17 Setembro 2019
“O capital no século XXI transformou a maneira como os economistas examinam a desigualdade, Capital e Ideologia transformará a maneira como os cientistas políticos examinam sua própria disciplina”, avalia Branko Milanović, economista, ao analisar o novo livro de Thomas Piketty.
O artigo é publicado por Ctxt, 11-09-2019. A tradução é do Cepat.
Os livros de Thomas Piketty são sempre monumentais, alguns mais que outros. Los altos ingresos en Francia en el siglo XX. Desigualdades y redistribuciones, 1901-1998, abarcava mais de dois séculos de desigualdade em relação à renda e à riqueza, além das mudanças políticas e sociais que ocorreram na França. O sucesso internacional de vendas da O Capital no século XXI ampliou essa perspectiva aos países ocidentais mais importantes (França, Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha).
Seu novo livro Capital e ideologia (sem data prevista para publicação em espanhol, embora publicado em francês como Capital et idéologie e com data de publicação em inglês prevista para março de 2020, com o título Capital and Ideology) amplia ainda mais a perspectiva , para abarcar o mundo inteiro e apresentar um panorama histórico de como se tratou, e justificou, a propriedade dos ativos (incluindo as pessoas) em diferentes sociedades históricas, da China, Japão e Índia às colônias americanas governadas por países europeus, além das sociedades feudalistas e capitalistas da Europa. Apenas mencionar o escopo geográfico e temporal do livro é suficiente para o leitor ter uma ideia de quão ambicioso que é.
Antes de resenhar Capital e ideologia, vale a pena mencionar a importância da abordagem global de Piketty, presente em seus três livros. Sua abordagem se caracteriza pelo retorno metodológico da disciplina econômica a suas funções originais e principais: ser uma ciência que esclarece interesses e explica o comportamento dos indivíduos e classes sociais em sua vida cotidiana (material).
Essa metodologia rejeita o paradigma dominante durante o último meio século, que ignorou progressivamente o papel desempenhado por classes e indivíduos heterogêneos no processo de produção e, em vez disso, tratou todas as pessoas como se fossem agentes abstratos que maximizam suas próprias rendas sob determinadas limitações. O paradigma dominante esvaziou a economia de quase todo o seu conteúdo social e apresentou uma visão da sociedade que era tão abstrata quanto falsa.
A reintrodução da vida real na economia, realizada por Piketty e alguns outros economistas (não totalmente por acaso, já que a maioria são economistas que se interessam na desigualdade), é muito mais do que um simples retorno às origens da economia política e a disciplina econômica, porque hoje temos muito mais informações (dados) do que tinham os economistas há cem anos atrás, e não apenas sobre nossas próprias sociedades contemporâneas, mas também sobre sociedades passadas.
Essa combinação entre a metodologia original da economia política e macrodados é o que chamo de "turbo-anais", em homenagem ao grupo de historiadores franceses, precursor da visão da história como uma ciência social focada no conjunto de forças sociais e econômicas e políticas que compõem o mundo. Os temas que interessavam à economia política clássica e aos autores associados à Escola dos Anais podem agora ser estudados na atualidade de forma empírica e até de maneira econométrica e experimental, algo que eles não puderam fazer, tanto pela falta de informação quanto pela inexistência de metodologias modernas.
É, portanto, neste contexto, creio eu, em que se deve analisar o livro Capital e ideologia de Piketty. Que sucesso teve sua abordagem, que agora se aplica ao mundo inteiro e a um horizonte de tempo muito extenso?
Para os propósitos desta resenha, dividirei o livro de Piketty em duas partes: a primeira, que mencionei anteriormente, se concentra nas justificativas ideológicas da desigualdade em diferentes sociedades (partes 1 e 2 do livro e, em certa medida, a parte 3), a segunda introduz uma maneira completamente nova de estudar as recentes divisões políticas nas sociedades modernas (parte 4). Tenho algumas dúvidas sobre o sucesso de Piketty na primeira parte, apesar de sua enorme erudição e suas habilidades como narrador, porque o sucesso é um pouco difícil de alcançar quando se trata de algo tão imenso, geográfico e temporalmente, mesmo para as mentes mais bem informadas que estudaram diferentes sociedades durante a maior parte de suas vidas.
A análise de cada uma dessas sociedades requer um alto grau de conhecimento histórico sofisticado em relação a dogmas religiosos, organização política, estratificação social e dados semelhantes. Darei apenas dois exemplos de autores que tentaram fazer isso, um anterior e outro mais recente: Max Weber, ao longo de sua vida (e mais especificamente em Economia e sociedade), e Francis Fukuyama em sua obra-prima em dois volumes sobre as origens da ordem econômica e política. Nos dois casos, os resultados não receberam aprovação unânime de especialistas que estudam sociedades e religiões individuais.
Nas análises que faz de algumas dessas sociedades, Piketty realiza um exame de certo modo "direto" ou simplificado de sua estrutura e evolução, que às vezes parece plausível, mas superficial. Em outras palavras, cada uma dessas sociedades históricas, muitas das quais duraram séculos, passou por diferentes fases de seu desenvolvimento, fases sujeitas a várias interpretações. Tratar essas evoluções como se fossem uma história simples e não disputada é reducionista. É escolher uma narrativa histórica plausível onde existem muitas, e isso contrasta desfavoravelmente com a narrativa rica e ponderada que o próprio Piketty emprega em Los altos ingresos en Francia en el siglo XX.
Embora eu tenha minhas dúvidas sobre a primeira parte do livro, não tenho sobre a segunda. Nessa parte, vemos Piketty tirar proveito de suas melhores qualidades: um uso ousado e inovador dos dados que resulta em uma nova maneira de observar fenômenos que todos víamos, mas que éramos incapazes de definir com tanta precisão. Nela, Piketty "joga" no conhecido "campo" da história econômica ocidental que domina tão bem, provavelmente melhor do que qualquer outro economista.
Esta parte do livro se fixa de forma empírica nas razões pelas quais a esquerda e os partidos social-democratas se transformaram paulatinamente de partidos das classes pobres e menos instruídas para se tornarem partidos das educadas classes médias e médias altas. Em grande parte, os partidos de esquerda mudaram tradicionalmente porque sua agenda social-democrata original teve muito sucesso em oferecer possibilidades de educação e altas rendas às pessoas de origem humilde nas décadas de 50 e 60 do século passado.
Essas pessoas, as "vencedoras" da social-democracia, continuaram a votar nos partidos de esquerda, mas seus interesses e sua visão de mundo não eram mais os mesmos de seus pais (com menos educação). Então, é quando mudou a estrutura social interna dos partidos, como resultado de seu próprio sucesso político e social. Nas palavras de Piketty, tornaram-se os partidos da “esquerda brâmane” (la gauche brahmane), diferentemente dos partidos conservadores de direita, que permaneceram os partidos da “direita comerciante” (la droite marchande).
Para simplificar, a elite se dividiu entre "brâmanes" instruídos e "investidores" com mentalidade comercial, e capitalistas. No entanto, esse desenvolvimento deixou sem representação as pessoas que não experimentaram uma mobilidade social ascendente em termos de educação e renda e, a partir dessas pessoas se nutre a atual onda "populista".
De forma absolutamente extraordinária, Piketty mostra a evolução da educação e da renda dos eleitores dos partidos de esquerda, usando dados de longo prazo muito semelhantes em todas as principais democracias desenvolvidas (e na Índia). O fato de que o argumento seja tão constante para todos os países confere uma probabilidade quase misteriosa a sua hipótese.
Também é surpreendente, pelo menos para mim, que aparentemente os cientistas políticos nunca usaram esses dados multianuais e de múltiplos países para estudar esse fenômeno. Essa parte do livro de Piketty provavelmente transformará, ou pelo menos afetará, a maneira como os cientistas políticos examinarão novos reajustes políticos e as novas políticas de classe nas democracias avançadas, nos próximos anos. Da mesma forma como O capital no século XXI transformou a maneira como os economistas examinam a desigualdade, Capital e Ideologia transformará a maneira como os cientistas políticos examinam sua própria disciplina.
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O novo livro de Piketty devolve a economia política às suas origens. Artigo de Branko Milanović - Instituto Humanitas Unisinos - IHU