02 Julho 2013
A liberdade é uma coisa boa, não é? Nem sempre, argumenta a filósofa eslovena Renata Salecl. A liberdade de escolher entre um número ilimitado de opções de carreira ou marcas de café acaba se tornando um fardo. Nossa sociedade capitalista moderna é governada por uma "tirania da escolha".
A entrevista é de Stefan Schultz, publicada na revistal Der Spiegel e reproduzida pelo Portal Uol, 01-07-2013.
Eis a entrevista.
Salecl, na rede de fast-food Subway temos que tomar meia dúzia de decisões para poder finalmente desfrutar de um sanduíche. É isso que você quer dizer quando fala em suas palestras sobre a "tirania da escolha?"
Eu tento evitar lugares como o Subway, e se acaso eu acabe indo lá, sempre peço a mesma coisa. Quando falo sobre a "tirania da escolha", falo sobre uma ideologia que se originou na era do capitalismo pós-industrial. Ela começou com o sonho americano - a ideia do self-made man, que trabalha para subir a escada da pobreza à riqueza. Aos poucos, esse conceito de carreira se transformou numa filosofia de vida universal. Hoje acreditamos que devemos poder escolher tudo: a forma como vivemos, a nossa aparência, mesmo quando se trata do café que compramos, precisamos constantemente pesar nossas decisões. Isso é extremamente insalubre.
Por quê?
Porque nós constantemente nos sentimos estressados, sobrecarregados e culpados. Porque, de acordo com esta ideologia, é nossa culpa se estamos infelizes. Isso significa que tomamos uma decisão ruim.
E se fizermos a escolha certa?
Nesse caso, costumamos sentir que há algo ainda melhor escondido atrás da próxima esquina. Então, nós nunca estamos verdadeiramente contentes e relutamos em nos decidir por qualquer coisa.
"Não deixe que o homem comum decida. Ele não é inteligente o bastante." Esse argumento tem sido usado por autocratas durante séculos. Você quer dizer que eles estão certos?
Não. Eu não critico a liberdade política ou eleitoral, mas a perversão do conceito pelo capitalismo: a ilusão de que eu tenho poder sobre a minha própria vida.
Mas eu tenho esse poder. Eu posso decidir por mim mesmo o que eu quero, mesmo que esse pensamento me estresse.
Nem um pouco. Um amigo, que é psicólogo, contou-me sobre uma paciente uma vez: a mulher tinha boa escolaridade, um bom emprego, uma casa e um marido amoroso. "Fiz tudo certo na minha vida", disse ela. "Mas ainda não estou feliz." Ela nunca fez o que ela mesma queria, mas o que acreditava que a sociedade esperava dela.
Então precisamos melhorar em nossa busca pela felicidade pessoal?
Até isso é uma ilusão. A felicidade se tornou um parâmetro segundo o qual nos medimos. O mundo está cheio de revistas femininas que se esforçam para nos dizer o que nos fará felizes.
Está cheio de atualizações de status do Facebook dizendo-nos o quanto as outras pessoas estão fazendo de suas vidas. Há até índices que avaliam o quão felizes são certas nações. "Ser feliz" se tornou imperativo social. Se você não for, você fracassou.
Mas o lema também diz a todos que eles podem fazer suas próprias escolhas. Isso dá às pessoas um maior controle sobre suas vidas.
Sim, mas isso é apenas parcialmente verdadeiro. Nós ainda não podemos controlar as consequências que nossas escolhas trarão. Esse é o próximo passo. Não só queremos liberdade de escolha, mas também queremos uma garantia de que o que escolhemos será exatamente como imaginamos.
Por que estamos com tanto medo de apenas seguir o fluxo?
Porque cada vez que nos decidimos por alguma coisa, perdemos outra. Comprar um carro é um grande exemplo. Muitas pessoas não leem avaliações apenas antes de comprar o carro, mas continuam lendo depois para se certificar de que realmente fizeram a escolha certa.
Se eu não tenho escolha porque não tenho dinheiro para comprar nada, isso vai me fazer mais feliz?
Paradoxalmente, não. Um dos maiores ganhos do capitalismo é que até o escravo proletário se sente um senhor. Ele acredita que tem poder de mudar sua vida. Somos impulsionados pela ideologia do self-made man: trabalhamos mais, consumimos mais e, no final, consumimos a nós mesmos. As consequências são o esgotamento nervoso, a bulimia e outras doenças que são fruto do estilo de vida.
Por que nos tratamos tão mal?
Sigmund Freud já havia descoberto que o sofrimento nos dá prazer - de uma estranha forma masoquista. A tirania da escolha explora essa fraqueza. A cultura do consumo nos exaure. Nós sofremos. Nós destruímos a nós mesmos. E simplesmente não conseguimos parar.
Mas nós não somos realmente as vítimas. Afinal de contas, nós mesmos criamos este sistema e enquanto continuarmos consumindo, ele continuará existindo. Em última análise, o capitalismo apenas reflete a natureza humana.
Isso é verdade. Freud também disse que nós escolhemos nossas próprias neuroses. O capitalismo é a neurose da humanidade.
Há outros caminhos. Há um restaurante em Londres que serve apenas um prato e as pessoas estão fazendo fila do lado de fora para experimentá-lo. E uma empresa em Berlim que vende camisetas sem mostrá-las aos clientes antes.
Isso é uma estratégia de marketing inteligente. Com as crianças, você pode ver a mesma coisa. Se perguntar a elas no cinema ao que querem assistir, elas provavelmente ficarão confusas. Por outro lado, se você diz, pouco antes, "vamos assistir a James Bond", elas provavelmente vão dizer: "Não, mamãe, qualquer coisa, mas isso não". Se não existem limites, nós criamos os nossos.
Será que um dia seremos verdadeiramente livres?
Não. Mas podemos viver uma vida mais relaxada. Nós podemos aceitar que nossas decisões não são racionais, que estamos sempre condicionados pela sociedade; que perdemos algo cada vez que escolhemos outra coisa, e que não podemos verdadeiramente controlar as consequências de nossas decisões.
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"O capitalismo é a neurose da humanidade", diz filósofa Renata Salecl - Instituto Humanitas Unisinos - IHU