Epidemia de neoliberalismo. Artigo de Raúl Zibechi

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14 Março 2020

“A desigualdade é como a da Idade Média (por volta de 1500), quando os ricos corriam para suas casas de campo, quando se anunciava a peste, enquanto os pobres eram deixados sozinhos, prisioneiros da cidade contaminada, onde o Estado os alimentava, isolava, bloqueava e vigiava”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 13-03-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Séculos atrás, pudemos aprender a importância dos ambientes sociais e naturais onde os vírus se enraízam e se multiplicam, porque vivemos com eles e nem sempre nos ameaçam. A peste negra deveria ter nos ensinado que os vírus pré-existentes se multiplicam e se espalham quando são criadas as condições apropriadas. No nosso caso, essas condições foram criadas pelo neoliberalismo.

Em Plagas y pueblos, William McNeill destaca algumas questões da atualidade, quando analisa a peste negra que varreu a Europa, a partir de 1347. Os cristãos, ao contrário dos pagãos, cuidavam dos doentes, ajudavam-se mutuamente em tempos de pestilência e, desse modo, continham os efeitos da peste (Siglo XXI, p. 122). A saturação de seres humanos, a superpopulação, foi fundamental na disseminação da peste (p. 163).

A pobreza, uma dieta pouco variada e a não observação dos hábitos, costumes locais das cidades, devido à chegada de novos habitantes, transformaram as pestes em desastres (p. 155).

Braudel acrescenta que a peste, ou hidra de mil cabeças, constitui uma constante, uma estrutura da vida dos homens (As estruturas do cotidiano, p. 54). No entanto, como aprendemos pouco.

A peste negra destruiu a sociedade feudal, devido à escassez aguda de mão de obra resultante da morte, em poucos anos, de metade da população europeia e, também, pela perda de credibilidade das instituições. Esse é o medo que agora leva os estados a fechar milhões.

A epidemia de coronavírus em andamento tem algumas peculiaridades. Vou me concentrar no social, porque ignoro questões científicas elementares.

A epidemia atual não teria o impacto que tem, se não fosse por três longas décadas de neoliberalismo, que causou danos ambientais, de saúde e sociais provavelmente irreparáveis.

A Organização das Nações Unidas, através do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), reconhecem que a epidemia é um reflexo da degradação ambiental. O relatório observa que as doenças transmitidas de animais para humanos estão crescendo e piorando na medida em que os habitats selvagens são destruídos pela atividade humana, porque os patógenos se espalham mais rapidamente para rebanhos e seres humanos.

Para prevenir e limitar as zoonoses, é necessário interromper as múltiplas ameaças aos ecossistemas e à vida selvagem, entre elas, a redução e fragmentação de habitats, o comércio ilegal, a contaminação e proliferação de espécies invasoras e, cada vez mais, a mudança climática.

As temperaturas no início de março (inverno) em algumas regiões da Espanha estão até 10 graus acima do normal. Além disso, as evidências científicas relacionam a explosão de doenças virais com o desmatamento”.

A segunda questão que multiplica a epidemia são os cortes acentuados no sistema de saúde. Na Itália, nos últimos 10 anos, 70.000 leitos hospitalares foram fechados, foram fechados 359 departamentos e vários pequenos hospitais foram abandonados. Entre 2009 e 2018, os gastos com saúde cresceram 10%, frente aos 37% da OCDE. Na Itália, existem 3,2 leitos para cada mil habitantes. Na França 6 e na Alemanha 8.

Entre janeiro e fevereiro, o setor de saúde espanhol perdeu 18.320 trabalhadores, em plena expansão do coronavírus. Os sindicatos do setor denunciam abuso na contratação de temporários e precariedade no emprego, enquanto as condições de trabalho são cada vez mais duras. Essa política neoliberal em relação ao sistema de saúde é uma das razões pelas quais a Itália colocou o país inteiro em quarentena e a Espanha pode seguir o mesmo caminho.

A terceira questão é a epidemia de individualismo e de desigualdade, cultivadas pelos grandes meios de comunicação que se dedicam a incutir medo, informando de maneira enviesada. Por mais de um século, sofremos uma poderosa ofensiva do capital e dos estados contra os espaços populares de socialização, enquanto são abençoadas as catedrais do consumo, como os shoppings.

O consumismo despolitiza, desidentifica e implica uma mutação antropológica (como alertou Pasolini). Hoje, há mais pessoas que desejam ter animais de estimação do que filhos. Este é o mundo que criamos e pelo qual somos responsáveis.

As medidas que se tomam, a longo prazo, podem agravar as epidemias. O Estado suspende a sociedade ao isolar e confinar a população em suas casas, proibindo até mesmo o contato físico.

A desigualdade é como a da Idade Média (por volta de 1500), quando os ricos corriam para suas casas de campo, quando se anunciava a peste, enquanto os pobres eram deixados sozinhos, prisioneiros da cidade contaminada, onde o Estado os alimentava, isolava, bloqueava e vigiava (Braudel p. 59).

O modelo do panóptico carcerário digitalizado, que suspende as relações humanas, parece ser o objetivo estratégico do capital para não perder o controle na atual transição sistêmica.

 

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