“A pandemia e o retorno do trabalho artesanal”. Entrevista com Branko Milanović

Foto: Unsplash

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

15 Abril 2020

"A globalização vai levantar sua cabeça, existem muitas conveniências econômicas para as empresas que voltarão. Mas sofreu um golpe duríssimo e levará pelo menos três a quatro anos para que as novas cadeias de valor se formem e, nesse período de tempo, poderão acontecer; de fato, aliás já começaram a ocorrer visto que a cadeia em questão se rompeu abruptamente, fenômenos muito relevantes, capazes de reescrever parte da história econômica do Ocidente".

Branko Milanovic, o guru do Centro de Desigualdade Socioeconômica da City University de Nova York, faz questão de distinguir entre as "duas desigualdades" que caracterizam essa fase histórica: a do leste e do oeste e aquela dentro do Ocidente. "O elemento comum entre o Ocidente e o Oriente é o capitalismo, de várias formas, público ou estatal, e a competição global se resume à redistribuição dos fatores de produção", explica Milanovic, autor do novo ensaio Capitalism alone que chegará no segundo semestre na Itália publicado pela Laterza com o título ainda mais explícito, Capitalismo sem rivais: o desafio que decidirá nosso futuro, e será apresentado no Festival de Economia no outono. Agora Milanovic está escrevendo um capítulo adicional ("que será breve porque ainda existem muitas incógnitas") dedicado às consequências da pandemia.

A entrevista é de Eugenio Occorsio, publicada por La Repubblica, 14-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Professor, em que sentido você disse que será reescrito o livro da produção global?

Um efeito direto muito importante da nova ordem econômica que já está emergindo da pandemia corresponde à oportunidade inigualável de trabalhadores norte-americanos e europeus, que votaram em Trump e no Brexit por protesto, de recuperar um papel fundamental. Vamos chamá-lo de recuperação da capacidade contratual dos funcionários no Ocidente. Se é verdade que uma das causas das perdas salariais foi por muitos anos, além da tecnologia, a competição dos trabalhadores de baixo custo do Leste, agora esse fator típico da globalização está se reduzindo abruptamente. Antes que sejam feitos os cálculos da globalização e que voltemos a confiar em países evidentemente em risco, o progressivo - que poderia até tornar-se maciço - retorno de muitas produções nos EUA e na Europa, restituirá uma inesperada chance a quem trabalha aqui, desde que tenha conseguido se qualificar e especializar adequadamente.

As desigualdades entre os salários dos trabalhadores assalariados diminuirão, especialmente para aqueles que tiveram a previsão de adquirir maiores capacitações. Mais ainda: o reforço do componente trabalho na hierarquia de renda vai levar a um relativo redimensionamento do fator “receitas financeiras” e, assim, a uma redução das desigualdades dentro dos países ocidentais que foram uma consequência odiosa da globalização.

Você falou de "duas desigualdades": qual é a segunda (ou a primeira)?

Aquela entre leste e oeste, que está cada vez mais inclinada a favor do primeiro. Não se surpreenda: o agravamento da situação nos EUA, com números recordes de vítimas e desempregados, e a recuperação prudente, mas maciça, de atividades na China claramente adiantada em relação às previsões, ainda que com alguma incerteza, abrem caminho para outra consequência geopolítica importante dessa tragédia: um novo deslocamento do centro de gravidade econômico do mundo em direção à Ásia. Não era dado como certo que terminaria assim.

Já as macrodiferenças em termos de desenvolvimento, renda per capita, potencial de crescimento e tecnologia diminuíram muito em escala global desde o início dos anos 1990 e agora a lacuna entre o Ocidente e o Oriente está destinada a reduzir-se, mesmo que essa não seja a redução das desigualdades entre os dois blocos que gostaríamos, não uma impulsionada pelas forças “benignas” de um desenvolvimento das economias emergentes da Ásia, mas vice-versa, ditada pelas forças “malignas” de um colapso do crescimento nos países ricos.

Parece que a China evitará um crescimento abaixo de zero: isso aumentará a média mundial?

Não será suficiente, mesmo que, conforme as previsões, a China recupere um crescimento de 2-3% até o final do ano. Dado os colapsos no Ocidente, o mundo terminará com um saldo negativo e será a primeira vez desde 1961. Quando, por ironia da história, quem arrastou a média mundial para baixo - foram os anos do boom econômico na Europa e do rearmamento pró-Vietnã nos EUA - foi justamente a China, com o clamoroso fiasco da política do “Great Leap Forward” de Mao que levou a uma queda de 26% no PIB per capita.

De uma maneira ou de outra, não é de hoje que a China define a tendência global ...

Para os equilíbrios mundiais, não contam apenas os crescimentos ou não dos vários PIBs. Na década de 1960, o PIB chinês era igual ao do Benelux, ainda em 2003, na época da SARS, era pouco menos de 5%, hoje é de 17%. É muito mais grave para o planeta uma crise com a perda de riqueza per capita na China, que afeta 1,4 bilhão de seres humanos, ou na Índia, onde vive outro bilhão, do que um em um país menor. É por isso que é importante para todos que a China e a Índia cresçam. Mas é em outros níveis que os modelos devem ser avaliados, e aqui estamos retornando aos “dois capitalismos”.

Você pode nos explicar melhor?

O capitalismo é um sistema fascinante, mas arriscado. No mínimo porque alimenta o egoísmo daqueles que consideram o enriquecimento o único fim e negligenciam culposamente o resgate dos mais desfavorecidos. Mas o modelo chinês, o capitalismo de estado em um regime autoritário, talvez ajude nas políticas de contenção em caso de pandemias, no entanto é, apesar das aparências, mais exposto a confrontos sociais e rebeliões violentas. Quando uma crise eclode, as consequências são sempre imprevisíveis: mesmo no Ocidente estão recuperando fôlego, devido a uma espécie de propriedade transitiva que não é facilmente explicável, os movimentos extremistas, radicais e nacionalistas que se alicerçam no crescente descontentamento social. É o maior risco, e é provável que a perda de apelo para os regimes livres e democráticos corre o risco de ser, esta sim, realmente duradoura.

Por que os movimentos extremos toleram mal as restrições sociais?

É mais complexo. A centralização do poder dá a ilusão de ser capaz de superar melhor as crises, e alguém inveja a despótica China, porque impôs de forma militar as proibições e superou a crise em dois meses. Mas a vontade e aceitação de mudanças, mesmo a longo prazo, dependem da inteligência individual, mesmo em coisas menores. Vejamos o caso mais banal: as viagens aéreas: bastou que um idiota, quinze anos atrás, anunciasse que estava com o explosivo nos sapatos para que se decidisse que todos deveriam tirar os sapatos no aeroporto. E essa obrigação permaneceu mesmo que felizmente nunca mais tenha se visto nenhuma pirataria aérea. O mesmo acontecerá com os controles sanitários e, em muitos casos, de potencial ajuntamento. Nós também nos sentiremos diferentes: quando formos entrar em um quarto de hotel, sabe-se lá por quanto tempo continuaremos a nos perguntar quem já esteve lá antes e se o hotel aplica políticas sanitárias adequadas.

Quanto tempo isso durará como os outros reflexos condicionados?

Como eu dizia, é provável que tenham uma duração muito longa, talvez desproporcional, especialmente se, no meio tempo, tiver chegado uma vacina. Mas permita-me esclarecer melhor, voltando ao aspecto central: a globalização não acabou. Mais cedo ou mais tarde, ela recomeçará, embora gradualmente e talvez com modalidades diferentes, isso irá depender das conveniências das empresas que poderão, pelo menos parcialmente, voltar a estar presentes. Provavelmente permanecerá por muito tempo o medo de depender demais de um determinado país estrangeiro, mas está provado que dificilmente as sociedades humanas realmente conseguem aprender as lições da história, especialmente quando terá finalmente acabado a angústia coletiva desta terrível pandemia.

 

Leia mais