30 Março 2012
A retrospectiva brasileira do É Tudo Verdade 2012, "Coutinho: o Caminho até 'Cabra'", chega a seu ápice neste derradeiro fim de semana do festival, em São Paulo e no Rio, com a exibição da cópia finalmente restaurada de "Cabra Marcado para Morrer" (1984) e dois debates que marcam o reencontro entre Eduardo Coutinho com alguns de seus principais parceiros na ressurreição, há três décadas, do projeto "Cabra", originalmente ficcional e interrompido pelo golpe militar de 31 de março de 1964, e com os responsáveis pelo restauração digital pela Cinemateca Brasileira.
A reportagem é de Amir Labaki e publicada pelo jornal Valor, 30-03-2012.
"Cabra" volta a circular exatamente às vésperas do cinquentenário, a ser completado na segunda-feira, do assassinato no interior da Paraíba do líder camponês João Pedro Teixeira, ponto de partida do projeto original. Há quem acredite em coincidências.
A seleção de títulos do ciclo, destacando a experiência considerada por ele mesmo como "utilíssima" na primeira fase do "Globo Repórter", nos anos 1970, e a formação das mesas nasceram de intensas conversas com Coutinho. Preparando-me para mediar os encontros, encontrei declarações iluminadoras dele sobre seu primeiro clássico, feitas no calor da hora do lançamento, em 1984, e mais recentemente, quando do aparecimento dos principais livros dedicados a ele por Carlos Alberto Mattos (2003) e Consuelo Lins (2004). Abaixo, um pouco de "Cabra" por Coutinho.
Globo Repórter: "Foi uma experiência extraordinária. Aprendi a conversar com as pessoas e a filmar, aprendendo ao mesmo tempo as técnicas da televisão, de filmar chegando, filmar em qualquer circunstância, pensando em usar depois de uma forma diferente. Além disso, pela primeira vez na vida eu recebia um salário bom e pago em dia". (A Consuelo Lins)
Material do "Cabra" inacabado: "Na minha ingenuidade, o que eu queria era montar o filme, ver o que fazia daquilo. Foi a primeira vez que o Zelito Viana botou dinheiro em cinema. Pagou uma pré-montagem do material. Vimos que era incompleto, banguela, tinha plano fora de foco, problemas de lente. Pensávamos que poderíamos voltar em um ano ou dois, refazer essas cenas. Ficou aquele copião lá. Alguns amigos viram, todo mundo deve ter achado um horror. Creio que até o cineasta português Paulo Rocha viu uma projeção na cabine da Líder [laboratório]. Os copiões ficaram na minha casa, e em torno de 1970 eu dei para o David Neves guardar na garagem do seu pai, um general (Luiz Neves). Os negativos eu só tirei da Líder em 1975, ou seja, 11 anos depois, o que mostra a minha irresponsabilidade. Em 1975 é que voltou a ser possível pensar no filme. Eu fui à Líder e retirei clandestinamente o material e o depositei na Cinemateca do Museu de Arte Moderna [Rio]. Dali eu produzi a cópia 16 mm que exibi em 1981 à Elizabete e aos camponeses de Galileia". (A Carlos Alberto Mattos)
Objetivo: "Jamais quis fazer um filme que fosse uma análise do movimento camponês. Sobre as contradições entre os partidos e as tendências. Também não pretendi que as pessoas reconstituíssem o passado, simplesmente porque é impossível reconstituir o passado; quis fazer algo sobre a memória do presente, como me disse um espectador. Nunca tentei recuperar na fala delas a reconstituição da integridade do movimento camponês e suas contradições - que eram também contradições da sociedade. O importante era a memória delas, falando depois da anistia e diante de uma câmera. O que é, afinal, um filme histórico? Você pode recuperar integralmente o que aconteceu? Nunca. As reconstituições são sempre falsas". (A Ana Maria Galano, Aspásia Camargo, Cláudio Bojunga e Zuenir Ventura, Filme Cultura, 1984)
Fé: "Eu tinha pesadelos. Via outros filmes brasileiros e pensava que se não fizesse o 'Cabra' ia enlouquecer. Passei quase uma década assim, obcecado. Esse é um filme do qual eu posso falar na terceira pessoa. É tão pessoal que é como se eu não tivesse feito. Acho extraordinário, acho que vai durar no tempo. Muita gente queria que eu o exibisse em 16 mm, mas eu insistia em ampliar. Achava que ia bater forte em termos de política, em termos do que se fazia no cinema, de reatar com o passado de uma forma diferente em relação ao Cinema Novo. E, mais do que isso, eu achava que era um grande filme como documentário, em termos de linguagem. Porque se não for bom em termos de linguagem, um filme não dura politicamente. Eu tinha uma fé quase absoluta". (Mattos)
Importância: "A picada que o filme abre, a meu ver, não é tanto o fato de a equipe aparecer - isso se faz muito. O importante, a meu ver, é que certas informações de texto e da estrutura do filme servem para indicar as condições de produção da 'verdade'. Quer dizer, hoje as pessoas falam dessa maneira, numa determinada situação; no dia seguinte, de surpresa, podem falar de outra maneira". (Filme Cultura)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Coutinho e o caminho até "Cabra" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU