18 Março 2024
"A sequência final do filme mostra Hirayama dirigindo sua van pelas avenidas majestosas de Tokyo, o sol ilumina seu rosto e o interior do veículo. A música que toca é Feeling Good de Nina Simone. Eis o arrebatamento. O protagonista deixa as lágrimas caírem de seus olhos. Começa mais um dia perfeito, no mundo perfeito, no emprego perfeito. A verdade é que a perfeição é uma idealização, ela só existe na nossa cabeça", escreve Alexandre da Silva Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Dias Perfeitos (2023), filme dirigido por Wim Wenders, concorrente ao Oscar de melhor filme internacional, parece ser uma experiência uníssona entre a crítica, que o descreve como um filme leve, calmo, feliz, contemplativo etc.
Tais adjetivos podem atingir a maior parte do público que é levado a assistir Dias Perfeitos, e que, ao saírem das salas de cinemas, conseguem ter essa sensação de serenidade que o filme passa. No entanto, infelizmente o mesmo não ocorreu comigo. Parecia que algo me incomodava. Vou discorrer melhor sobre as questões abaixo. Espero poder construir junto com o leitor um raciocínio crítico sobre Dias Perfeitos, de fundamental importância para os dias imperfeitos atuais.
De início, para não assustar ninguém, informo que, concordando com a maioria dos críticos, o filme é sem dúvida, uma obra-prima. Meticulosamente executado, a técnica de imersão, somada à passagem do tempo de uma rotina humana, é deslumbrante. Wim Wenders iluminou o dia de um faxineiro dos banheiros públicos de Tokyo, com uma poesia profunda.
Reconhecida a magnitude do longa, proponho agora uma reflexão crítica sobre a obra diante de uma percepção mais pós-moderna da obra. Embora eu quisesse evitar a denominação cética e pessimista, para não estragar a experiência de quem saiu leve e alegre da sessão, acho que a obra merece também um toque social e político mais aguçado. Não tem como saber se era esse o “tom” que Wim Wenders quis passar com sua obra. No entanto os momentos de conflito estão presentes, é impossível ignorá-los. A verdade é que cada um tem uma experiência cinematográfica única. Eis aqui a minha.
Hirayama (Kōji Yakusho) é limpador de banheiros públicos no Japão, não há qualquer demérito na atividade, sendo de fato essencial para toda a população de Tokyo, com uma exceção, sua irmã rica Mama (Sayuri Ishikawa). É nítido o olhar de desprezo de sua irmã quando vai até a casa de Hirayama, em seu luxuoso veículo (com direito a motorista particular) buscar sua filha. Mama, julga a casa, o bairro, a profissão, a pessoa de irmão por completo, do fio do cabelo ao dedo do pé. Hirayama mostra-se verdadeiramente incomodado com a situação. Quando a irmã sai levando a sobrinha do faxineiro, o coitado completamente humilhado entra em prantos, não aguentando a humilhação que acabara de sofrer.
Eis uma das questões, ao meu ver, sutilmente levantada por Wenders, a desigualdade social existente no Japão assim como em qualquer país capitalista do mundo. O problema da desigualdade muitas vezes serve de prerrogativa para que uma classe superior se aproveite daqueles que a mantêm no poder, como bem diria Michel Foucault. No Brasil isso é endêmico. Quase todos os dias vemos nas notícias episódios de entregadores de aplicativos, motoristas, faxineiros, atendentes, porteiros, entre outras profissões julgadas como “menos digna” por um senso comum perverso, sendo humilhadas por aqueles que acham que o dinheiro lhes dá o direito de exercer o papel de algozes.
Não posso deixar de ressaltar que às vezes esse poder é tão feroz que emerge situações de abuso latente na sociedade. O trabalho análogo a escravidão, cada vez mais escancarado nos principais veículos da mídia, é uma prova disso. Imigrantes com condições de trabalho desumanas que na esperança de melhores condições de vida se submetem a todo tipo de provação. Para além crimes de ódio, preconceitos, racismos, xenofobias, etarismos, capacitismos, transfobias, homofobias etc. Parece ter na disparidade de relações econômicas presentes no neoliberalismo capitalista uma fonte de ódio inesgotável. Quem vai fechar a torneira? A responsabilidade é de todos nós.
Falando em torneira, puxo a questão para a visível obsessão por limpeza de Hirayama, que vai até saunas públicas da cidade para banhar-se de forma categórica. Alguns veem a cena como um trabalhador em seu tempo de lazer “relaxando”, essa não foi a minha interpretação. Para mim, Hirayama busca expurgar seus demônios no local, purificando seu corpo através da rotina da higiene profunda, como resposta sintomática de seu ofício como faxineiros dos banheiros públicos de Tokyo. Eis alguns questionamentos que provavelmente nunca saberemos a resposta: será que Hirayama realmente está feliz em sua rotina? Será que aquilo de certa forma também não vem a incomodá-lo? Ou será que a humilhação de sua irmã sobre sua rotina pesa em sua consciência? A verdade é que só ele poderia interpretar seus conflitos, nós somos meros expectadores de sua vida através das lentes de Wenders.
É nítido no longa que Hirayama leva uma vida solitária, não vou utilizar a palavra solitude como alguns gostam de utilizá-la, pois me parece muito mais um eufemismo e romantização da institucionalização do individualismo capitalista do que qualquer outra coisa. É imprescindível nomear as coisas como elas são. Pois bem.
Já vimos que Hirayama foi rejeitado por parte de sua família por sua profissão, um faxineiro. Eis a crueldade máxima do ser humano. Será que Hirayama fazer faxina foi uma escolha do protagonista? Será que teve instrução suficiente para galgar um emprego melhor (no modelo de ensino japonês estafante)? Aliás, melhor na visão de quem? De sua irmã? E se ele for feliz com aquilo que faz? Mas será que recebe um valor adequado para viver bem trabalhando como faxineiro? Percebe-se a quantidade de inferências que é possível fazer das questões levantadas pelo filme, e que tais questionamentos mostram que o filme não é simples e leve, mas profundo e denso, eu diria que um tanto quanto pessimista.
Voltando para o título do tópico, a solidão é um problema voraz na sociedade pós-moderna. Corrói o indivíduo de dentro para fora. Parece que o sistema organizacional capitalista nos torna mais suscetíveis a esse isolamento monástico. Pessoas vivem no alto de seus apartamentos, ou em casa com muros imensos, isolam-se em seus carros blindados, a comida é entregue em casa, o relacionamento como diria Bauman, é líquido. Para que cinema quando existe Netflix? Para que comprar fitas quando existe Spotify?
Em que pese o esforço de Hirayama de permanecer de maneira analógica em um mundo hiperconectado, talvez chegue um dia imperfeito em que nosso protagonista não mais conseguirá comprar fitas na pequena e charmosa loja japonesa, ela será engolida pelo Spotify. O lucro falou mais alto. Sempre fala na sociedade capitalista.
A sequência final do filme mostra Hirayama dirigindo sua van pelas avenidas majestosas de Tokyo, o sol ilumina seu rosto e o interior do veículo. A música que toca é Feeling Good de Nina Simone. Eis o arrebatamento. O protagonista deixa as lágrimas caírem de seus olhos. Começa mais um dia perfeito, no mundo perfeito, no emprego perfeito. A verdade é que a perfeição é uma idealização, ela só existe na nossa cabeça.
Particularmente, o choro final de Hirayama não me pareceu feliz. Ele me provocou um misto de emoções como dúvida, incerteza, alívio, suspeita, curiosidade, tristeza. Mas a felicidade não veio à minha cabeça nem ao meu coração.
Hirayama para mim é um homem desperto, que, apesar de todas as frustrações e humilhações que sofre, sente-se bem com o que possui ou, ao menos, tenta acreditar nisso para evitar a realidade de um mundo cruel, desigual, preconceituoso e excludente.
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Será que os dias são realmente perfeitos? Artigo de Alexandre Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU