17 Setembro 2023
Quando Jason Hickel era criança e morava na África, o jipe em que ele e seu pai viajavam ficava com o para-brisa cheio de insetos. Hoje, os para-brisas de nossos carros chegam aos seus destinos praticamente intactos. O que era normal na infância de Hickel não é mais comum hoje. E a questão é que isso não é nenhum bom sinal.
A reportagem é de Mariángeles García, publicada por Yorokobu, 14-09-2023. A tradução é do Cepat.
Este antropólogo, economista, escritor e professor do Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental, da Universidade Autônoma de Barcelona (resumamos assim seu longo currículo), começa seu livro Menos es más. Cómo el decrecimiento salvará al mundo, escrito em 2021 e publicado em espanhol por Capitão Swing em 2023, com essa passagem de sua infância.
A alarmante redução do número de insetos no mundo denota um problema muito sério para a humanidade: sem insetos, o ciclo da vida fica alterado. O fato de estarem desaparecendo globalmente é um indicador – mais um – do colapso para o qual os seres humanos estão levando a natureza.
Hickel diz que seu livro não pretende ser apocalíptico. Sua intenção é mostrar a possibilidade de substituir um modelo econômico estruturado na produtividade e no crescimento ilimitado por outro “baseado na reciprocidade com o mundo vivo”. Ou seja, mudar o capitalismo pelo decrescimento.
O decrescimento ou decrescentismo é uma corrente econômica e de pensamento que defende “uma redução planejada do uso excessivo de energia e recursos para trazer a economia de volta ao equilíbrio com o mundo vivo de forma segura, justa e equitativa”, conforme definido por Jason Hickel em seu livro e defendido, entre outros pensadores, pelo economista e ideólogo francês Serge Latouche.
Sua proposição é reconceitualizar o atual sistema de vida e acabar com o conceito capitalista de crescimento infinito, sem qualquer meta, que, além de uma sobre-exploração de recursos, gera grandes desigualdades sociais.
Nem todos os seres humanos impactam o meio ambiente da mesma forma. Para os decrescentistas, são os países mais ricos do planeta que mais consomem recursos, limitando o acesso dos países mais pobres a esses mesmos recursos e o seu direito de crescer de forma igual.
Segundo os ideólogos do decrescimento, as desigualdades seriam reduzidas dando à população mais desfavorecida acesso aos instrumentos necessários para poder viver uma vida mais longa e saudável. É, portanto, uma questão de justiça social.
Reduzir esse consumo de energia implica simplificar a vida dos cidadãos, retornando ao que é pequeno e simples, ao essencial. Nas palavras de Hickel, “decidir quais coisas, de fato, precisamos (energias limpas, saúde pública, serviços essenciais, agricultura regenerativa e muito mais) e quais setores são menos necessários – ou destrutivos do ponto de vista ecológico – e devem ser drasticamente reduzidos (os combustíveis fósseis, os aviões privados, as armas e SUVs, por exemplo)”.
Contudo, o que alguns poderiam identificar como crescimento verde ou desenvolvimento sustentável é algo descartado pelos decrescentistas. Para seus apoiadores, são dois conceitos que não existem. A mera transição para energias verdes e limpas, que é para onde apontam as duas correntes, não é o suficiente para acabar com a sobre-exploração de recursos, muito pelo contrário.
Se não acabarmos com a ideia de crescer sem limites – o crescentismo –, continuaremos tendo uma demanda energética tão grande e a tal velocidade que as energias limpas acabarão se unindo às sujas. Significariam mais uma e não um substituto.
Para implantar os princípios do decrescimento é necessária uma mudança ideológica na sociedade. Seria preciso, portanto, acabar com os valores individualistas e consumistas e substituí-los por outros de cooperação.
Também obrigaria a mudanças na forma de estruturar a produção e as relações sociais. Uma medida seria a relocalização da produção, o que reduziria notavelmente o impacto gerado pelo transporte de mercadorias; e fomentar a reciclagem e a reutilização de produtos. Ou seja, acabar com práticas como a obsolescência programada e o desperdício a que nos habituamos.
Raúl González, cientista político e CEO da Ecodicta, plataforma que promove a moda circular, o aluguel de roupas e a venda de segunda mão para diminuir sua produção e fabricação, concorda com esta mudança de paradigma consumista.
“As vantagens incluem viver melhor, com menos; apreciar verdadeiramente produtos como a moda, esquecer a ideia absurda de consumir por consumir e acumular por acumular, por meio de modelos como o nosso, que se baseia em desfrutar a moda através de um guarda-roupa compartilhado”, opina.
“Decrescer, antes de tudo, significa evitar uma produção que nem sequer é utilizada e isso é até bom para as empresas, pois otimizar a cadeia de abastecimento e outros processos, através da IA, significa poupança de custos”.
Para Miguel Otero, um dos fundadores da plataforma de comparação de produtos e serviços financeiros SinCommisiones, a teoria do decrescimento é interessante porque resolve, ao menos de forma teórica, dois problemas que, em sua opinião, são dois cânceres de nosso tempo: a mudança climática e a desigualdade social. E entre outras vantagens, além das ambientais e sociais, acredita que esse sistema econômico alternativo fomentaria planos e investimentos a longo prazo.
“Um dos grandes problemas do capitalismo é a competição constante, que obriga empresas e Governos a sempre apostarem no curto prazo”, explica Otero. “Os investidores e a concorrência forçam a ter lucros no presente, renunciando a lucros futuros”. O decrescimento, ao contrário, é uma aposta a longo prazo.
Quando se fala em reverter o capitalismo e buscar a justiça social, com um compromisso claro com o público e o bem comum, é fácil pensar que o decrescimento tem uma ideologia e que esta, além disso, é progressista.
No entanto, como explica Raúl González, as origens desta corrente de pensamento residem, entre outros, em grupos apolíticos como o Clube de Roma, um laboratório de ideias, formado por cientistas, economistas, ex-políticos e industriais de 52 países diferentes, que foi criado em 1968 e que se dedica a analisar e debater problemas complexos que afetam todo o planeta.
Seu relatório de 1972, encomendado pelo MIT pouco antes da primeira crise do petróleo, intitulado Limites do Crescimento, teve várias atualizações posteriores.
A verdade é que, na era atual, o decrescimento costuma estar ligado a ideologias de esquerda. Aqui é que se situam, ao menos, seus atuais teóricos, como o já citado Serge Latouche, Naomi Klein, Nicholas Georgescu-Roegen, bem como os principais partidos a favor do decrescimento, como os Verdes alemães e nórdicos e as principais ONG como o Greenpeace, conforme esclarece González.
Não obstante, o CEO da Ecodicta acrescenta que “também existem movimentos ambientalistas e naturalistas de direita. Não por acaso a pessoa que estabeleceu os parques nacionais nos Estados Unidos foi Theodore Roosevelt, do Partido Republicano, e inclusive existem ideólogos da extrema direita francesa, como Alain de Benoist, que ganham cada vez mais força em discursos lepenistas. Sem esquecer que a maior parte da direita atual é negacionista, não mais em torno da mudança climática, que é inegável, mas acerca de sua origem antropocêntrica”.
Chegado a este ponto, cabe fazer uma pergunta: o decrescimento da economia é uma possibilidade real ou estamos apenas diante de uma utopia?
Se dermos atenção a Latouche, o dilema que enfrentamos no planeta é “decrescimento ou barbárie”. O decrescimento é, portanto, o único caminho que temos para salvar o planeta. E há cada vez mais vozes, como a do ensaísta, poeta, ambientalista e professor de Moral e Política da Universidade Autônoma de Madrid, Jorge Riechmann, que defendem a “revolução do empobrecimento”, como afirmou em uma entrevista recente ao jornal El Diario.
No entanto, esta corrente de pensamento também tem os seus opositores. Os críticos a este sistema entendem que o decrescimento é contrário ao progresso e ao desenvolvimento tecnológico, que são tão necessários para alcançar uma produção mais eficiente e para desenvolver as energias limpas.
Além disso, isso exige um investimento econômico que, sem crescimento, não poderia ocorrer. Portanto, quanto maior o PIB de um país, maior será o bem-estar do cidadão, e o decrescimento suporia, segundo seus opositores, um obstáculo para a qualidade de vida. Alguns, como o economista sérvio-estadunidense Branko Milanović, consideram que isto seria “a miserização do Ocidente”.
“Do ponto de vista teórico, claro que tudo pode ser viável”, opina Miguel Otero. E embora afirme que seria uma perspectiva desejável e muito interessante, é também verdade que é muito difícil de implementar e pôr em prática, se não impossível, principalmente porque envolve dois desafios muito difíceis de superar.
Por um lado, afirma o cofundador de SinCommisiones, é necessário um consenso global. “Escolher decrescer de modo solitário é um suicídio geopolítico. Por mais triste que seja, é a realidade. Imaginem que a Europa decidisse por conta própria estabelecer um plano de decrescimento e o resto do mundo não. Nesta situação, a Europa perderia muito peso em relação a outras potências econômicas e militares, que poderiam nos submeter aos seus caprichos, com o risco que isso acarreta para a qualidade de vida de um país. E deste desafio surge a questão: como fazer com que todos os líderes globais entrem em consenso para escolherem decrescer?”
Seria necessário, como opina Raúl González, que as elites pensassem em termos de bem comum e bem-estar, em sistemas verdadeiramente democráticos, que promovam a transparência, a participação cidadã etc., em que essas elites não estejam a serviço de poucos e de seus próprios interesses.
Por outro lado, explica Otero, a sociedade teria que assumir, em nível mundial, uma enorme mudança cultural e de valores, “tão grande que parece, a priori, inviável. Pessoas muito diferentes, com culturas diferentes e com um paradigma capitalista profundamente enraizado, teriam que entrar em acordo. Algo muito grande e sério teria que acontecer para que toda a população percebesse a necessidade de assimilar uma mudança tão drástica”.
Contudo, como afirmou Jason Hickel em um artigo respondendo às críticas ao decrescimento feitas por Milanović, “dado o que está em jogo na crise que enfrentamos, devemos estar abertos a novas ideias”. Ainda que soem muito utópicas e irrealizáveis, como é aprender a viver com menos.
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Decrescimento, a utopia que pode salvar o planeta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU