos durante uma sessão de tortura. Os agentes, segundo ele, tocaram a música "Jesus Cristo" de Roberto Carlos para abafar os gritos. Mais tarde, viu dois recrutas arrastarem um homem ferido e ouviu lamentos vindos da cela ao lado. Horas depois, o corpo foi retirado, aparentemente sem vida.
O Tenente Armando Avólio Filho testemunhou o ocorrido, descrevendo em vídeo e em depoimento escrito que viu Hughes agredindo Paiva numa sala de interrogatório. Preocupado, levou a questão ao Capitão Ronald Leão, sugerindo que falassem com o Major Belham, mas desconhece se providências foram tomadas.
Leão confirmou o testemunho à Comissão Nacional da Verdade, mencionando o Major Rubens Paim Sampaio, do CIE, como envolvido na supervisão de Paiva. Paim Sampaio admitiu ter participado de operações clandestinas e afirmou ter sido informado sobre a morte de Paiva como sendo um enfarte, embora depois soubesse que o corpo fora ocultado com uma encenação.
O ex-comandante do DOI, General José Antônio Nogueira Belham, e o ex-integrante do CIE, foram denunciados por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa armada. Já o Coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos e os militares Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza são acusados pelos crimes de ocultação de cadáver, fraude processual e associação criminosa armada. Além das penas de prisão, o MPF pede que os denunciados tenham as aposentadorias cassadas e que os órgãos militares sejam oficiados para lhes retirar as medalhas e condecorações obtidas ao longo de suas carreiras.
Até o presente momento da escrita deste artigo, nenhum dos acusados foi responsabilizado pelos crimes.
Eunice Paiva e seus filhos | Foto: Arquivo pessoal
A casa após o desaparecimento de Rubens ficou completamente vazia. A escuridão tomou conta de tudo. Eunice evitava falar sobre o que havia acontecido próximo dos filhos pequenos. Tentava preservar as crianças de toda dor que o regime impôs a família. Não demorou muito para se mudarem para São Paulo, na esperança de viver dias melhores. Ingressou na faculdade de Direito. Conciliava a vida de mãe e de pai de cinco filhos com a rotina estudantil. Tornou-se advogada respeitada e se engajou em lutas sociais e políticas. Eunice combateu a política indigenista do regime até o final da ditadura, e tornou-se uma das poucas especialistas em direito indígena do país.
Em 1987, ao lado de outros parceiros, fundou o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA), ONG que atuou até 2001 na defesa e autonomia dos povos indígenas. Em 1988, foi consultora da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição Federal Brasileira.
Faleceu aos 86 anos, no dia 13 de dezembro de 2018, em São Paulo. Ela convivia há 14 anos com Alzheimer.
A história da família Paiva agora é contada nas telas de cinema do Brasil, competindo por espaço em meio a blockbusters estrangeiros em redes de cinema internacionais. Ainda Estou Aqui merece o Oscar, mas não precisa dele. Ainda Estou Aqui é um filme feito por brasileiros e para brasileiros, pois um povo que não conhece sua história, está fadado a repeti-la.
É preciso ousadia para contar a história do nosso país, do jeito que ela de fato aconteceu, sem medo da opressão daqueles que só querem o silêncio do povo. Rememorar o drama de Eunice e de tantas outras vítimas da ditadura de 64 é manter viva a lembrança da dor daqueles que nunca foram ouvidos.
Hoje, após 60 anos do golpe militar, o governo federal tem medo de realizar homenagens às vítimas para não ferir o "orgulho" do militarismo nacional; afinal de contas, vai que ele se aborreça novamente? Vai que surja outro 8 de janeiro?
A história de Eunice lembrou-me a de Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, morto pelo regime militar, contada em um dos melhores documentários brasileiros já feitos, Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho. A história de Elizabeth poderá ser melhor desenvolvida em um futuro artigo.
Ontem vi uma sala de cinema lotada de brasileiros e brasileiras aplaudindo e se emocionando com Ainda Estou Aqui. O país precisa dizer o indizível, assim como fez Eunice Paiva ao longo de sua vida, para curar a ferida não cicatrizada dos mortos não enterrados da ditadura brasileira. É preciso dar um jeito meus amigos.