15 Abril 2020
"A globalização vai levantar sua cabeça, existem muitas conveniências econômicas para as empresas que voltarão. Mas sofreu um golpe duríssimo e levará pelo menos três a quatro anos para que as novas cadeias de valor se formem e, nesse período de tempo, poderão acontecer; de fato, aliás já começaram a ocorrer visto que a cadeia em questão se rompeu abruptamente, fenômenos muito relevantes, capazes de reescrever parte da história econômica do Ocidente".
Branko Milanovic, o guru do Centro de Desigualdade Socioeconômica da City University de Nova York, faz questão de distinguir entre as "duas desigualdades" que caracterizam essa fase histórica: a do leste e do oeste e aquela dentro do Ocidente. "O elemento comum entre o Ocidente e o Oriente é o capitalismo, de várias formas, público ou estatal, e a competição global se resume à redistribuição dos fatores de produção", explica Milanovic, autor do novo ensaio Capitalism alone que chegará no segundo semestre na Itália publicado pela Laterza com o título ainda mais explícito, Capitalismo sem rivais: o desafio que decidirá nosso futuro, e será apresentado no Festival de Economia no outono. Agora Milanovic está escrevendo um capítulo adicional ("que será breve porque ainda existem muitas incógnitas") dedicado às consequências da pandemia.
A entrevista é de Eugenio Occorsio, publicada por La Repubblica, 14-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor, em que sentido você disse que será reescrito o livro da produção global?
Um efeito direto muito importante da nova ordem econômica que já está emergindo da pandemia corresponde à oportunidade inigualável de trabalhadores norte-americanos e europeus, que votaram em Trump e no Brexit por protesto, de recuperar um papel fundamental. Vamos chamá-lo de recuperação da capacidade contratual dos funcionários no Ocidente. Se é verdade que uma das causas das perdas salariais foi por muitos anos, além da tecnologia, a competição dos trabalhadores de baixo custo do Leste, agora esse fator típico da globalização está se reduzindo abruptamente. Antes que sejam feitos os cálculos da globalização e que voltemos a confiar em países evidentemente em risco, o progressivo - que poderia até tornar-se maciço - retorno de muitas produções nos EUA e na Europa, restituirá uma inesperada chance a quem trabalha aqui, desde que tenha conseguido se qualificar e especializar adequadamente.
As desigualdades entre os salários dos trabalhadores assalariados diminuirão, especialmente para aqueles que tiveram a previsão de adquirir maiores capacitações. Mais ainda: o reforço do componente trabalho na hierarquia de renda vai levar a um relativo redimensionamento do fator “receitas financeiras” e, assim, a uma redução das desigualdades dentro dos países ocidentais que foram uma consequência odiosa da globalização.
Você falou de "duas desigualdades": qual é a segunda (ou a primeira)?
Aquela entre leste e oeste, que está cada vez mais inclinada a favor do primeiro. Não se surpreenda: o agravamento da situação nos EUA, com números recordes de vítimas e desempregados, e a recuperação prudente, mas maciça, de atividades na China claramente adiantada em relação às previsões, ainda que com alguma incerteza, abrem caminho para outra consequência geopolítica importante dessa tragédia: um novo deslocamento do centro de gravidade econômico do mundo em direção à Ásia. Não era dado como certo que terminaria assim.
Já as macrodiferenças em termos de desenvolvimento, renda per capita, potencial de crescimento e tecnologia diminuíram muito em escala global desde o início dos anos 1990 e agora a lacuna entre o Ocidente e o Oriente está destinada a reduzir-se, mesmo que essa não seja a redução das desigualdades entre os dois blocos que gostaríamos, não uma impulsionada pelas forças “benignas” de um desenvolvimento das economias emergentes da Ásia, mas vice-versa, ditada pelas forças “malignas” de um colapso do crescimento nos países ricos.
Parece que a China evitará um crescimento abaixo de zero: isso aumentará a média mundial?
Não será suficiente, mesmo que, conforme as previsões, a China recupere um crescimento de 2-3% até o final do ano. Dado os colapsos no Ocidente, o mundo terminará com um saldo negativo e será a primeira vez desde 1961. Quando, por ironia da história, quem arrastou a média mundial para baixo - foram os anos do boom econômico na Europa e do rearmamento pró-Vietnã nos EUA - foi justamente a China, com o clamoroso fiasco da política do “Great Leap Forward” de Mao que levou a uma queda de 26% no PIB per capita.
De uma maneira ou de outra, não é de hoje que a China define a tendência global ...
Para os equilíbrios mundiais, não contam apenas os crescimentos ou não dos vários PIBs. Na década de 1960, o PIB chinês era igual ao do Benelux, ainda em 2003, na época da SARS, era pouco menos de 5%, hoje é de 17%. É muito mais grave para o planeta uma crise com a perda de riqueza per capita na China, que afeta 1,4 bilhão de seres humanos, ou na Índia, onde vive outro bilhão, do que um em um país menor. É por isso que é importante para todos que a China e a Índia cresçam. Mas é em outros níveis que os modelos devem ser avaliados, e aqui estamos retornando aos “dois capitalismos”.
Você pode nos explicar melhor?
O capitalismo é um sistema fascinante, mas arriscado. No mínimo porque alimenta o egoísmo daqueles que consideram o enriquecimento o único fim e negligenciam culposamente o resgate dos mais desfavorecidos. Mas o modelo chinês, o capitalismo de estado em um regime autoritário, talvez ajude nas políticas de contenção em caso de pandemias, no entanto é, apesar das aparências, mais exposto a confrontos sociais e rebeliões violentas. Quando uma crise eclode, as consequências são sempre imprevisíveis: mesmo no Ocidente estão recuperando fôlego, devido a uma espécie de propriedade transitiva que não é facilmente explicável, os movimentos extremistas, radicais e nacionalistas que se alicerçam no crescente descontentamento social. É o maior risco, e é provável que a perda de apelo para os regimes livres e democráticos corre o risco de ser, esta sim, realmente duradoura.
Por que os movimentos extremos toleram mal as restrições sociais?
É mais complexo. A centralização do poder dá a ilusão de ser capaz de superar melhor as crises, e alguém inveja a despótica China, porque impôs de forma militar as proibições e superou a crise em dois meses. Mas a vontade e aceitação de mudanças, mesmo a longo prazo, dependem da inteligência individual, mesmo em coisas menores. Vejamos o caso mais banal: as viagens aéreas: bastou que um idiota, quinze anos atrás, anunciasse que estava com o explosivo nos sapatos para que se decidisse que todos deveriam tirar os sapatos no aeroporto. E essa obrigação permaneceu mesmo que felizmente nunca mais tenha se visto nenhuma pirataria aérea. O mesmo acontecerá com os controles sanitários e, em muitos casos, de potencial ajuntamento. Nós também nos sentiremos diferentes: quando formos entrar em um quarto de hotel, sabe-se lá por quanto tempo continuaremos a nos perguntar quem já esteve lá antes e se o hotel aplica políticas sanitárias adequadas.
Quanto tempo isso durará como os outros reflexos condicionados?
Como eu dizia, é provável que tenham uma duração muito longa, talvez desproporcional, especialmente se, no meio tempo, tiver chegado uma vacina. Mas permita-me esclarecer melhor, voltando ao aspecto central: a globalização não acabou. Mais cedo ou mais tarde, ela recomeçará, embora gradualmente e talvez com modalidades diferentes, isso irá depender das conveniências das empresas que poderão, pelo menos parcialmente, voltar a estar presentes. Provavelmente permanecerá por muito tempo o medo de depender demais de um determinado país estrangeiro, mas está provado que dificilmente as sociedades humanas realmente conseguem aprender as lições da história, especialmente quando terá finalmente acabado a angústia coletiva desta terrível pandemia.
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“A pandemia e o retorno do trabalho artesanal”. Entrevista com Branko Milanović - Instituto Humanitas Unisinos - IHU