Quando uma máquina originalmente desenvolvida para usos em infraestrutura é usada para destruir casas, plantações, cidades inteiras e até mesmo pode ser equipada com metralhadoras e lançadores de granadas no topo de sua cabine, é imperativo nos questionarmos sobre que tipo de racionalidade é essa que permite que tais usos sejam concebíveis, aceitos e tolerados.
“A pergunta que a Filosofia Política deve formular para pensar nosso presente de forma crítica e não conformada com a exceção tornada regra é como descolonizar as estruturas de poder que transformam máquinas de construção em instrumentos de genocídio.” A ponderação é de Márcia Rosane Junges, professora da graduação e pós-graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, jornalista da equipe de comunicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
As cifras são brutais e incontestáveis. Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU e publicada em 23 de julho de 2025, Arlene Clemesha recuperou os dados do genocídio conduzido por Israel em Gaza, destacando que já se completavam 656 dias de um drama humanitário cuja desumanização é usada como arma de guerra. A pesquisadora mencionou o relatório do Escritório de Mídia do Governo em Gaza, que marcou os 650 dias da guerra de Israel contra a Palestina, apontando números que demonstram uma dimensão inexprimível por adjetivos: mais de 67 mil mortos e desaparecidos, incluindo mais de 19 mil crianças (sendo 953 bebês) e 12.500 mulheres. Entre as vítimas, 1.590 profissionais de saúde, 228 jornalistas e 777 funcionários de ajuda humanitária. Clemesha também trouxe dados da rede britânica Islamic Relief, segundo os quais, em julho daquele ano, um palestino era morto pelas forças israelenses a cada 12 minutos, totalizando cerca de 119 mortes por dia, tornando aquele mês o mais letal desde janeiro de 2024.
Lâmina frontal do trator de esteira D-9 tem grande potencia destrutiva | Foto: Zachi Evenor | Wikimedia Commons
As mais de 125 toneladas de bombas lançadas pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) sobre o enclave palestino, bem como os explosivos e combates em terra destruíram quase 90% do território, contabilizando ainda incêndios provocados propositalmente. Entretanto, boa parte do colapso de Gaza e do sul do Líbano também ocorre pelo uso de máquinas pesadas feitas inicialmente para trabalhos de infraestrutura, como o trator de esteira blindado D-9 (disponível aqui), fabricado pela empresa norte-americana Caterpillar.
Também conhecido como Bulldozer (retroescavadeira, em língua portuguesa), o D-9 “moldou a face da guerra”, afirmou o jornalista israelense de direita Yinon Magal em fevereiro deste ano. Na reportagem de Meron Rapaport e Oren Ziv, publicada na Revista +972 e reproduzida por CTXT, há informações de que comandantes em terra decidiram “ordenar a destruição do maior número possível de edifícios em Gaza, mesmo na ausência de diretrizes militares formais dos comandantes seniores.” Nesse contexto foram expulsos milhares de moradores e demolidas suas casas com o uso da potente lâmina frontal do D-9. Assim, desapareceram do mapa as comunidades de Beit Hanoun e Beit Lahia. Quando a guerra acabar, não haverá para onde voltar. A engenharia do caos opera, eficaz, na destruição de cidades que um dia abrigaram famílias, sonhos, trabalho, vida. A máquina projetada para o uso em obras de infraestrutura assumiu o papel oposto, o de inviabilizar e colapsar residências, estradas, prédios privados e públicos daqueles que são considerados inimigos.
Apelidado pelas FDI de Doobi, que em hebraico significa urso de pelúcia, o D-9 começa a ser fabricado pela Caterpillar a partir de 1954. Desde 1980 vem sendo modificado pelas FDI para uso militar, com a blindagem da cabine e até mesmo a instalação de metralhadoras e lançadores de granadas no topo da máquina. Uma versão mais recente pode, inclusive, ser operada remotamente.
Muito mais do que um implemento para uso em obras de infraestrutura, o D-9 converteu-se em uma máquina de guerra pelo interesse específico das FDI. De acordo com informações da Wikipedia, em sua última geração, o D9R “possui potência de 460 cavalos (338 kW) e força de tração de 71,6 toneladas métricas (cerca de 702 kN). Seu peso total pode chegar a 50 toneladas. A cabine é equipada com vidros à prova de balas e pilares reforçados, complementados por blindagem tipo gaiola, que impede que granadas lançadas por foguete, mísseis antitanque e foguetes se alojem na estrutura da cabine.” Versões antigas seguem em operação sobretudo nas forças de reserva. Os valores de um modelo usado podem atingir R$ 500 mil. No site da empresa o preço é informado sob consulta (disponível aqui).
As FDI empregam o D9 em tarefas eufemisticamente chamadas de engenharia de combate (disponível aqui): “terraplenagem, escavação de fossos, construção de barreiras de areia e fortificações, resgate de veículos blindados de combate presos, tombados ou danificados (junto com o M88 Armored Recovery Vehicle), limpeza de minas terrestres, detonação de explosivos e artefatos explosivos improvisados, manuseio de armadilhas, remoção de obstáculos no terreno e abertura de rotas para veículos blindados de combate e infantaria, bem como demolição de estruturas — inclusive sob fogo.” O desvio de função do equipamento vem sendo questionado há décadas, nos diferentes conflitos e contextos nos quais foi utilizado.
Organizações de direitos humanos, coletivos sociais e analistas de investimentos éticos têm questionado a venda de tratores D9 da Caterpillar para o exército israelense, que os utiliza nos territórios palestinos ocupados. As frentes de indagação são inúmeras, com repercussão mundial que vai desde os meios de comunicação tradicionais, até a Anistia Internacional e o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Se em princípio era desconhecida, a prática ganhou repercussão e está registrada há mais de duas décadas.
Em reportagem de 16 de junho de 2004, o jornal israelense Haaretz informou que o escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos das Nações Unidas enviou uma carta aos dirigentes da Caterpillar advertindo que essas máquinas fornecidas ao Estado de Israel estavam sendo utilizadas para violar direitos humanos, solicitando medidas entre os meios de influência da empresa para garantir que isso não ocorresse mais. Um dos exemplos de tal tipo de aplicação se dava e segue sendo a destruição das casas de civis, que têm suas vidas impactadas de forma severa, por perderem definitivamente o lugar onde habitavam, sem perspectiva de reconstrução. Isso porque em poucos minutos o D-9 consegue destroçar um imóvel e inutilizá-lo, reduzindo-o a escombros. Não se trata somente de dano estrutural pontual que possa ser reconstituído, o que já seria problemático por diversos motivos, mas sim de colapsar a estrutura da construção, que ainda pode receber o incremento de explosivos depositados nas paredes para completar a empreitada.
Customização do trator de esteira D-9 usado pelas FDI prevê gaiola de reforço à cabine | Foto: Zachi Evenor | Wikimedia Commons
Além disso, o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos advertiu que a venda de tratores às FDI poderia configurar cumplicidade em abusos, incluindo violações ao direito à alimentação, já que as máquinas também eram usadas para destruir fazendas palestinas (disponível aqui). Ainda no mesmo ano, a Human Rights Watch denunciou o uso sistemático de tratores D9 em demolições ilegais em territórios ocupados e pediu que a Caterpillar (disponível aqui) suspendesse as vendas a Israel, citando o código de conduta formulado pela própria empresa. Essas demolições de casas palestinas foram classificadas como punição coletiva (disponível aqui) e, segundo a HRW, podem ser considerados como crimes de guerra (disponível aqui), junto de outras modalidades de destruição das casas e cidades no Enclave.
Em 2005, o grupo Jewish Voice for Peace, organização judaica pró-palestina, juntamente com quatro ordens religiosas católicas, planejava apresentar uma proposta na assembleia de acionistas da Caterpillar, exigindo uma auditoria sobre o uso de seus tratores pelo exército israelense na demolição de residências palestinas. A iniciativa, baseada em denúncias de violações de direitos humanos, pedia que a empresa verificasse se essas ações estavam alinhadas com seu código de conduta. Em contrapartida, o grupo pró-Israel StandWithUs mobilizou seus apoiadores a adquirirem ações da Caterpillar e a enviarem mensagens de endosso à empresa, em defesa de suas operações (disponível aqui).
A MSCI, criadora de índices de investimento responsável nos EUA, retirou a Caterpillar (disponível aqui) de três de seus fundos ESG em 2012, argumentando que os tratores da marca (disponível aqui) eram usados pelo exército israelense em terras palestinas. Em 2017, documentos revelaram que a Caterpillar havia contratado investigadores particulares para monitorar a família de Rachel Corrie (disponível aqui), ativista norte-americana de direitos humanos morta por um trator D9 em Rafah, em 2003. Cinco anos mais tarde, portanto em 2022, a ONG palestina Stop the Wall acusou a Caterpillar, junto com outras empresas como Hyundai Heavy Industries, JCB e o Grupo Volvo (disponível aqui), de cumplicidade no que classificaram como “limpeza étnica” promovida por Israel nos territórios ocupados. A denúncia referia-se ao uso de equipamentos dessas companhias na demolição de oito aldeias palestinas em Masafer Yatta, no sul da Cisjordânia.
O uso bélico de máquinas projetadas inicialmente para operar em obras de infraestrutura mostra o quanto há um projeto de inviabilização da vida em território palestino, reduzindo a entulho o que encontrarem pela frente. É aí que a biopolítica que incide sobre a vida dos governados é substituída pela necropolítica, a política da morte que, na filosofia de Achille Mbembe, refere-se ao poder soberano de decidir quem pode viver e quem deve morrer, constituindo uma forma de governabilidade que opera através da gestão da morte e da exposição seletiva à destruição. Ou seja: a necropolítica passa a operar como técnica de governo.
Mbembe desenvolve o conceito argumentando que o poder moderno não se limita a controlar a vida, mas também administra a morte como instrumento de dominação. Enquanto a biopolítica foucaultiana regula a vida, a necropolítica normaliza a morte como parte do exercício do poder. Racismo e colonialismo estão totalmente articulados dentro desta perspectiva. Mbembe vincula a necropolítica às estruturas racistas e colonialistas, onde certas populações (negras, indígenas, palestinas, etc.) são racializadas e expostas à morte sem que isso seja visto como um problema ético. Um dos exemplos em nosso tempo pode ser oferecido pela ocupação militar israelense na Palestina, onde a destruição de corpos e territórios é sistematizada, como no uso pelas FDI de tratores de esteira D-9 para funções diferentes daquelas para as quais foram projetados, como demolições de residências, prédios, ruas e lavouras. A racialização das vítimas cujas propriedades são demolidas, fruto da necropolítica opera através de hierarquias raciais, faz com que palestinos sejam tratados como "corpos descartáveis", cuja destruição física e de seus pertences é normalizada. Nesse contexto, é preciso atentar para as tecnologias de destruição empregadas em larga medida e com modificações que expressam os ajustes que possam melhor servirem ao seu contexto de aplicação.
Quando Mbembe propõe a terminologia necropolítica, ele pensa na organização política da morte em larga escala, em curso em guerras e genocídios nos mais diferentes contextos especiais e epocais. Já a tanatopolítica (palavra derivada de thanatos, "morte" em grego), se concentra no controle sistemático da morte como ferramenta de poder cotidiano e é um conceito explorado pelo filósofo italiano Roberto Esposito.
O caso da Caterpillar na Palestina oferece um exemplo concreto da aplicação da necropolítica na prática, articulando a teoria de Achille Mbembe com a destruição sistemática de territórios palestinos como instrumento de dominação colonial e a intenção política e ideológica de tornar Gaza inabitável para as gerações futuras. Se a necropolítica é a decisão soberana sobre quem pode viver e quem deve morrer, podemos falar no controle da morte como política e refletir que o uso de tratores D-9 da Caterpillar pelo exército israelense para demolições em massa de casas palestinas (como em Masafer Yatta) reflete o que Mbembe chama de "necropoder" – o Estado determinando quem tem direito ao espaço e à vida, e quem será exposto à morte. A função original dos equipamentos foi desconsiderada pelas FDI e reconvertida para outras demandas, à revelia das intenções projetuais da empresa que os concebeu, ainda que a companhia esteja ciente desta distorção de uso.
A partir dessa reflexão, outro nexo importante a ser estabelecido é aquele entre burocracia da morte e a omissão ou cumplicidade corporativas. A Caterpillar, ao ignorar alertas da ONU e ONGs dados há anos sobre o uso de seus tratores em violações de direitos humanos, torna-se parte da máquina necropolítica. Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinos Ocupados, disse em julho de 2025 que, ao que parece, o genocídio é lucrativo, conforme consta no documento Da economia da ocupação à economia do genocídio, no qual a Caterpillar é citada, junto de dezenas de outras empresas. Desde o início do conflito, em 8 de outubro de 2023, denuncia Albanese, referindo-se aos bombardeios israelenses que se seguiram aos ataques dos comandos do Hamas no dia anterior, "essas empresas continuaram, em vez de parar, a colaborar com Israel e lucrar, como Volvo, Hyundai e Caterpillar, cujas escavadeiras estão contribuindo para a pulverização do que resta de Gaza hoje".
A persistência da Caterpillar no mercado israelense, apesar das denúncias, prova que a necropolítica não é fortuita, mas opera como o funcionamento padrão de um sistema que naturaliza a destruição do Outro e em conexão com o capitalismo racial, articulado no limiar da vida e da morte como recursos gerenciáveis e tendo o lucro como um de seus paradigmas. Em última instância, os tratores de esteira D-9 são “armas burocráticas” – não são tanques de guerra no sentido clássico, mas têm efeito genocida ao apagar comunidades inteiras sob a justificativa de “segurança”, conforme o emprego que deles é feito. A pergunta que a Filosofia Política deve formular para pensar nosso presente de forma crítica e não conformada com a exceção tornada regra é como descolonizar as estruturas de poder que transformam máquinas de construção em instrumentos de genocídio.