"A partir do referencial de filósofas como Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Marcia Tiburi, Angela Davis e Judith Butler, para citar somente algumas em suas respectivas linhas de pesquisa, podemos analisar criticamente o passado e o presente, pensando sobre as lutas femininas e nos diferentes campos de inserção que ocupamos, bem como dos desafios que temos a enfrentar. Filosoficamente, podemos dizer que, se por um lado a violência, a exclusão e o preconceito contra as mulheres persistem, essa racionalidade própria do patriarcado está rachada e em colapso. O esforço constante das mulheres, articulando-se e resistindo, marcando posição e construindo outras formas de vida é decisivo para erodir esse pensamento inaceitável", escreve Márcia Rosane Junges, professora da graduação e do PPG Filosofia Unisinos, onde coordena o grupo de estudos “A filosofia política pensada pelas mulheres: vozes, ressonâncias e insurgências”.
Nesse Dia Internacional da Mulher, gostaria de chamar a atenção para um paradoxo que vivemos. Por um lado, graças à luta das mulheres corajosas que nos precederam, bem como ao nosso enfrentamento constante hoje, cada uma ao seu modo e nos espaços onde transita e ocupa, temos muito o que comemorar em termos de avanços e inserções na sociedade em relação ao passado. Por outro lado, continua a existir não somente preconceito, mas também violência de gênero contra a mulher em um âmbito geral.
Em um país como o Brasil, destaco dois fatos históricos fundantes para a construção da sociedade violenta que somos: a colonização europeia exploratória e a escravidão negra. Nesses eventos está enraizada a violência estrutural que constitui nossa história até os dias atuais e que reverbera nos corpos e nas subjetividades femininas de forma muito peculiar. Esse modelo de colonização exploratória normalizou a violência simbólica e sexual contra as mulheres indígenas e negras, sobretudo. Uma dupla discriminação e violência atingiram seus corpos no passado e continuam a fazê-lo, quando raça e gênero se sobrepõem como fator de perseguição, submissão e morte.
Então, ao falarmos em violência de gênero em nosso país, precisamos refletir que há grupos de mulheres ainda mais oprimidas, perseguidas e precarizadas, como as mulheres negras, as indígenas, as mulheres transgênero, as mulheres pobres e as periféricas. Sobre as suas vidas pesa um duplo estigma e uma ameaça de morte a mais, o que é provado pelas estatísticas sobre o recrudescimento do feminicídio no Brasil.
O fato é que ser mulher ainda é perigoso. O corpo feminino incomoda, pois ainda é entendido por nossa sociedade patriarcal como passível de apropriação, de julgamento e controle. Essa foi e continua sendo a grande tentação de uma visão de mundo que percebe a mulher como objeto a ser administrado, possuído e descartado. E quando falo em patriarcado, me refiro a uma estrutura social na qual quem possui o poder dominante é o homem branco, cisgênero, heterossexual, majoritariamente cristão e burguês.
A partir do referencial de filósofas como Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Marcia Tiburi, Angela Davis e Judith Butler, para citar somente algumas em suas respectivas linhas de pesquisa, podemos analisar criticamente o passado e o presente, pensando sobre as lutas femininas e nos diferentes campos de inserção que ocupamos, bem como dos desafios que temos a enfrentar. Filosoficamente, podemos dizer que, se por um lado a violência, a exclusão e o preconceito contra as mulheres persistem, essa racionalidade própria do patriarcado está rachada e em colapso. O esforço constante das mulheres, articulando-se e resistindo, marcando posição e construindo outras formas de vida é decisivo para erodir esse pensamento inaceitável.
Nunca coubemos e não caberemos jamais em um espaço de confinamento, de sermos subalternas e controladas: nosso transbordamento é irreversível, estamos por toda parte estabelecendo outros tipos de relacionalidade, de sororidade e empatia. Equidade de oportunidades e direitos com os homens, respeito, liberdade e dignidade são exigências inegociáveis.
Some-se a isso a necessidade de que sejam aprofundadas as políticas públicas de igualdade de gênero, bem como aplicar essa concepção nas esferas onde transitamos, dentro de nossas casas e fora delas. E, sem dúvida, unificar nossas demandas em torno de um feminismo antirracista, radicalmente contra a transfobia e confrontar a exploração econômica neoliberal são outros imperativos a assumir. Afinal, todas as lutas feministas são legítimas, e uma não exclui a outra.
O ser mulher é uma construção que não se aprisiona em um conceito. O ser mulher é uma constelação de potências, de devires, de tornar-se quem se é. Somos pessoas humanas radicalmente abertas à liberdade, e é exatamente nessa potência que reside nossa maior capacidade de resistência e construção de uma outra história, na qual não sejamos silenciadas, invisibilizadas, diminuídas, violadas e assassinadas porque somos mulheres.