21 Julho 2022
"O domínio dos ricos no âmbito local e dos poderosos no âmbito internacional está tão arraigado hoje do ponto de vista ideológico que parece não haver esperança de melhoria, nenhuma esperança de igualdade nacional ou econômica no horizonte. Grande parte da responsabilidade por este desastroso estado de coisas recai sobre os “trivialistas”, a elite intelectual que definiu, promoveu e defendeu essa perniciosa ideologia da desigualdade". A reflexão é de Branko Milanovic, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres, 20-07-2022. A tradução é do Cepat.
Dizer que a situação mundial atual é a pior desde o fim da Segunda Guerra Mundial não é uma afirmação excessiva nem original. Agora que estamos à beira de uma guerra nuclear, não são necessárias muitas palavras para convencer as pessoas de que é assim.
A pergunta é: como chegamos aqui? E existe uma saída?
Para entender como chegamos aqui, temos que recuar no tempo até o fim da Guerra Fria. Essa guerra, como a Primeira Guerra Mundial, terminou com os dois lados entendendo o fim de forma diferente: o Ocidente entendeu o fim da Guerra Fria como sua vitória global sobre a Rússia; a Rússia entendeu isso como o fim da competição ideológica entre o capitalismo e o comunismo: a Rússia abandonou o comunismo e, portanto, deveria ser uma potência a mais ao lado de outras potências capitalistas.
A origem do conflito atual está nesse mal-entendido. Muitos livros já foram escritos sobre isso, e outros mais serão escritos. Mas isso não é tudo. O mundo euro-americano deu uma guinada ruim na década de 1990 porque tanto o (antigo) Ocidente quanto o (antigo) Oriente deram uma guinada ruim. O Ocidente rejeitou a socialdemocracia, com sua atitude conciliadora no âmbito interno e sua vontade de conceber um mundo sem blocos militares rivais em nível internacional, em favor do neoliberalismo no âmbito interno e da expansão militante no âmbito externo. O (antigo) Oriente abraçou a privatização e a desregulamentação da economia, e um nacionalismo exclusivista nas ideologias nacionais subjacentes aos Estados recém-independentes.
Essas ideologias extremas, do Oriente e do Ocidente, eram o completo oposto do que as pessoas de boa vontade esperavam. O mundo que queriam, uma vez terminadas as guerras coloniais e semi-coloniais do Ocidente e as invasões soviéticas, era o mundo da convergência dos dois sistemas, com uma socialdemocracia branda em ambos, a dissolução das alianças bélicas e o fim do militarismo. Eles não conseguiram nada disso: um sistema engoliu o outro; a socialdemocracia morreu ou foi corrompida ou cooptada pelos ricos, e o militarismo, por meio de aventureiras invasões estrangeiras e da expansão da OTAN, tornou-se a nova norma. No antigo Terceiro Mundo, a vitória do Ocidente levou à reinterpretação da luta contra o colonialismo. Agora foi despojado de todos os seus elementos progressistas internos. Isso facilitou a corrupção nos países recém libertos.
Os "trivialistas", os intelectuais que interpretaram mal, seja por falta de discernimento ou por puro interesse, a natureza das mudanças na Europa Oriental, proclamaram que as revoluções de 1989 haviam sido as revoluções do liberalismo, do multiculturalismo e da democracia. Eles não se deram conta de que, se fossem as revoluções do multiculturalismo e da tolerância, não havia necessidade de desmembrar os Estados multinacionais. Além disso, essa ruptura era antitética à ideia de multiculturalismo. O nacionalismo foi assim confundido com a democracia.
Os trivialistas conseguiram virar o progressismo do pós-guerra de cabeça para baixo. Em vez do desenvolvimento e do progresso significarem uma combinação dos melhores elementos da economia de mercado (capitalista) e o socialismo a eliminação da política de poder nos assuntos mundiais e a adesão às normas das Nações Unidas, o progressismo em sua nova leitura da história significava uma economia de mercado desenfreada no interior, uma "ordem internacional liberal" de poder desigual no exterior e pensamento único na ideologia.
Em vez de um capitalismo socialdemocrata com paz, ser progressista começou a significar neoliberalismo com a permissão para fazer a guerra a quem discordasse dele. Em vez de uma mistura suave e inócua de socialismo e capitalismo em casa e de igualdade de poder de todos os Estados no âmbito internacional, fomos servidos pelo poder dos ricos em casa e pelo poder dos grandes países no âmbito internacional. Foi um estranho retorno à hegemonia quase colonial, que ocorreu – incongruentemente, a princípio – no momento da “vitória liberal”.
O resto, da perspectiva atual, parece quase predeterminado. O nacionalismo virulento da Europa Oriental, que alimentou as revoluções de 1989, acabou engolindo o país mais poderoso daquela parte do mundo: a Rússia. O nacionalismo xenófobo é o mesmo em todos os lugares: na Estônia, na Sérvia, na Ucrânia, na Rússia ou no Azerbaijão. Mas quanto maior o país, mais desestabilizador e imperialista ele é. O que começou como as revoluções nacionalistas na Europa Oriental agora termina como a revolução do nacionalismo desencadeada na Rússia: o mesmo movimento ideológico, mas com a recuperação dos territórios “perdidos” como objetivo em vez de sua “libertação”.
O domínio dos ricos no âmbito local e dos poderosos no âmbito internacional está tão arraigado hoje do ponto de vista ideológico que parece não haver esperança de melhoria, nenhuma esperança de igualdade nacional ou econômica no horizonte. Grande parte da responsabilidade por este desastroso estado de coisas recai sobre os “trivialistas”, a elite intelectual que definiu, promoveu e defendeu essa perniciosa ideologia da desigualdade. A desesperança não envolve apenas o presente, onde estamos à beira da extinção de uma parte da humanidade, mas também o futuro. O pensamento progressista foi viciado, remodelado e extirpado. A escuridão medieval, sob o nome de “liberdade”, está descendo.
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Desesperança. Artigo de Branko Milanovic - Instituto Humanitas Unisinos - IHU