29 Julho 2023
“A psicogenealogia permite entender que o medo popular do decrescimento não deve ser interpretado como puramente irracional ou politicamente reacionário, mas como uma resposta psicológica baseada em duras experiências passadas, que permeiam as árvores genealógicas e geram respostas puramente defensivas. Só entendendo isso, sem estigmatizar aqueles que se opõem à dolorosa resistência, pode-se trabalhar na cura, na transformação de crenças limitantes e no estabelecimento de uma concepção diferente de abundância. E é justamente aí que entra o decrescimento como uma espécie de terapia coletiva”, escreve Gil-Manuel Hernández Martí, professor titular do Departamento de Sociologia e Antropologia Social da Universidade de Valência, em artigo publicado por El Salto, 27-07-2023. A tradução é do Cepat.
Sabemos que as elites que vivem do capitalismo fossilista são as primeiras interessadas em rejeitar, estigmatizar e desprezar a proposta do decrescimento, pois também negam ou minimizam o colapso ecossocial ao qual esta proposta tenta dar uma resposta efetiva. Isso ocorre porque o capitalismo depende do crescimento constante para maximizar seus lucros e se manter vivo, razão pela qual o decrescimento representa seu maior obstáculo. É compreensível, então, que os setores dominantes o desprezem ou ignorem.
No entanto, também é verdade que grande parte das classes populares dos países de alta renda pode mostrar resistência e medo das propostas decrescentistas, apesar dos indubitáveis benefícios ecológicos e sociais que podem trazer. A ponto de apoiar por padrão as forças neoliberais que promovem as supostas virtudes do crescimento constante.
Trata-se de uma narrativa poderosa e persuasiva, vinda do poder, mas as referidas populações dão o seu consentimento, convencidas de que pertencem à próspera “classe média” do mundo rico. Na realidade, essas pessoas enfrentam inúmeros problemas, todos eles com raízes sistêmicas, embora se apeguem ao comodismo do “normal”, a um passado almejado de segurança material ou à esperança de que as múltiplas crises atuais serão superadas.
É verdade que há indignação e protestos recorrentes, mas, em geral, as massas assalariadas respiram literalmente a asfixiante atmosfera capitalista. Sentem-se ansiosas, decepcionadas, cansadas e possuem muitas dificuldades em tomar uma distância crítica, pois possuem bastante para “ir levando”.
A razão do medo do decrescimento que quero destacar remete ao que a psicogenealogia estuda. Trata-se de uma disciplina que explora como as experiências e acontecimentos vitais mais cruciais de nossos antepassados podem influenciar em nossa forma de pensar e agir hoje. A psicogenealogia sustenta que os traumas, segredos e conflitos não resolvidos de nossos antepassados podem ser transmitidos através do inconsciente familiar, de geração em geração, impactando nossas vidas de diversas maneiras.
A psicogenealogia utiliza diversas ferramentas, métodos e abordagens que giram em torno do trabalho com a árvore genealógica. Procura revelar as conexões ocultas entre as experiências traumáticas do passado e as dificuldades atuais, proporcionando a oportunidade de curar e transformar padrões negativos ou limitantes.
Os sofrimentos, medos e traumas dos antepassados afetam as novas gerações em uma linha hereditária direta, tanto física quanto psíquica. É o que se demonstrou, nos últimos anos, por vários estudos sobre guerras, catástrofes, matanças, torturas, privações, sofrimentos e outros choques que são capazes de transcender, enraizando-se no inconsciente do ser humano. A ponto de a emergente ciência da epigenética ter confirmado que esses choques produzem mudanças hereditárias na expressão de genes, que não implicam modificações na sequência de DNA, mas possuem impactos importantes na saúde física e mental dos indivíduos.
É importante lembrar que a pobreza, a exploração, a vulnerabilidade e a miséria foram experiências cotidianas para as classes trabalhadoras (camponeses, artesãos, operários) no Ocidente moderno capitalista, do início da Revolução Industrial até praticamente a metade do século XX. Fome, doenças, guerras, genocídios, precariedade material, emigração forçada, analfabetismo e exploração acompanharam a ascensão e o desenvolvimento do capitalismo, baseado na acumulação por desapropriação e destruição dos bens comuns.
Tais experiências, agravadas pelo modelo patriarcal de sociedade, no caso das mulheres, manifestaram-se, geração após geração, em problemas pessoais e familiares, que evocam um horizonte vital de abandono, violência, carência material, exclusão social e falta de esperança. Se considerarmos as gerações que viveram durante a configuração das chamadas classes médias modernas, existe um período histórico marcado por severas privações e catástrofes, como as guerras mundiais, os genocídios e a Grande Depressão. Acontecimentos que deixaram uma profunda marca no inconsciente coletivo, transmitindo uma traumática herança na forma de temerosa aversão à pobreza e à miséria.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial e no contexto da Guerra Fria, o capitalismo assentiu em moderar sua margem de lucro em troca da paz social. Iniciou-se um período de relativa estabilidade e progresso econômico, com alguns anos de Estado de bem-estar social e euforia desenvolvimentista que pareciam consolidar um benigno modelo de crescimento permanente no Primeiro Mundo.
Mesmo que esse bem-estar tivesse sido conquistado à custa do mal-estar dos territórios periféricos do sistema, ou mesmo que a escassez artificial tenha sido induzida pelo capitalismo por meio do consumo em massa para continuar crescendo, o relevante é que as classes médias idealizadas dos países ricos desfrutaram de um oásis temporário de prosperidade e estabilidade econômica, traduzido em uma sensação de segurança existencial.
Parecia que os pesadelos associados à pobreza e ao “subdesenvolvimento”, felizmente, estavam superados, mas a ofensiva neoliberal orientada a garantir um novo ciclo de acumulação capitalista, a partir dos anos 1980, com seu agressivo ataque às conquistas e direitos sociais, fez realidade o medo do retorno à precariedade. Especialmente após a crise econômica de 2008 e as políticas de “austeridade”, que tanto cortaram o gasto público com bens sociais e proteção social, enquanto as elites se enriqueciam ainda mais.
Minha consideração é que a convergência de diversos fatores, como o aumento da desigualdade social, a dissolução das classes médias, a deterioração das condições materiais de vida, o declínio energético, a crise ecológica e a pandemia de 2020, juntamente com as preocupações sobre o futuro das próximas gerações, pode estar reabrindo velhas feridas que nunca cicatrizaram totalmente. Isso estaria provocando a reativação de medos enraizados no inconsciente coletivo, relacionados a traumas históricos associados à pobreza, herdados de gerações anteriores.
Após um período de prosperidade, que agora é considerado um breve parêntese na história, parece que ninguém está disposto a voltar a enfrentar privações ou permitir que seus filhos tenham uma vida pior que a de seus pais. Os persistentes protestos populares contra as políticas de austeridade neoliberais são uma prova clara dessa inquietação social.
Diante da dimensão do colapso ecossocial provocado pelo necroliberalismo, em um contexto de capitalismo crepuscular, com suas possíveis derivações ecofascistas e exterministas, propõe-se o decrescimento como solução ou alternativa. Como aponta Jason Hickel, o decrescimento busca uma redução planejada do uso excessivo de energia e recursos para colocar novamente a economia em equilíbrio com o mundo vivente de forma segura, justa e equitativa. A ideia é garantir vida digna para todos.
Para isso, como ressalta Carlos Taibo, no Norte do planeta é necessário reduzir inexoravelmente os níveis de produção e consumo, aplicando princípios e valores muito diferentes dos que hoje abraçamos, materializados em práticas como a relocalização, a agroecologia, a desindustrialização, o retorno da ruralização e uma nova concepção dos limites.
No entanto, apesar da urgente necessidade do decrescimento, a colaboração imediata dos cidadãos não deve ser dada como certa. Pelo contrário. As classes médias do mundo rico, tendo desfrutado de décadas de Estado de bem-estar social, após uma longa história de privações, experimentam profundos medos e resistência em fazer o que podem interpretar como sacrifícios que façam reviverem o trauma histórico da pobreza. Em seu inconsciente pessoal, familiar e de classe subsiste uma memória intergeracional da pobreza, capaz de induzir o medo ancestral de reviver aquelas dificuldades históricas que eram consideradas totalmente superadas.
Apesar do necroliberalismo ser a fonte de toda a fragilidade, precariedade e vulnerabilidade dessas classes médias desestruturadas, paradoxalmente, a segurança e o bem-estar almejados podem ser percebidos como ameaçados por propostas de decrescimento, o que desencadeia respostas de resistência à mudança, alimentadas pela narrativa hegemônica das elites corporativas. Não se trata tanto de uma falta de vontade de abordar mudanças necessárias no estilo de vida, mas do impacto emocional dos traumas intergeracionais sobre os quais parece não haver consciência.
A psicogenealogia permite entender que o medo popular do decrescimento não deve ser interpretado como puramente irracional ou politicamente reacionário, mas como uma resposta psicológica baseada em duras experiências passadas, que permeiam as árvores genealógicas e geram respostas puramente defensivas. Só entendendo isso, sem estigmatizar aqueles que se opõem à dolorosa resistência, pode-se trabalhar na cura, na transformação de crenças limitantes e no estabelecimento de uma concepção diferente de abundância. E é justamente aí que entra o decrescimento como uma espécie de terapia coletiva.
Se para abordar o trauma é necessário enfrentá-lo, aceitá-lo e atravessá-lo, como costuma ser comum nas psicoterapias pessoais, o decrescimento pode ser uma espécie de terapia em termos sociais. Se considerarmos que o medo das classes médias em declínio é “voltar a passar fome”, deve-se explicar com paciência pedagógica que seu retorno à pobreza só ocorrerá se persistir a gestão necroliberal de um colapso descontrolado.
Na psicoterapia, muitas vezes, teme-se mais a terapia em si do que ao que ela pretende curar. Nesse sentido, o decrescimento pode ser a forma de enfrentar o trauma herdado e superá-lo, pois, como destaca Hickel, implica uma descolonização mental. Só assim é possível contribuir para diluir o conjunto herdado de pânicos, crenças limitantes, sentimentos de culpa, insatisfações, frustrações, amarguras e perdas.
Se no âmbito individual a psicogenealogia pode ajudar a explorar e abordar os efeitos dos traumas familiares para que sejam superados, no âmbito coletivo, o decrescimento não apenas seria a principal estratégia para evitar os piores efeitos do colapso e gerar uma transição ecológica justa, mas também um remédio necessário para enfrentar e desarticular os enraizados fantasmas do passado.
No Século da Grande Prova, para aplainar o caminho rumo a uma sociedade mais justa, resiliente e em harmonia com a vida, primeiro é necessário desativar os medos que o sistema se encanta em reforçar e reproduzir. É preciso se atrever a decrescer materialmente para que também decresçam, e ao final desapareçam, os lastros geracionais opressivos que o sistema foi nos fazendo carregar. Quando cada vez mais pessoas descobrem que o decrescimento é a fórmula para se desprender daqueles velhos medos, curar-se coletivamente e caminhar para o bem viver, talvez tudo se torne muito mais fácil.
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Psicogenealogia do medo do decrescimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU