02 Julho 2024
"Como você, irmão Francisco, somos da opinião 'que não só vivemos num tempo de mudanças, mas sim num tempo de virada que levanta questões novas e antigas, diante das quais é justificado e necessário debater' (Carta ao Povo de Deus peregrino na Alemanha, 29 de junho de 2019). Com esta proposta para o Sínodo universal gostaríamos de lhe seguir num percurso que "encoraja-nos a buscar uma resposta franca à situação atual" (ibidem). Permita-nos fazer algumas observações em apoio à nossa proposta" escrevem diversos autores, em carta aberta publicada por Frauenweihe Jetzt, 21-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Autêntica sinodalidade: abordar o sacerdócio feminino no Sínodo universal.
Caro irmão Francisco,
"Por que uma mulher não pode se tornar Papa?", pergunta uma menina que se prepara para a primeira Comunhão. A catequista cita a tradição da Igreja e os seus ensinamentos em termos adequados para as crianças. “Então a Igreja discrimina as mulheres”, é a resposta espontânea de outro membro.
É uma situação que se vive diariamente em muitos países europeus e em muitos outros “povos cristãos” (Pacem in terris, 22). A pergunta é feita não apenas pelas crianças, mas também por muitos católicos e católicas adultos. A Igreja deveria levá-la a sério, ou pelo menos o deveria num Sínodo universal que se propôs o objetivo de “escutar”. Afinal, a pergunta não nasce de um espírito de hostilidade, mas do amor pela fé e pela Igreja.
Ignorar a questão significa excluir da sinodalidade a possibilidade de articular o sensus fidei do clero e dos fiéis das grandes culturas. É a tudo isso que nos opomos com esta Carta aberta.
Nós sabemos: a Igreja católica romana enfrenta enormes desafios e problemas. O mundo está em turbulência e a nossa Igreja deve abordar esses desenvolvimentos sem perder o núcleo de sua fé.
Isso levou há vários anos a fortes controvérsias na Igreja. Em muitas Igrejas regionais e na Igreja universal essas controvérsias causaram feridas, para cuja cura só existe uma solução: a comunhão posta em prática num diálogo vivo e aberto. O Sínodo universal 2021-2024 está justamente criando um espaço para isso.
Um caminho para a cura só será encontrado se o Sínodo universal enfrentar também uma questão urgente e importante como a admissão das mulheres ao sacerdócio.
Como você, irmão Francisco, somos da opinião "que não só vivemos num tempo de mudanças, mas sim num tempo de virada que levanta questões novas e antigas, diante das quais é justificado e necessário debater" (Carta ao Povo de Deus peregrino na Alemanha, 29 de junho de 2019).
Com esta proposta para o Sínodo universal gostaríamos de lhe seguir num percurso que "encoraja-nos a buscar uma resposta franca à situação atual" (ibidem). Permita-nos fazer algumas observações em apoio à nossa proposta.
Desde o início do Vaticano II, o sacerdócio feminino foi inserido na agenda eclesial e social. Com a primeira ordenação feminina pública pelos "Sete do Danúbio", que aconteceu em 2002, em violação à lei eclesiástica, tiveram início alguns desenvolvimentos dos quais resultou, até o momento, cerca de 300 mulheres sacerdotes contra legem. As atividades (guia de comunidades, por exemplo na Amazônia) e os testemunhos (veja Philippa Rath, Weil Gott es so will) de muitas mulheres testemunham a sua vocação ao sacerdócio.
Esses desenvolvimentos são apoiados por um grande número de organizações que lutam pela ordenação feminina. “Nós somos Igreja” e as associações oficiais de leigos católicos são apenas a ponta visível e pública desse iceberg na Europa. Existem muitas iniciativas semelhantes em todo o mundo que debatem a questão, mesmo que muitas vezes sejam menos visíveis do que na Europa e nos Estados Unidos.
Também os bispos consideram o tema relevante. Em 2022, por exemplo, o bispo missionário católico Erwin Kräutler CPPS destacou com força a necessidade da ordenação feminina ("Stimmen der Zeit", revista dos Jesuítas alemães, março de 2022, pp. 163-169). Ele também fez isso em mérito à vocação da sua irmã biológica Ermelinde (agora falecida), que havia sido por muitos anos assistente pastoral na Áustria. “Ele sempre me perguntava”, escreve o Bispo Kräutler: "Por que, pelo amor de Deus, sou excluída da ordenação sacerdotal? Só porque sou uma mulher?". Agora ela está morta, mas sua pergunta ainda arde em meu coração... Por que as mulheres não podem ser ordenadas? Ainda hoje não encontrei uma resposta que me convença. E eu sei que uma resposta realmente convincente não existe."
Quando o Papa João Paulo II, na Carta apostólica Ordinatio sacerdotales de 1994, rejeitou veementemente a ordenação feminina, concluiu declarando “que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja” (OS, n. 4).
Naturalmente, “definitivo” significa válido enquanto não mudar a visão doutrinária, o que, como sabemos, acontece com frequência. Essas mudanças doutrinárias não são apenas reais, mas também de grande importância, porque transformam os sinais dos tempos em doutrina da Igreja e em uma fé viva. A doutrina atual também é o resultado de tais mudanças.
Antes que isso aconteça, cada cristão não só pode, mas também é encorajado a contribuir para tais mudanças, o que pode acontecer pela reflexão pessoal, mas também pela discussão pública. Qualquer pessoa que trabalhe lealmente por uma mudança da doutrina está respeitando o ensinamento da Igreja e não está agindo contra ele. Quem fala abertamente do sacerdócio feminino ou o aprova não fala de doctrina lata, mas de doctrina ferenda, não da doutrina atual, mas daquela futura. Segue o ensinamento da Igreja, mesmo que expresse dúvidas sobre ele.
Os papas vêm e vão. Apenas a Bíblia permanece. Mas o que a Bíblia diz sobre a ordenação feminina? As opiniões a respeito divergem. Mas a Bíblia não é tão hostil quanto a faz parecer a Igreja.
A mais alta autoridade em matéria de interpretação bíblica, a Pontifícia Comissão Bíblica, estabeleceu já em 1976 que o Novo Testamento não toma nenhuma decisão sobre a ordenação das mulheres ao sacerdócio e, portanto, as afirmações do Novo Testamento não implicam nenhuma proibição das mulheres sacerdotes; nem o plano de salvação de Cristo é superado ou distorcido ao permitir a ordenação feminina.
O documento preparatório do Vaticano para o Sínodo universal “Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão" centra-se justamente na "escuta das Sagradas Escrituras" (capítulo III) como elemento central de uma Igreja sinodal, convidando a "escutar juntos o Espírito" e referindo-se a Jesus: “De um modo que surpreende as testemunhas..., Jesus aceita como interlocutores todos aqueles que saem da multidão: escuta as objeções apaixonadas da mulher cananeia (Mt 15,21-28), que não pode aceitar ser excluída da bênção que Ele traz" (Documento Preparatório, pág. 13).
Uma Igreja sinodal “caminha junta” e por isso convida todos a “falar com coragem e audácia" (Documento preparatório, p. 20). Não é algo que possa ser dado como certo na Igreja católica romana de hoje. Em muitos lugares não é possível, pois na Igreja se oprime a liberdade para fazê-lo.
Nos países europeus, a liberdade de expressão tornou-se muito mais ampla nos últimos tempos.
Qualquer um que hoje declare como normativo o debate sobre a ordenação de mulheres, por exemplo, na Igreja pertence a uma minoria. Quem tenta impedi-lo encontra uma forte resistência nela, na sociedade e na lei.
Dificilmente é levado a sério - mesmo como pastor - porque ao recusar-se a participar no debate desacredita os valores cristãos (cf. Pacem in terris, n. 7) e, portanto, acelera o declínio da Igreja.
Diferente é a situação em muitos países, especialmente fora da Europa. Qualquer um nesses países que falar abertamente de sacerdócio feminino, ou mesmo apenas o considere desejável no futuro, deve temer sanções como a retirada da missio ou outras restrições canônicas e trabalhistas.
Sanções internas como essas, impostas por expressar livremente opiniões sobre o futuro ensinamento da Igreja, são absolutamente inaceitáveis e devem cessar a todo custo.
O Sínodo universal deveria dar o bom exemplo realizando um debate aberto sobre o sacerdócio feminino. Ao fazê-lo, a Igreja defenderia ativamente os valores cristãos, valores que em muitos países continuam a ser gravemente desatendidos por alguns bispos.
Profundamente preocupado pela credibilidade e o futuro da Igreja católica nos nossos países e por um senso de corresponsabilidade pela cura das feridas causadas pelo
silêncio e pela recusa, consideramos urgente e importante permitir e colocar na ordem do dia o debate sobre o sacerdócio feminino na Igreja católica romana no Sínodo universal 2024; um debate que seja:
Os tempos amadureceram. Um Sínodo universal que não se abrisse ao debate sobre o tema do sacerdócio feminino na nossa Igreja atual teria falhado com os seus objetivos.
Desejamos que a Igreja tenha a coragem de reconhecer os sinais dos tempos e de iniciar juntos uma troca e uma cura; em outras palavras, de ser realmente sinodal.
Respeitosamente unidos em Cristo.
Irmã Susanne Schneider, Mônaco de Baviera, Missionaria de Cristo, porta-voz de “OrdensFrauen für MenschenWürde”.
Herbert Bartl, Brunn/Áustria, porta-voz de “Priester ohne Amt”.
Helmut Schüller, Viena, presidente de “Pfarrerinitiative” Áustria.
Harald Niederhuber, Viena, presidente da “Die Laieninitiative”.
Dra. Martha Heizer, Absam/Áustria, presidente “Wir sind Kirche” Áustria.
Claus Geißendörfer, Londres, Equipe de Implementação “Spirit Unbounded”.
Dr. Odilo Noti, Zurique, presidente da “Herbert-Haag-Stiftung für Freiheit in der Kirche”.
Max Stetter, Augsburg, pároco aposentado, porta-voz da “Pfarrer-Initiative Deutschland“.
Christian Weisner, Dachau/Mônaco de Baviera, porta-voz de “Wir sind Kirche” Alemanha.
Mentari Baumann, Lucerna, chefe de grupo “Allianz Gleichwürdig Katholisch”.
Simone Curau-Aepli, Lucerna, “Schweizerische Katholische Frauenbund” SKF.
Dr. Stephan Rohn, Colônia, redação da presente carta, blog “Frauenweihe Jetzt”.
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Carta aberta ao Papa Francisco sobre o Sínodo universal dos Bispos 2024 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU