25 Mai 2023
"O 'pecado original' dos 12 indivíduos do sexo masculino, fora dos Evangelhos e Atos, não infectou nenhum outro escrito do Novo Testamento: nenhum outro autor jamais fala nem dos 12 nem dos 11 (muito menos de Judas), com a única exceção de Paulo em 1 Cor 15,5, preciosa porque nos conta muitas coisas confirmando as nossas hipóteses", escreve Mauro Pedrazzoli, em artigo publicado por Il Foglio, revista mensal de alguns cristãos de Turim, n. 499, de abril de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vamos começar por dois eventos da atualidade para conferir mais concretude ao nosso trabalho exegético: foi recentemente renovada a convenção-entendimento entre a Santa Sé e a República Popular da China para concordar sobre a nomeação dos bispos. Provavelmente era necessária para proteger os fiéis da... perseguição.
Apenas contestamos as razões apresentadas pelo secretário de Estado, card. Parolin (no L'Osservatore Romano e Avvenire), segundo o qual isso foi feito para garantir:
1) a comunhão com o sucessor de Pedro;
2) a sucessão apostólica, e (horror teológico) para salvaguardar;
3) a natureza sacramental da igreja chinesa: mas tal sacramentalidade [“onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mt 18,20)] não depende de modo algum do fato de os bispos serem nomeados ou acordados com Roma. Observe-se o leitmotiv da "sucessão", ou seja, a transmissão de um poder clerical inalterado ao longo dos séculos apenas entre indivíduos do sexo masculino!
A outro evento dos noticiários diz respeito às reprimendas ao Sínodo Alemão pelo prefeito do Dicastério da Doutrina da Fé, o card. espanhol Fernando Ladaria, juntamente com Marc Oullet, prefeito emérito do Dicastério dos Bispos; limitamo-nos à "questão feminina": ou seja, a igreja (referindo-se à Sacerdotalis Ordinatio de João Paulo II de 1994), mesmo que quisesse, não tem o poder de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres (bem como readmitir os divorciados à Eucaristia).
O leitmotiv é sempre o mesmo: "Não podemos fazer nada por obediência ao Senhor" porque tudo foi bloqueado pela vontade de Cristo. Nossa tarefa, antes de encerrar o assunto, é justamente desmontar todo esse falso arcabouço histórico, teológico e ideológico com a exegese crítica, remontando aos dados primordiais nos Evangelhos originários, antes de suas reelaborações mistificadoras eclesiásticas.
A tese principal, extensivamente estudada e sofrida por mim, é que os 12 [chamados apóstolos; porém também Paulo, Barnabé e Júnias - uma mulher: Romanos 16,7 - são apóstolos] não existiam no ministério histórico de Jesus, mas são uma posterior criação-invenção. É preciso responder imediatamente à objeção, que em si é correta, que argumenta: se os 12 fossem uma elaboração tardia, eles não teriam sido tão autodestrutivos a ponto de inserir um traidor entre eles. Rejeitada: na primeira versão dos 12 havia o outro Judas (com Tadeu), não o Iscariotes.
No que diz respeito às teses de Parolin, no ministério de Jesus não existe nenhuma primazia petrina (portanto, nenhuma sucessão futura em tal "monarquia absoluta"). O “Tu és Petrus...” de Mt 16,18 é uma invenção lendária de uma comunidade pró-petrina do arquipélago de Mateus na Síria, uma primazia que não é encontrada em nenhuma outra passagem do NT.
Jesus tinha apenas amigas e amigos, alguns mais íntimos (Pedro, Tiago, João, Lázaro, as irmãs de Betânia, Madalena, Maria de Cléofas, Joana, Salomé..), outros mais afastados. Dos supostos 12, o quarto Evangelho menciona apenas 6: Pedro, André, Tomé, Filipe e os dois Judas. Incrivelmente, nunca são chamados pelo nome Tiago e João [dois fanáticos que queriam incendiar uma aldeia samaritana, "fulgurados" pelo olhar de Jesus (Lc 9,49.54)]; isso foi corrigido pelo cap. 21 acrescentado, que no entanto os qualifica como “aqueles de Zebedeu” (Jo 21,2), enquanto Natanael tem tanto nome quanto origem (Canaã), e Tomé até mesmo o apelido grego Dídimo.
Nos evangelhos originais é excluído que alguns dos discípulos se elevem hierarquicamente como senhores e mestres sobre os outros cristãos; “Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos... O maior dentre vós será vosso servo (Mt 23,8-11), reafirmado em João com o lava-pés e “não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou” (João 13,13-16).
Nessa fraternidade igualitária não há lugar para a instituição de 12 hierarcas. Também com isso concordam os originários Mt e Jo (além das outras analogias evidenciadas em outro texto/ no último número 498), antes de serem "contaminados" pelos endurecimentos clericais. De fato, o redator eclesiástico (R2 na segunda edição por volta de 140 d.C.) não apreciou a ausência da hierarquia e concluiu: "Se alguém receber o que eu enviar, me recebe a mim..." (Jo 13,20): simplificando, vocês devem ver os apóstolos e os futuros bispos e padres como se fossem Jesus Cristo...
Mas para o primeiro e quarto evangelhos originários nem mesmo devem existir chefes que condenam inexoravelmente: no quadro joanino, o pecado é não reconhecer, não aceitar o amor do Pai pelos amigos-crentes em Jesus, que se espalha entre os cristãos de forma igualitária. Como ninguém se deve elevar acima dos outros, também ninguém deve ser excluído do amor incondicional do Pai.
Portanto, se um cristão vive no amor de Deus, mesmo que seja homossexual ou novamente casado, deve ser aceito-acolhido; a questão não é se a autoridade eclesial pode excluí-lo ou não, mas, pura e simplesmente, que não deve existir nenhum poder que impere e legisle prescindindo do amor do Pai (dirigido para também para os LGBT). Quem rejeita o amor de Deus se autoexclui sozinho. O clericalismo masculinista (dos 12 e da estrutura hierárquica) e o moralismo (às vezes "impiedoso" em relação às pessoas) nasceram muito cedo nas igrejas se infiltrando, infelizmente, nos estratos posteriores do NT.
Quanto aos três íntimos, os filhos de Zebedeu morreram muito cedo: Tiago foi mandado assassinar por Herodes (Atos 12,1s) e João martirizado em 62 d.C. A figura de Pedro continua sendo controversa: de fato se contrapõem a tradição pró-petrina (PP) e a antipetrina (AP): a primeira (PP) destaca a peculiaridade de Pedro em Cesareia com sua profissão de fé; mas aquela antipetrina (AP) lhe impinge, logo após o “Tu és Petrus”, o “Vade retro Satana” para reequilibrar os pesos. Em relação a Mt 16,18-23, como dizia J. Dupont, por se tratar da mesma passagem, seção, contexto, têm o mesmo valor: se a "primazia" for elevada demais, o mesmo deve ser feito de forma embaraçosa com o "Satanás"; se, ao contrário, se redimensiona e relativiza o aspecto satânico, o mesmo deve ser feito com Pedro e seus supostos sucessores.
Exceto pela glosa posterior "um dos 12" para Tomé em João 20,24, o quarto evangelho não narra a instituição dos 12, mas o redator eclesiástico (R2) a pressupõe mencionando-a, porém, de forma fortemente polêmica contra as comunidades limítrofes [que estavam à beira do cisma; nada de novo sob o Sol, como nas atuais controvérsias entre Francisco e seus opositores] após a grande secessão em Jo 6,66: “Não vos escolhi eu, os doze? e um de vós é o diabo! (6,70). R2 apressa-se a esclarecer que se trata de Judas, não Pedro, a quem talvez a frase originalmente se referisse: eles estavam em pleno conflito, pior do que hoje.
Em Lc 24,13-35 a primeira aparição (AP) é aos dois semidesconhecidos de Emaús: um chamava-se Cléopas; provavelmente uma comunidade periférica com fortes contrastes-tensões em relação aos discípulos clássicos "petrino-jerosolimitanos" (veremos isso para a substituição de Judas). PP não pode suportá-lo e, no final, insere de forma forçada e polêmica o fato de que, em qualquer caso, Jesus apareceu primeiro a Pedro; os dois de Emaús, depois de toda aquela correria noturna de volta para Jerusalém, não têm tempo de abrir a boca para contar o que aconteceu quando ouvem que o Senhor apareceu (primeiro) para Simão.
AP em Lc 24,22-24 relata que primeiro algumas mulheres foram ao sepulcro, e depois "alguns de nós"; PP não consegue engolir isso e logo antes de Emaús insere a corrida de Pedro para que seja ele a ver como primeiro e como indivíduo masculino a tumba vazia [24,12: versículo posterior que falta em Taciano, no códice D e em algumas versões latinas].
O mesmo acontece nos Atos: para a importante figura de Pedro (PP) chega até a lhe conferir a cura, ao passar com sua própria sombra sobre os enfermos (a cena indigerível de Atos 5,15), no que diz respeito à direção central de Jerusalém AP evidencia que o chefe era Tiago, irmão do Senhor, cujo autoridade é igual, senão superior a Pedro.
Originariamente, Marco limitava-se em 3,16b-17 apenas à atribuição de apelidos aos três íntimos. Os outros 9, para chegar ao número de 12, foram inseridos posteriormente [em Mc 3,14-16a.18, e daí em cascata nos outros evangelhos (e Atos)], todos no acusativo: Andream, Thomam [(v. 18): assim na Vulgata, enquanto o Vercellese os declina ao estilo grego: Andrean, Thoman], Philippum, Bartholomaeum...
O verbo que os rege parece ser o “constituiu [liter. fez (epoiêsen)] os 12”, ainda que longe (v. 16a), e sobretudo apenas num punhado de manuscritos, mesmo que antigos e reconhecidos. Nos restantes, porém, na Vulgata e em outras versões latinas tais acusativos permaneceram sintaticamente anômalos porque sem o verbo regente; de fato o manuscrito de Washington [tão antigo quanto o Sinaitíco], percebendo o expediente, iniciou uma nova frase com "Êsan de outoi", juntamente com o Veronese Erant autem hi (Agora eram estes...), recomeçando do início com Simon, Andreas, Philippus, Thomas..., tudo em um nominativo mais linear.
Seja nominativo ou acusativo no acréscimo postiço e forçado, a lista se encerrava com Judas [e ponto: sem “Iscariotes, aquele que também (kai; et) o traiu”. O que significa aqui "também"? Tanto que a versão da CEI sabiamente o mudou para "depois o traiu"; veremos isso no próximo artigo], entendendo como décimo segundo Judas de Tiago, não o traidor. A motivação também é parcialmente anômala: “Escolheu 12 que ficassem com ele e para enviá-los a pregar e que para que tivessem o poder (para curar as doenças e) para expulsar demônios” [com dois inusuais proposições finais em estreita proximidade (ut..., et ut...): sinal de algo forçado desajeitadamente]. Para pregar o quê? No começo eles ainda não sabiam quem fosse Jesus, e bem antes de suas obras e discursos: obviamente reflete a pregação subsequente da igreja primitiva com sua (suposta) atividade taumatúrgica.
Salva-se o “para que (ut) ficassem com ele” (o primeiro e originalmente único final), mesmo que teve uma enganosa Wirkungsgeschichte [= influência histórica com efeitos bem enraizados], tanto que o crente médio pensa erroneamente que, tanto no ministério histórico quanto nas hagiográficas aparições pós-pascais em grupo, Jesus esteja praticamente rodeado apenas por aqueles 12 indivíduos do sexo masculinos "sacerdotalizados"; em especial na Última Ceia em que Jesus, segundo a antiga catequese, além da Eucaristia teria também instituído o sacerdócio a partir daquela dúzia de homens, enquanto quase certamente no Cenáculo havia uma presença mais ampla e também feminina [portanto também as mulheres podem presidir à Eucaristia].
Além disso, o "pecado original" dos 12 indivíduos do sexo masculinos, fora dos Evangelhos e Atos, não infectou nenhum outro escrito do NT: nenhum outro autor jamais fala nem dos 12 nem dos 11 (muito menos de Judas), com a única exceção de Paulo em 1 Cor 15,5, preciosa porque nos conta muitas coisas confirmando as nossas hipóteses.
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A invenção dos 12 apóstolos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU