03 Junho 2024
"Olhando para as imagens de sujeitos eclesiais, desde as representações do Concílio de Niceia em 325 até as fotografias do último consistório, não se pode deixar de pensar que por “reserva masculina” se queira dizer um lugar onde podem ficar apenas os homens. E, convenhamos, ver todos aqueles homens, só homens, exclusivamente homens, causa um pouco de tristeza e meio que deixa sem ar", escreve Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga, em Castiglione delle Stiviere, Itália, em artigo publicado por Settimana News, 01-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Confesso imediatamente que a expressão “reserva masculina” desperta em mim uma sensação estranha, um sentimento quase de pena e compaixão. Leio, ou ouço, “reserva masculina”, e logo penso num lugar cercado e desprovido de liberdade, onde ficam aglomerados, ombro a ombro, indivíduos pobres e tristes unidos apenas pelo fato de serem homens.
Como na mais confortável reserva indígena, também os habitantes da reserva masculina podem muito bem desfrutar de direitos e prerrogativas especiais, digo a mim mesma - o seu mundo poderia até ser um mundo perfeito, governado pelo melhor governo do mundo, comandado pelo melhor chefe do mundo, pelo papa, digo a mim mesma. Mas ainda assim continua sendo uma reserva.
O que fazem os habitantes de uma reserva? Dedicam toda a sua existência à defesa e à conservação da sua espécie protegida, tenazmente empenhados na tutela das tradições e na salvaguarda contra os ataques externos. Sim, porque o mundo lá fora é mau e predatório, sempre pronto a roubar terras e apropriar-se de identidades.
Que triste viver numa reserva. O olhar virado para dentro, o canto do olho espreitando constantemente além da cortina.
Mas me explicaram que a reserva dos homens não tem nada a ver com a reserva indígena. É claro que, olhando para as imagens de sujeitos eclesiais, desde as representações do Concílio de Niceia em 325 até as fotografias do último consistório, não se pode deixar de pensar que por “reserva masculina” se queira dizer um lugar onde podem ficar apenas os homens. E, convenhamos, ver todos aqueles homens, só homens, exclusivamente homens, causa um pouco de tristeza e meio que deixa sem ar.
Mas a “reserva masculina” – explicaram-me – é algo seriamente teológico, algo que tem a ver com apostolicidade, isto é, com o fato de Jesus, na hora de escolher, ter escolhido apenas doze homens, não um a mais, não um a menos.
Deixo o prato principal para os especialistas em questões teológicas. Para mim, gostaria de fazer duas observações laterais. A primeira: como fica Maria Madalena, apóstola dos apóstolos? O Prefácio da sua festa, que a Igreja celebra em 22 de julho, diz o seguinte:
No jardim manifestou-se abertamente a Maria Madalena, que o tinha seguido com amor na sua vida terrena, o viu morrer na cruz e, depois de o ter procurado no sepulcro, foi a primeira a adorá-lo ressuscitado dos mortos; deu-lhe a honra de ser apóstola dos próprios apóstolos, para que a boa nova da vida nova chegasse aos confins da terra.
Jesus deu a Maria de Magdala a honra de ser uma apóstola para os próprios apóstolos. De quem, então, começa a cadeia apostólica?
E, além disso, este bendito número doze. Em primeiro lugar, é interessante que os números da Bíblia sejam lidos como literais ou como simbólicos, dependendo do caso e das necessidades. E, de qualquer forma, mesmo deixando de lado Israel e as suas doze tribos, basta a mais banal revisão nos textos e mitos do classicismo greco-romano para descobrir o quanto esse poderosíssimo número se repete com abundância em todas as ocasiões possíveis.
Existem evidentemente doze deuses do Olimpo – seis homens e seis mulheres, pela igualdade de gênero; doze os trabalhos de Hércules; doze os sacerdotes do antigo colégio romano dos Fratres Arvales; doze as tábuas nas quais foi escrito o primeiro código de leis romano. Existem doze signos zodiacais e doze meses, ou seja, as lunações completas de um ano solar.
À luz do número doze poderíamos reler toda a Eneida de Virgílio, poema – vejam só – em doze livros. Até na coroa do rei Latino, inimigo e depois sogro de Eneias, existem doze raios: em cuja fronte brilha em dourado sol de raios doze (XII, 155-156).
O número doze é portador de uma ideia sublime de perfeição harmoniosa e totalidade. No imaginário religioso judaico, a totalidade harmoniosa é simbolizada pelas doze tribos de Israel. No panteão greco-romano pelas doze divindades olímpicas (seis homens, seis mulheres). Na perspectiva cristã pelos doze apóstolos.
Jesus realmente contou apenas e somente com doze? E todos homens, apenas homens?
A natureza não dá saltos, diz o antigo aforisma. As mudanças estruturais geralmente ocorrem de forma gradual e imperceptível. As coisas mudam nas nossas mãos, e nem percebemos. A presença do gênero feminino no mundo do trabalho, na sociedade, na política, na escola, é hoje um fato incontestável, em todos os sentidos: é simplesmente inimaginável a possibilidade de uma reversão, de um regresso ao passado, de um meia volta volver que zere, um a um, todos os passos lentos, difíceis mas decisivos realizados pelas mulheres no seu processo de autoafirmação ao longo dos últimos cem anos.
A questão da igualdade de oportunidades, da transparência salarial, do combate à violência de gênero é, hoje, uma questão decisiva nas agendas da política nacional e europeia: ainda longe de uma tradução concreta e de uma concretização plena e efetiva, mas presente no horizonte de cada pensamento político que queira tornar-se proposta significativa para o futuro das novas gerações.
O mundo muda. As normas jurídicas por vezes intervêm em tempos sucessivos em relação às mudanças que amadureceram na sociedade, por vezes essas mudanças as apoiam, as tutelam, as acompanham.
Enquanto isso a Igreja ainda está aí elaborando códigos e cânones, estudando, ponderando, titubeando e tergiversando, era necessária a naturalidade espontânea de um comediante para expressar com total simplicidade aquilo que, para muitas pessoas normais, hoje já não aparece mais como uma heresia, uma quimera ou um absurdo, mas como uma real e normal possibilidade.
Durante o primeiro Dia Mundial das Crianças, domingo, 26 de maio, em seu monólogo na Praça de São Pedro, Roberto Benigni disse às meninas e aos meninos que lotavam festivamente a praça: “Talvez entre vocês haja um novo Michelangelo, um novo Galileu, uma nova Rita Levi Montalcini. Ou talvez haja o novo Papa, ou dois ou três, nunca se sabe”.
Sim, nunca se sabe. Porque – continuou o comediante – “esta é a cidade do Senhor e tudo é possível, até que um de vocês se torne Papa, talvez o primeiro africano ou asiático da história, ou de Roma, do Testaccio, ou a primeira mulher Papa da história, pensem só”.
A primeira mulher Papa da história, pensem só. Vamos pensar nisso. Eu vou pensar.
Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission | Arte: IHU
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A “reserva masculina” e outras amenidades. Artigo de Anita Prati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU