07 Fevereiro 2014
Foto: Divulgação/TV Zero |
Entrevistador discreto, que sempre procurou evitar o campo de visão de sua câmera, o documentarista Eduardo Coutinho surgirá de corpo inteiro em “Sete visitas”, dirigido por Douglas Duarte (“Personal Che”).
A reportagem é de Carlos Elí de Almeida, publicada na coluna "Cultura" do sítio do jornal O Globo, 06-02-2014.
Autor de documentários seminais do cinema brasileiro contemporâneo, como “Edifício Master” (2002) e “Jogo de cena” (2007), o cineasta paulistano morto no último domingo, aos 80 anos, foi convidado a entrevistar uma ex-boia-fria e um empresário — a produção prefere não revelar seus nomes nesta fase, porque ainda não sabe se o produto final contará com um ou com os dois entrevistados. Famoso por seu método particular de aproximação e conquista da confiança dos entrevistados, Coutinho é flagrado em ação, durante um longo tempo, exercitando seu método de conversação. Produzido pela TV Zero, “Sete visitas” foi rodado em dezembro, está em fase de finalização e talvez seja a última contribuição de Coutinho para o cinema. “Palavra”, o derradeiro documentário do diretor, com adolescentes cariocas, que está à espera de montagem, foi filmado um mês antes. Coutinho ainda realizou dois docs que seguem inéditos. Os filmes foram rodados em janeiro de 2013, para servirem de extras da edição comemorativa dos 30 anos de “Cabra marcado para morrer” (1984). Os dois saem em DVD no mês que vem.
— Sempre tive curiosidade a respeito de como o Coutinho entrevistava as pessoas. Queria, além de ouvir suas perguntas, vê-lo, saber que caras fazia, como reagia, como ouvia, como era o jogo complexo entre ele e quem estava diante da câmera. Por isso, decidi fazer um filme em que tanto o entrevistado quanto o entrevistador seriam filmados com igual atenção. E, mais que isso, entender como diferentes interlocutores interferem no comportamento da pessoa filmada — explica Duarte. —
A entrevista do Coutinho é um tour de force. Horas e horas de conversa em que pôde perguntar o que quis, sem pauta ou limitações. Ele foi muito generoso ao permitir que nós o tirássemos de sua zona de conforto, transformando-o também em personagem, filmando-o, de frente, fazendo seu trabalho. E reagiu à altura: interrompe a pessoa com quem conversa, discute, ri.
A seleção de entrevistadores do documentário teve um critério básico: pessoas que, de alguma maneira, lidassem com entrevistas em seu dia a dia e que, ao mesmo tempo, pudessem oferecer exemplos de diferentes tipos de conversa. Os dois entrevistados, descobertos ao longo de pesquisas feitas pelo diretor para outros trabalhos, são colocados frente a frente com um padre (Ricardo Rezende Figueira), uma repórter (Clara Becker), um psicoterapeuta (Moisés Groisman), uma escritora (Ana Paula Maia), um juiz (Fábio Uchôa), duas xamãs (Mônica Oliveira e Letícia Tuí) e um documentarista (Coutinho). A produção moveu todo seu cronograma para acomodar a agenda do arredio autor de “Cabra marcado...”. As filmagens foram concluídas em dezembro, logo depois que Coutinho terminou de rodar “Palavra”.
— Fiquei muito impressionado com o modo como ele optava por não julgar (o entrevistado). Ele escutava as histórias mais banais e as mais horríveis com a mesma disposição. E sem tabu: uma personagem confessava que já havia feito programas; ele perguntava por que valor. Ela dizia que havia abandonado a filha, e ele comentava: “Isso acontece”. Nada da experiência humana, mesmo a mais dura, lhe parecia alheio, mas tudo lhe soava interessante. Coutinho pregava e praticava a lei de que, de perto, todo mundo era normal — conta Duarte, ressaltando que “Sete visitas” “não é um filme sobre o Coutinho, mas um filme a respeito de uma arte que ele dominava como poucos”.
“Palavra” deixou 29 horas de material bruto
“Sete visitas” será editado por Jordana Berg, montadora dos filmes de Coutinho desde “Santo forte” (1999). Ela conta que ainda não sabe dizer se a morte trágica do diretor, ou sua ausência física, irá interferir de alguma forma no filme de Duarte, porque Coutinho era “um dos personagens do filme, que tem um dispositivo e uma dinâmica muito próprios”. Mas concorda que o documentário é uma oportunidade rara de conhecer a extensão do trabalho do documentarista como entrevistador. Para ela, o filme deixa claro o interesse de Coutinho por seu interlocutor — qualquer que seja ele. Os entrevistadores do filme de Duarte passam em média uma hora e meia com cada entrevistado; Coutinho ficou três horas e meia com cada um.
— Desde “Santo forte”, ele havia estabelecido a prerrogativa de filmar com duas câmeras; então, vez por outra ele aparece em seus filmes. O incomum, e que chama a atenção em “Sete visitas”, é vê-lo como protagonista, um entrevistador sob uma câmera desejando tê-lo em seu foco por tanto tempo — diz Jordana. — A gente consegue, por comparação com os outros entrevistadores, perceber o interesse do Coutinho por seus entrevistados. Os outros são algo superficiais, tangenciam seus interlocutores; o Coutinho não os abandona, mergulha em seus entrevistados, vai até o fim. Nos filmes que ele dirigiu, a gente até nota esse interesse, mas não o vemos gesticulando, seu rosto e seu corpo reagindo às respostas do entrevistados, e como ele conduz uma conversa dessas.
A morte do cineasta provavelmente também terá seu impacto sobre “Palavra”, o último trabalho que ele dirigiu e que seria retomado agora em fevereiro. Coutinho havia feito marcações para a edição do filme, um documentário sobre o universo dos adolescentes, a partir de 30 entrevistas com estudantes do ensino médio de escolas públicas do Rio. Essas seriam comparadas com as marcações da própria Jordana, e o corte final seria negociado entre os dois. Agora, o destino do projeto está nas mãos de João Moreira Salles, diretor da VideoFilmes, produtora de “Palavra”. Há 29 horas de material bruto filmado.
— Há um risco, embora pequeno, de que o “Palavra” não seja levado adiante. Mas, como trabalhávamos juntos há muito tempo, e nossa afinidade era muito grande, as marcações do Coutinho são bem parecidas com as minhas. Nunca será o mesmo filme sem ele, mas o que podemos fazer é chegar a uma forma inacabada possível — pondera Jordana, que assina a edição de outro trabalho inédito do cineasta, os dois documentários que ele filmou para o extra do DVD de “Cabra marcado...”.
Em janeiro do ano passado, Coutinho voltou à Paraíba para reencontrar Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, seus parentes e os camponeses que participaram dos conflitos por terra na região explorados no filme. Essas visitas resultaram em dois docs, “A família de Elizabeth Teixeira” e “Sobreviventes da Galileia”, em referência ao engenho que serviu de cenário para os confrontos.
— Havíamos decidido, junto com o Coutinho, lançar o DVD em março, lembrando os 50 anos do momento em que o projeto foi interrompido pelo golpe militar, em 1964, e os 30 anos da primeira exibição do filme pronto, em 1984 — detalha José Carlos Avellar, coordenador do DVD especial.
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O jogo de cena inédito de Eduardo Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU