18 Março 2023
“O que as classes médias, em seu declínio reacionário, almejam é o retorno da ficção jurídica da igualdade de oportunidades, da meritocracia, que o mercado de opções de vida seja neutro e que outras formas de vida não sejam privilegiadas. Nisto consiste a rebelião contra a igualdade por parte das antigas classes médias, hoje, em crise”, escreve Antonio Gómez Villar, professor de Filosofia da Universidade de Barcelona, em artigo publicado por Público, 13-03-2023. A tradução é do Cepat.
Em 2020, o filósofo Michael Sandel publicou o ensaio A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?. Nele, buscava responder o porquê do surgimento dos chamados “populismos autoritários” e os tons emocionais de ódio e ressentimento que os acompanham.
Segundo o autor, tanto as comunidades locais como as nacionais estão, hoje, atravessadas pela dicotomia vencedores/perdedores da globalização e pelo consequente distanciamento social entre ambos. Nesta dicotomia, a possibilidade de alcançar sucesso depende da formação e educação adquiridas, que proporcionam a preparação necessária para poder competir no marco de uma economia global. E a função dos diferentes governos consiste em proporcionar as mesmas oportunidades de receber essa formação e educação em que se fundamentam as possibilidades de alcançar sucesso.
A partir dessa lógica meritocrática, baseada na suposta igualdade de oportunidades, aqueles que alcançam o sucesso, que conseguem lugares privilegiados na sociedade, são considerados merecedores do que possuem; e, da mesma forma, os que ficam para trás, os que perdem, também são considerados merecedores do lugar que ocupam. Os vencedores acreditam que seu sucesso é merecido, que é criação sua; os perdedores, por sua vez, acumulam raiva e ressentimento, emoções e afetos que, segundo Sandel, estão na base do surgimento dos “populismos autoritários”.
Esta radiografia o leva a concluir que aqueles que, hoje, apoiam as novas formações de extrema-direita são os que ficaram à margem da competição meritocrática, os eleitores sem diplomas universitários, atravessados por um sentimento de inferioridade. A ascensão do mérito e suas formas de reprodução, que não se refere apenas a um dano econômico, mas também moral e cultural, teriam provocado o surgimento de líderes políticos autoritários.
A seguir, buscarei argumentar que as formas de “ressentimento sem consciência de classe” a que se referia M. Fisher, que estão na base do surgimento de novas formas políticas autoritárias, ou seja, um imaginário imunitário, uma expressão reativa e individual, colocam no centro não uma crítica às consequências do privilégio concedido à lógica meritocrática, mas um desejo de torná-la operacional, para que volte a imperar, estar disponível. Parte das atuais classes médias precarizadas observa que o elevador social quebrou, está lento e errático, mas o das novas minorias continua operando por meio das políticas afirmativas.
A humilhação que essa sociologia a que se refere Sandel experimenta não é o resultado da forma como a meritocracia responsabiliza os indivíduos pelos seus fracassos, mas, sim, o fato de se sentirem humilhados porque consideram que as novas minorias passaram em sua frente, sem passarem pela instância do esforço e o mérito. Criticam que a cultura do mérito, do esforço e do talento substituiu a da representação. As minorias raciais e de gênero constituem uma nova hierarquia aristocrática, cujas diferenças operam como privilégios de reconhecimento que devem ser preservados.
É um ressentimento tanto material quanto simbólico, referindo-se tanto às possibilidades de acesso aos bens quanto à ausência do reconhecimento que a sociedade, em seu conjunto, professava outrora às classes médias como sujeito hegemônico da ordem. Trata-se de uma forma de ressentimento construída sobre a percepção de uma injustiça: a promessa de mérito foi rompida e precisa ser reconstruída para que a posição social ocupada seja determinada pelo mérito. Só o esforço pode representar a chave para o sucesso social; e a mobilidade social só pode depender da iniciativa individual.
As classes médias não experimentam, hoje, um dano específico, não existe um vestígio claro do que dói nelas, nem apontam de forma clara e específica um sujeito concreto como o responsável por sua situação. O outro é uma projeção imaginária, a construção de um outro inaceitável que, ao mesmo tempo em que retira as classes médias de seu status, ultrapassa as fixações estabelecidas.
“Resentendio” vem de “re-sentir”. Flexionado como “resistir”, sua raiz latina é “resistere” [“ficar para trás”, “parar”]. Resistir, etimologicamente, significa “voltar a estar”, reivindicar a vigência do status perdido. Eis, aqui, o projeto das classes médias em crise que as novas extremas-direitas politizam: a salvaguarda das hierarquias em que se fundava sua posição de privilégio social para colocar fim ao seu progressivo desclassamento.
No momento em que as categorias que articulavam a classe média clássica, seus valores e ideais são esvaziadas de valor, o próprio mundo lhe aparece como desprovido de valor. Uma vez que esses valores – meritocracia, defesa do status quo, capacidade de consumo, status, distinção, igualdade de oportunidades, “sonho americano”, “igualdade social europeia” etc. – entram em crise, toda essa sociologia que até então havia sustentado a ordem também adquire uma avaliação muito precisa: são “nada”.
O sistema de afetos que atravessa o projeto das novas extremas-direitas não realça um segmento sociológico específico. Seu projeto não nasce com o objetivo de reparar uma situação de desigualdade, mas de preservar uma pretérita situação de privilégio, a partir de uma lógica antagônica, destacando como inimigos aqueles que atentem contra ela ou a impossibilitem. Trata-se de uma força reacionária que precisa do retorno a um privilégio que se possuía antes para continuar existindo.
As classes médias apontam para um agravo comparativo: outros (as minorias) retiram delas o que acreditavam que tinham direito. A classe média, o sujeito que encarnava o sonho da igualdade de oportunidades e a meritocracia, rompeu-se. Consideram que não merecem cair nos lugares da marginalização, pois não é o seu lugar natural. Por isso, encontram eco nas novas formas políticas reacionárias: todas as suas reivindicações começam com “recuperar”, “restaurar”, “devolver”.
O reverso de alcançar o sucesso por meio da meritocracia é a tentativa de evitar o fracasso. É necessário restaurar a justiça para restaurar o seu bem. O objetivo é que os códigos de domínio das classes médias voltem a imperar. Daí o seu rancor, defensivo e reacionário, e a pulsão pela restauração de algo perdido. O futuro é almejado como promessa de retorno.
Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos, no início do século XIX, disse que “é a natureza que determina as classes”. A classe média sempre foi filha desta concepção e, hoje, reage contra a desnaturalização do status que por natureza lhe corresponde. Nenhuma outra classe abraçou tanto a lógica meritocrática, a possibilidade de progredir em função das aspirações, talento e disciplina individual. A expressão “classe média em crise” é o nome que se dá, hoje, à identificação com sociedades danificadas por esses “outros”, “estranhos”, minorias que invadem o espaço do sujeito legítimo da nação por antonomásia.
A classe média teve o seu legado arrancado e foi relegada a um canto da história ao erodir seus “privilégios legítimos”. Os “outros” não só colocam em perigo o que se considera próprio. A verdadeira ameaça reside na possibilidade de que ocupem seu antes lugar de privilégio. Daí a nostalgia de uma hierarquia natural desfeita, de uma prosperidade associada ao imaginário do empreendedorismo e do esforço aliado a uma política fiscal de baixos impostos. Por isso, reivindicam mecanismos restauradores que permitam a recuperação do que foi perdido frente à “ordem natural” alterada pelas lutas das minorias.
O que as classes médias, em seu declínio reacionário, almejam é o retorno da ficção jurídica da igualdade de oportunidades, da meritocracia, que o mercado de opções de vida seja neutro e que outras formas de vida não sejam privilegiadas. Nisto consiste a rebelião contra a igualdade por parte das antigas classes médias, hoje, em crise. Uma luta contra a democratização do acesso ao consumo, bens, status e reconhecimento dos que antes viviam nas margens. Sofrem a angústia coletiva diante da decadência e agonia de um mundo que resiste a morrer.
A partir dessa desorientação política, material e afetiva, as novas extremas-direitas introduzem um antagonismo horizontal, os de baixo contra os de baixo. Projetam raiva, ira e ressentimento contra os de baixo, contra as minorias. Estas se beneficiam da globalização neoliberal e as classes médias acabaram perdendo. Sentem que retiram delas o que lhes cabe por direito natural: os imigrantes retiram delas o trabalho e as mulheres os direitos. As minorias, enfim, impedem o curso correto da história: só a lógica neutra de funcionamento do mercado capitalista possibilita a permanência da lógica meritocrática.
Que neste novo antagonismo não se aponte para cima, para os capitalistas ou políticos do status quo, mas para aqueles que consideram abaixo no estrato social, é porque a classe média sempre considerou que os que os de cima estão em seu legítimo direito de estarem no topo. É uma lógica da adequação, um senso platônico da justiça, o direito natural a ser ricos e poderosos e o direito a ser pobre. Aceitam os ricos porque entendem que existe uma correspondência meritocrática entre esforço e recompensa.
Não questionam os privilégios dos ricos porque o sonho da classe média se inspira neles. Também podem chegar lá; com esforço, podem se tornar o que quiserem. Qualquer outra cena de igualdade é vivida como uma humilhação e uma ofensa. A luta das minorias é o ponto simbólico que mostra às classes médias a inversão competitiva de nosso tempo: aquelas são privilegiadas e as classes médias em crise são as novas minorias oprimidas. Como resultado, o fim da promessa meritocrática se torna um narcisismo ferido.
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Crise das classes médias: da promessa meritocrática ao ressentimento existencial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU