09 Abril 2020
Passados 20 dias da aprovação pela Câmara dos Deputados, o governo federal anunciou as regras e datas para o começo do pagamento do auxílio emergencial para pessoas em situação vulnerável. Para Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a ajuda demorou a ser implementada. Por outro lado, a economista lembra que a assistência e os demais serviços de saúde ofertados à população neste período de crise só são possíveis porque as privatizações das estatais pretendidas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pelo ex-mandatário Michel Temer (MDB) ainda não foram totalmente concretizadas.
“O coronavírus está colocando nu esse Estado, que a gente questionava e precisa melhorar, mas que funciona. A classe média está tendo uma aula, estão vendo o que tinha no Estado que eles ainda não tinham destruído. A principal lição que temos é que não podemos deixar que volte esse papo de que o Estado tem que acabar”, explica Campello.
Para a ex-ministra, o governo federal, que sofre diante da pandemia do coronavírus, não pode ser encarado como inábil. “Antes, eu dizia que esse governo é incompetente, mas eu acho que é pior, é ruindade mesmo, é um governo cruel e que não está preocupado em solucionar os problemas da população pobre.”
Dentre as importantes lições a serem aprendidas no contexto de vulnerabilidade gerado pela propagação da covid-19, segundo ela, destaca-se a importância do desenvolvimento científico, que tem sofrido com seguidos cortes de verbas nos últimos anos.
A percepção da sociedade sobre a fragilidade do modelo neoliberal no que diz respeito à garantia de direitos básicos à população também foi tema para a ex-ministra. "A grande maioria dos teóricos que sempre seguiram a agenda neoliberal, hoje dizem que é para suspender todas as reformas e gastar. No Brasil e em várias partes do mundo."
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Campello analisou técnica e politicamente o benefício que será pago pelo governo federal, além de apresentar o projeto “Ninguém demite ninguém”, elaborado pelo PT, que sugere um modelo de garantia de renda para trabalhadores de diversos estratos sociais, além de medidas para preservar as empresas brasileiras.
A entrevista é de Nina Fideles, publicado por Brasil de Fato, 07-04-2020.
O Estado brasileiro acumulou bastante experiência e dados com o Bolsa Família. A senhora acredita que o governo terá capacidade de executar o benefício emergencial a partir do Cadastro Único?
Talvez seja importante explicar um pouco sobre o que estamos falando, muita gente nem sabe se tem direito. O grande debate hoje é que não temos ainda uma solução de como combater o vírus. Então, quanto mais a gente conseguir garantir que as pessoas fiquem em casa, melhor será para evitar que o número de pessoas que adoeçam seja grande e que essas pessoas não lotem o sistema de saúde.
A melhor medida é o isolamento, é ficar em casa. Mas a população pobre e o trabalhador, não têm como ficar em casa se não tiver renda, principalmente aquele trabalhador que está na informalidade, que chamamos de autônomo, e o desempregado. Se essas pessoas não saem para trabalhar, elas não recebem.
Desde o final de janeiro sabemos que esse furacão vai chegar no Brasil e o governo não faz nada, as oposições se reuniram e apresentaram uma proposta de renda básica emergencial, à revelia do governo, que pegasse a população, porque o governo estava propondo um reforço de R$ 200 para um número limitado de pessoas. Vamos atingir 100 milhões de pessoas, umas 30 milhões de famílias. Isso está aprovado tem duas semanas e não fez nada até hoje. Ele tem que pagar. Não é difícil. É lógico que tem uma série de medidas que já poderiam ter sido feitas, porque as pessoas estão precisando de dinheiro e as crianças já estão em casa sem merenda escolar.
Quem vai receber esse benefício?
As pessoas que tem o Bolsa Família tem que receber imediatamente, é só ir com o cartão e sacar. Quem está no Cadastro Único, o governo poderia pegar o aplicativo do Cadastro Único e pagar esse povo via aplicativo logo, só com as informações bancárias.
As pessoas estão ficando desesperadas e elas não tem como continuar em casa. Se essas pessoas saírem às ruas, como já está acontecendo, tem gente abrindo comércio, as pessoas precisam ganhar o pão de cada dia, não é gente que tem dinheiro guardado.
O governo sabia que teria que montar essa operação, se ele estivesse fazendo isso desde o começo de março, as pessoas já estariam recebendo esse valor. Se fosse uma guerra, já tínhamos explodido.
Vimos vários desmontes de políticas públicas nos últimos anos. Ainda assim, o governo terá condições de fazer esses pagamentos com urgência?
É bom lembrar que o Cadastro Único estava pronto, o Estado estava preparado para poder atuar em um momento como esse. Isso só aconteceu porque tínhamos política pública e uma rede de proteção voltada para a população de baixa renda.
Nós podemos pagar porque temos um banco público acostumado para fazer esse tipo de pagamento, e o governo queria privatizar a Caixa Econômica. Então, precisamos lembrar que a gente tem o Cadastro Único, que temos o Sistema Único de Saúde e a Caixa Econômica porque eles não tinham privatizado.
Não vamos nos esquecer que o pouco que estamos conseguindo fazer, porque eles ainda não tinham privatizado tudo. O governo Temer e o Bolsonaro não terminaram tudo, ainda existe um conjunto de ferramentas públicas e ainda temos parte da população que ainda está na formalidade, ainda bem.
Antes, eu dizia que esse governo é incompetente, mas eu acho que é pior, é ruindade mesmo, é um governo cruel e que não está preocupado em solucionar os problemas da população pobre.
A senhora falou sobre os assalariados. O socorro aos bancos e a preocupação com as empresas foi imediato...
Essas pessoas vão passar fome. O trabalhador com carteira assinada está sob uma pressão terrível, porque o governo deu uma sinalização equivocada para essa população e para esses empresários. O governo disse, num primeiro momento, que poderia suspender o contrato por quatro meses e o salário. Como você suspende o salário de um trabalhador por quatro meses? O trabalhador vai viver do quê?
Na semana passada, baixaram uma Medida Provisória que é uma aberração. A Medida Provisória diz que o empregador pode reduzir a jornada de trabalho. Presta atenção, reduzir jornada de trabalho? O trabalhador precisa ficar em casa. Não pode suspender o salário e nem o emprego dessas pessoas. Só deve trabalhar quem está em serviços essenciais, é disso que estamos falando. Loja de roupa tem que fechar e não pode falir. A gente sabe que a empresa tem que ter capital de giro.
O governo apresentou essa proposta que é uma aberração e nós acreditamos que nós vamos ter uma perda de mais de 60% da renda do trabalhador, em média. Nós apresentamos, o Partido dos Trabalhadores, uma proposta global com um nome bem bonito, que é ‘Ninguém demite ninguém’. Por outro lado, propomos criar condições para que a empresa não quebre.
A gente sabe, por exemplo, que a empresa precisa acessar uma linha de crédito para essa empresa poder sobreviver, em que o empresário comece a pagar somente um ano após o fim da pandemia.
Para o trabalhador, a proposta não é muito simples, nós precisamos olhar primeiro o salário. Se o sujeito ganha R$ 15 mil, o Estado não vai pagar o salário dele inteiro. Para a micro e pequena empresa, o governo vai pagar todos os salários, até três salários mínimos. Se for de micro e pequena empresa e ganhar acima disso, o Estado vai pagar 75% do salário e a empresa pagará o que falta, mas ela terá essa linha de crédito para começar a pagar somente um ano após a pandemia. Se for uma grande empresa, a proposta é que o governo pague até 75% do salário. Tudo que não for pago por governo ou empresa, vai ser transformado em banco de hora. O trabalhador não pode perder nada e tem que ficar em casa.
A gente sabe que existe uma divergência em concepção de política pública. Alguns vão dizer que o Estado não pode financiar todo mundo. Tem diversas falsas questões sobre políticas de bem estar social. Alguns se perguntarão se o Estado tem recursos para pagar esse projeto, mas mais profundo que isso, é a concepção de Estado. A pandemia está colocando em xeque essa concepção de estado neoliberal?
É impressionante, a grande maioria dos teóricos que sempre seguiram a agenda neoliberal, hoje dizem que é para suspender todas as reformas e gastar. No Brasil e em várias partes do mundo. Você pega a Inglaterra, que é onde essa agenda neoliberal surge, mesmo lá, o Estado está pagando 75% dos salários e o sistema de saúde é público.
Agora, está ficando cada vez mais claro, imagina como o Brasil estaria sem o Sistema Único de Saúde, como o Chile? No Chile, a pessoa só sai de casa com autorização da polícia. Por quê? Porque essa é a medida que permite que atravessemos a crise. No caso do Brasil, estamos vivendo o pior cenário, como ao contrário, acena para a população sair de casa.
Que mundo a senhora acha que encontramos após a pandemia?
Isso vai depender mais do que vamos aprender com a atual crise. Já recebemos lições importantes, uma delas é a importância da ciência. Estamos tentando adiar ao máximo a crise para que a ciência nos dê uma solução. A ciência, que vinha sendo desvalorizada e tendo recursos cortados no Brasil, mostrou sua gigantesca importância.
Segunda coisa é importante ter um sistema público de saúde, o Brasil tem e demos um salto importante em número de leitos e unidades, o Mais Médicos foi um feito maravilhoso, levando médicos para mais de 700 municípios do país. O SUS é necessário e importante, vamos parar de falar mal do SUS.
O terceiro é ter um Cadastro Único e uma rede de proteção, isso é estratégico ao país. Hoje, podemos chegar rapidamente na população de baixa renda. Estamos falando de toda uma rede pública que estava sendo precarizada, agora as pessoas estão se dando conta da importância da merenda escolar, que não é mais aquele biscoito com leite.
Eu estava vendo um menino dizendo que come melancia na escola, tem gente descobrindo que criança come arroz, feijão e carne moída.
Em alguns lugares, alimentos da agricultura familiar.
É isso. Então, vamos lembrar da merenda escolar. Eu chamo de merenda escolar, mas é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE, que exige a compra de 30% de alimentos da agricultura familiar, que é justamente para as crianças terem acesso à comida de verdade.
O coronavírus está colocando nu esse Estado, que a gente questionava e precisa melhorar, mas que funciona. A classe média está tendo uma aula, estão vendo o que tinha no Estado que eles ainda não tinham destruído. A principal lição que temos é que não podemos deixar que volte esse papo de que o Estado tem que acabar.
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Renda básica só é possível porque ainda não privatizaram tudo, diz Tereza Campello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU