16 Agosto 2023
É preciso estar a menos de 3 metros da pessoa, brincava o cineasta, que faria 90 anos. O jogo entre a realidade dura e a construção do sujeito ficcional era a chave. Só assim pode-ser resgatar as poeiras da existência, tornando-as memórias coletivas.
O artigo é de Cleonilton Souza, publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 11-08-2023.
Souza é doutorando em Educação na Universidade Federal da Bahia (UFBA) a partir de 2020, mestre em Políticas Sociais e Cidadania (2012), com licenciatura em Letras Vernáculas, ambos pela UCSAL (1994), e especializações em Design Instrucional (Senac-SP, 2018) e Gestão da Segurança da Informação (Senai-SC, 2009).
Há 90 anos nascia Eduardo Coutinho (1933-2014), um dos maiores cineastas brasileiros, reconhecido pela produção de documentários memoráveis, como Jogo de cena [1], O fio da memória [2] e Cabra marcado para morrer [3].
Eduardo Coutinho pode ser considerado o cineasta da dialogicidade, pois elaborou um conjunto denso de obras, estruturadas a partir de diálogos, o que o coloca entre os maiores documentaristas que o Brasil já teve, por ter um distinto estilo de fazer entrevistas. Para Coutinho [4], “a necessidade de ser ouvido é a mais profunda necessidade humana. Ser ouvido é ser legitimado”. E foi na luta cotidiana para legitimar o discurso do outro que Eduardo Coutinho construiu todo um acervo artístico aberto ao dialético e ao dialógico.
Se existia uma característica fundamental em Coutinho, ela era justamente a habilidade de estabelecer fluxos de conversas, em que o que sobressaia era a voz do entrevistado, deixando a voz do entrevistador em off. Coutinho sabia atribuir valor ao caráter responsivo da comunicação e dava ao entrevistado a possibilidade de ser e representar-se durante a peleja dialética da entrevista.
Saber dar voz ao outro, deixando a voz de quem pergunta em segundo plano, é um trabalho árduo, característica essa que todos educadores deveriam aprender para utilizar nos encontros com os educandos. Coutinho participa de uma proposta de comunicação (e de educação também) ao qual Rubem Alves [5], na segunda metade do século XX, chamava de “escutatória”, capacidade de deixar o outro ser ele próprio no momento da comunicação e desenvolver-se educativamente como ser humano, um ato de escuta sensível [6]. Filmes criados nesse contexto são narrativas de renovação e de esperança. Eles são o que Paulo Freire [7] chamava de “esperançar”, uma luta diária para não perder os rumos de uma vida melhor, e o que Raymond Williams [8] concebia como “recursos da esperança”, uma disposição orgânica de lutar por um mundo menos moribundo.
No campo das artes, aqui no Brasil, o cineasta Eduardo Coutinho produziu um conjunto denso de documentários que podemos considerar como elementos de esperança, por se revestirem como trabalhos que não se enquadravam como objetos culturais circunscritos de análise somente ao âmbito das artes cinematográficas, mas que se estendiam a outras áreas do saber humano.
Seria Coutinho um antropólogo querendo extrair o humano do humano? Um filósofo em reflexão ontológica sobre a vida? Um linguista estabelecendo jogos de linguagens? Ou um sociólogo observando as dinâmicas relacionais da vida em sociedade? Coutinho era tudo isto travestido sob a capa de artífice da sétima arte. Ele era bem formado na arte de escutar e sabia como poucos abrir espaços para o outro falar de si. Nos documentários do cineasta, havia audição com sensibilidade, uma forma requintada de permitir ao outro exercer o lugar de fala, quando esta concepção ainda não era pauta de debate público no âmbito do uso social da palavra.
A forma de Coutinho produzir documentários resultou em um estilo próprio de narrar histórias, convertendo-se assim em um modo de se relacionar alicerçado na escuta, em que o documentar, o colher e o registrar informações servem como motivos de produzir narrativas, um meio de estimular o outro a contar a própria história de vida, indissociando os elementos individuais das dimensões do coletivo. Nas narrativas construídas, as vozes em evidência são a dos subalternos e dos subjugados, de pessoas em estado de rebelião, tal qual negros fugidos quando davam fim à escravidão de si e adentravam as matas para cultivar a liberdade com os outros semelhantes.
Em Coutinho há muitos Carlos, há o Drummond, o gauche, que dá sensibilidade ao que faz; há o Lamarca, o rebelado, que não se contenta com o que vivencia entre os próximos e vai ao encontro dos inconformados; há o Marighella, que dá voz e ação aos oprimidos diante das desigualdades em todos os níveis e aspectos. O Carlos do Coutinho é o Carlos mediador de escutas e, quando chamado a se pronunciar, prostra-se em uma cadeira na condição de ouvidor, aquele que perscruta, deixando o outro florescer por meio do uso da palavra, do gesto, da hesitação e do silêncio. O entrevistado passa a ser o protagonista da história; ele é o arauto cinematográfico e se permite anunciar a própria identidade em um mundo de procriação de semelhantes desiguais. O outro, na concepção de Coutinho, é um ser de discurso, que se apropria da própria história, em fluxo de exercício realístico-ficcional de percepção de fora e de dentro, observando a si próprio a partir do acionamento da memória pessoal, que é memória histórica também. Um revistar-se ao mesmo tempo dolorido e prazeroso.
O entrevistador na perspectiva de Coutinho é um ser do intermédio entre a realidade dura da vida das pessoas comuns e a construção ficcional protagonizada pelos próprios sujeitos/autores/atores. Na impossibilidade de traduzir em narrativas roteirizadas a vida dos comuns, o homem e a mulher do povo vêm ao palco jogar para cima todas as poeiras de existências passadas, agora traduzidas pelas memórias.
Coutinho produziu o que não se comporta em enquadramentos, pois circulou entre a produção realística dos documentários tradicionais e o jogo ficcional das narrativas, instaurando um tipo de documentário distinto, fora dos padrões, ao estabelecer novas especificidades para a criação cinematográfica. A produção intelectual e artística de Coutinho elabora um modo diferenciado de observar a realidade, quebrando as barreiras entre quem narra e quem vivencia o real.
A escuta elaborada por Coutinho não pertence ao âmbito médico, de diagnosticar doença no corpo alheio, nem tão pouco pertence à escuta psicanalítica, preocupada em transbordamentos emocionais. É sim uma escuta socioantropológica que se viabiliza pela arte da narrativa cinematográfica, o que dá ao conjunto da obra do autor uma significação ímpar na história do cinema brasileiro.
No encontro entre o entrevistador e o entrevistado, é preciso haver proximidade física, de uma relação face a face como se os interagentes estivessem em posição de terem as próprias imagens capturadas como no modo macro de uma máquina fotográfica, um encontro de olho no olho para dar vida à conversação. Na entrevista, o intelecto, a emoção e o corpo se integram à rede de conversação, diminuindo o caráter inquiridor da entrevista, possibilitando a escuta sensível se manifestar. Segundo Coutinho [9], “Se você se posta à distância de três metros do seu interlocutor para não aparecer na imagem, você não está conversando com essa pessoa”. Na construção fílmica de Coutinho, o entrevistador é sublimado e não precisa aparecer, e quando o entrevistador precisa falar, a voz vem em off, pois, mais do que as perguntas, o que emerge na conversa são as respostas do entrevistado.
A comunicação pelos gestos dos entrevistados é capturada pela câmera, que vai apresentando as nuances do falante. O que não for perceptível na fala, vai-se revelando por meio dos olhares, dos sorrisos, das pausas, dos silêncios e das hesitações do entrevistado, trazendo para o espectador o máximo que se pode expressar do ato social do ser em estado de interação. Em Coutinho [10], “A presença do corpo humano emana uma coisa chamada voz. E a voz separada do corpo é uma tragédia.”. A fala no contexto da entrevista torna-se assim um ato social, um pronunciamento sobre o vivido expresso pelo humano na inteireza. Para Coutinho [11], o lugar de falar é do próprio entrevistado, pois “Eu não sou o porta-voz dos camponeses”. Então, que o homem e a mulher do povo falem e sejam arautos de si.
Em um passeio sobre a concepção de dialogicidade elaborada por diferentes estudiosos, de Paulo Freire (Educação) a Vilém Flusser (Comunicação), passando por Valentin Volóchinov [12] (Filosofia da Linguagem), é possível perceber o quanto Eduardo Coutinho conhecia por experiência a essência do diálogo, seja no momento que sorrateiramente foge do papel de entrevistado, ao ser indagado por uma entrevistada em Jogos de Cena; ao deixar o dilacerante soluço de uma entrevistada ser explicitado após o fim de uma sessão em As canções [13]; seja no momento de longo silêncio cedido a uma entrevistada em Edifício Master [14], para que ela possa se situar emocionalmente; ou mesmo quando ouve opiniões divergentes a dele, entrevistador, em diversos momentos dos documentários feitos.
Os documentários de Eduardo Coutinho são criações únicas, de difícil comparação entre uma obra e outra do autor. Foi assim que em Jogo de Cena, ele transgrediu a estrutura do documentário, elaborando entrelaçamentos entre o realismo e o ficcional; voltou-se para história da escravidão no Brasil, articulando o individual e o coletivo em uma análise de cultura, ao navegar entre a base e a superestrutura [15] em Fio da memória; mergulhou nas profundezas dos sentimentos do brasileiro em As canções; penetrou nos bastidores da vida cotidiana carioca, em Edifício Master; ressignificou o imaginário religioso brasileiro em Santo forte [16]; revistou dolorosamente os subterrâneos da ditadura civil-militar-empresarial brasileira em Cabra marcado para morrer; radiografou os movimentos dos trabalhadores brasileiros no final do século XX e início do século XXI em Peões [17].
Se no cancioneiro popular ficou famoso o verso O Brasil não conhece o Brasil [18], Eduardo Coutinho foi um dos intelectuais brasileiros que tentou escapar desse condicionamento social e buscou se entranhar na história da cultura brasileira, tendo como linha-mestra a práxis da dialogicidade para anunciar as identidades do que é ser brasileiro.
[1] Jogo de Cena, Rio de Janeiro, 2007, 105 min.
[2] O fio da memória, Rio de Janeiro, RJ, 1991, 120 min.
[3] Cabra marcado para morrer, Pernambuco, 1984, 120 min.
[4] Documentário 7 de outubro, São Paulo: Sesc, 2013, 73 min, direção de Carlos Nader.
[5] Escutatória, em As melhores crônicas de Rubem Alves, Campinas: editora Papirus, 2008.
[6] A escuta sensível na abordagem transversal, de René Barbier, em Multirreferencialidade nas ciências da educação (organização de Joaquim Barbosa), São Carlos: editora UFScar, 1998, p. 168-199.
[7] Dialogicidade, em À sombra desta mangueira, Paulo Freire, São Paulo: Olho D’Água, 2005, p. 74-82.
[8] Recursos da esperança, Raymond Williams, São Paulo: Unesp, 2015.
[9] Documentário 7 de outubro, São Paulo: Sesc, 2013, 73 min, direção de Carlos Nader.
[10] Alberto Dines entrevista Eduardo Coutinho – Observatório da Imprensa, 2013. Disponível aqui. Acesso em 10 jul. 2023.
[11] Cabra marcado para morrer [encarte do DVD do mesmo título], p. 15.
[12] Marxismo e filosofia da linguagem, Valentin Volóchinov, São Paulo: editora 34, 2017, tradução Sheila Grillo.
[13] As canções, 2011, Rio de Janeiro, 90 min.
[14] Edifício Master, Rio de Janeiro, RJ, 2002, 110 min.
[15] Base e superestrutura na teoria da cultura materialista, de Raymond Williams, em Cultura e Materialismo, do mesmo autor, São Paulo: editora Unesp, 2011, p. 43-68.
[16[ Santo Forte, Rio de Janeiro, 1999, 82 min.
[17] Peões, São Paulo, 2004, 85 min.
[18] Querelas do Brasil, composição de Maurício Tapajós e Aldir Blanc.
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A arte da entrevista, segundo Eduardo Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU