08 Novembro 2024
Livro de Marcelo Rubens Paiva narra odisseia da família de uma importante vítima da ditadura. Levado às telas por Walter Salles, venceu melhor roteiro em Veneza e concorre para representar o Brasil no Oscar 2025.
A reportagem é de André Bernardo, publicada por DW, 06-11-2024.
O escritor Marcelo Rubens Paiva gelou ao visitar o set de filmagem de Ainda estou aqui. A direção de arte do longa-metragem de Walter Salles encontrou no bairro da Urca, zona sul do Rio de Janeiro, um casarão idêntico àquele em que a família do autor morou entre 1965 e 1971 na rua Delfim Moreira, número 80, no Leblon: de arquitetura portuguesa, com paredes brancas e batentes azuis.
Ainda na fase de pré-produção, Marcelo e suas irmãs, Vera, Eliana, Ana Lúcia e Beatriz, mandaram os croquis da casa e fotos de sua decoração para o diretor de arte Carlos Conti. Ao entrar na locação, Marcelo sentiu como se tivesse voltado no tempo: móveis, quadros, tapetes... Até o cheiro de maresia era familiar.
"O filme é um retrato fiel do que aconteceu. As 'licenças poéticas' são pequenas. Não houve nada gritantemente diferente. A única diferença é que sou mais bonito do que o ator que me interpreta. Mais bonito e menos modesto", diverte-se Marcelo que, no filme, é interpretado por Antônio Saboia na fase adulta.
Naquele dia, Walter Salles filmou a cena em que Eunice (Fernanda Torres) comunica aos filhos que eles estão de mudança para São Paulo. Por causa do sumiço do marido, o engenheiro civil Rubens Paiva (Selton Mello), vão todos morar na casa do avô paterno, em Santos (SP).
Entre uma tomada e outra, a atriz Cora Mora, que dá vida à caçula Babiu, apelido de Beatriz, pergunta a Marcelo se, quando criança, ele era tão levado quanto Guilherme Silveira, seu colega de elenco: "Era levado, sim. Agora, virei um senhor que chora à toa", brinca o escritor, de 65 anos na crônica "Marcelo Rubens Paiva encontra sua infância congelada em set de filme", publicada na Folha de São Paulo de 31 de agosto de 2024.
Quem frequentou muito o casarão de dois andares, na esquina da rua Delfim Moreira com a Almirante Pereira Guimarães, foi o cineasta Walter Salles. À época, ele tinha 13 anos e era amigo de Ana Lúcia, a Nalu, uma das irmãs de Marcelo. O pai, Rubens Paiva (1929-1971), chegou a levá-los de carro, um modelo Opel Kadett vermelho, ao show do cantor Wilson Simonal, no Maracanãzinho, em 1969. "O fato de uma menor de idade ter sido presa, aos 15 anos, mostra que a violência da ditadura não tinha limites", adverte o diretor, referindo-se à outra filha do casal, Eliana.
A adolescente ficou presa no DOI-Codi, o maior centro de tortura da América Latina, por 24 horas, e Eunice, sua mãe, por 12 dias, de 21 de janeiro a 2 de fevereiro. Já Rubens Paiva, deputado federal eleito e cassado em 1964, nunca mais voltou para casa. Foi preso na manhã do dia 20 e executado na noite de 21 para 22 de janeiro de 1971. Segundo relatos de testemunhas, foi torturado ao som de Jesus Cristo, de Roberto e Erasmo Carlos. Seu corpo nunca foi encontrado. Eunice Paiva morreu em 13 de dezembro de 2018, vítima de Alzheimer, aos 86 anos.
Eunice Paiva e Rubens Paiva (Foto: Family Collection).
Marcelo Rubens Paiva publicou Ainda estou aqui em 2015. Pelo menos dois outros de seus livros também viraram filmes. O primeiro, Feliz ano velho (1982), sobre o acidente que o deixou paralisado do pescoço para baixo em 1979, foi dirigido por Roberto Gervitz em 1987 e o segundo, Malu de bicicleta (2002), por Flávio Ramos Tambellini, em 2011.
A princípio, a Globo chegou a cogitar adaptar Ainda estou aqui para a TV. O projeto de minissérie, porém, nunca saiu do papel. Uma escola de samba do grupo de acesso do Rio também demonstrou interesse em transformar a história de Rubens Paiva em enredo de Carnaval. Por falta de tempo, a família declinou do convite.
Em 2017, Walter Salles adquiriu os direitos de adaptação do livro e o roteiro começou a ganhar vida. Os responsáveis por transformar um romance de 296 páginas num longa de 135 minutos são Murilo Hauser e Heitor Lorega.
"O livro conta com a imaginação do leitor para navegar nas memórias de seu narrador. No filme, optamos por assumir o ponto de vista da Eunice e transformá-la na protagonista", explica Murilo. "Para construir essa personagem com mais complexidade, tivemos que expandir nossa pesquisa além das lembranças do Marcelo e contamos com a generosidade de todas as irmãs que dividiram conosco suas memórias", completa Heitor.
Ao longo de oito anos de construção de roteiro, Murilo e Heitor trocaram mensagens e telefonemas com Marcelo. A cada novo tratamento, mandavam o roteiro para o escritor. "Foi um excelente parceiro, que nos deu toda a liberdade para escrever, inclusive quando começamos a nos afastar de seu livro para construir um relato cinematográfico a partir dele", elogia Murilo. "Não atuou como colaborador, mas, sim, como consultor: não escreveu diálogos, nem mexeu nas cenas, mas serviu como fonte de pesquisa para esclarecer dúvidas", completa Heitor.
Nessas incontáveis trocas de e-mails, Marcelo procurava dar ideias. Não queria que o filme ficasse didático ou, como ele mesmo diz, "wikipediano": "É o grande erro do cinema biográfico", atesta. Não ficou. Tanto que Ainda estou aqui ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza. "Seu maior mérito é captar a alma do livro", elogia o autor. "Minha mãe é o porquê de ele existir. Queria provar que a verdadeira heroína da família era ela. Algo que só descobri depois de virar pai. Criou os cinco filhos sozinha. E ainda militou pelos direitos humanos", orgulha-se.
O roteiro é bastante fiel ao livro. Como o próprio autor reconhece, são poucas as "liberdades poéticas" tomadas pelos roteiristas. Uma delas é Pimpão: o cachorro da família era, na verdade, um gato. Ou vários gatos. "Cachorro é relativamente mais fácil de ser filmado", explica Murilo. Outro exemplo: as filmagens de Super-8 de Vera Paiva, a Veroca, não existiam. "Foram criadas para dar mais visualidade às memórias da família", conta Heitor. Mais um: no livro, quem foi até o quartel do DOI-Codi buscar o carro de Rubens Paiva, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, foi a tia Renée, a irmã mais velha dele. No filme, é a própria Eunice quem leva as roupas e os remédios do marido.
Nas cenas da invasão, há pequenas discrepâncias em relação ao livro. O número de invasores (três ou seis?) e o tipo de arma (pistola ou metralhadora?) é um exemplo. No livro, as irmãs jogam cartas com dois agentes à paisana; no filme, Marcelo brinca de totó com um deles. "Durante o processo de pesquisa, coletamos duas ou mais versões de um mesmo evento, às vezes, até mesmo versões contraditórias ao relato do Marcelo no livro", observa Murilo. "Mas, há também memórias muito concretas que foram usadas no roteiro, como a lembrança de Babiu da única vez que viu a mãe chorando, quando invadiu seu quarto com uma boneca quebrada", acrescenta Heitor.
Quem também aparece no filme é a bailarina e coreógrafa Dalal Achcar, de 87 anos. Ela e Eunice se conheceram em 1966 quando Rubens Paiva voltou do exílio na França e alugou uma casa no Rio. "Era uma mulher de aparência frágil, mas com grande força interior", define. Na época, Dalal Achcar criou uma turma de balé só para adultos como uma forma de terapia. Eram tempos angustiantes, lembra: "Eunice dizia que aquela aula era a melhor hora do seu dia. Gostava de dançar e levava jeito para o balé". No longa, Dalal Achcar é vivida por Camila Márdila.
Ainda estou aqui estreia nesta quinta-feira, 7 de novembro. É o representante do Brasil na disputa por uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional, em 2025, cuja lista com pré-selecionados será anunciada em 17 de dezembro.
Quem já assistiu ao filme, tanto no Festival de Veneza quanto na pré-estreia em São Paulo, e gostou muito do resultado é a psicóloga Vera Paiva, a Veroca: "Senti um misto de emoções: tristeza, indignação, revolta... Mas, principalmente, saudade!", emociona-se. "É um filme delicado, que conta uma história que não é só nossa e que vai tocar muitos corações. Espero que fortaleça a democracia, que se constrói todo dia e a cada geração."
O filme ainda nem estreou e Marcelo Rubens Paiva já entregou os originais de seu novo livro, O novo agora, para a Companhia das Letras. Pai de Joaquim e Sebastião, de dez e sete anos, ele recebeu do editor Luiz Schwarcz a encomenda de escrever um livro sobre paternidade. O novo agora começa onde Ainda estou aqui termina: "Não é mais um livro sobre a minha mãe. É sobre o que veio depois: as manifestações de 2013, o governo Bolsonaro, a pandemia de covid-19...", enumera. A previsão de lançamento é para o início de 2025.
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Filme 'Ainda estou aqui': ficção e realidade da ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU