11 Agosto 2021
"Sabemos que Francisco teme o cisma se tocar naqueles pontos jurídica, social e psiquicamente mais delicados, e talvez seja incerto ele também, mas a Igreja precisa desvincular o evangelho da clericocracia para se tornar fraternidade – Fratelli tutti - e para ser capaz de propor novamente o Evangelho ao mundo de hoje, que tem uma imensa sede e necessidade de fraternidade, para não se destruir", escreve Mauro Pedrazzoli, em artigo publicado por Il Foglio, revista mensal de alguns cristãos de Turim, nº 481, de junho-julho de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Normalmente os mais abertos enfrentam o tema mencionado no editorial, defendendo a diversidade da cultura do passado (o que está correto); mas há muito mais: os Doze (homens) são uma criação hierárquica posterior à primeira comunidade cristã (este não é o lugar para fornecer as motivações técnico-exegéticas que provam a ausência dos Doze na camada mais antiga da tradição sinótica). O quarto evangelho é suficiente, embora contenha picos muito altos, especialmente na primeira parte e na paixão, contém detalhes mais precisos (históricos) do que os sinópticos: por exemplo, em 5,2 o nome da piscina com o particular dos cinco pórticos.
O quarto Evangelho original (sem o acréscimo do redator eclesiástico em Jo 6,67-71 para dizer que um dos Doze era ... um demônio, e em Tomé 20,24 a glosa "um dos Doze") nada fala sobre eles: na última ceia há amigos e amigas, não os 12 homens hierarquizados e “sacerdotalizados”, dada também a ausência do relato da instituição eucarística. Estamos acostumados com a ideia de que Jesus ande pelas estradas da Palestina (quase) unicamente com os chamados 12 apóstolos homens; Jesus, por outro lado, tem (apenas) amigos e amigas: Pedro, André, Tiago e João (os filhos do trovão, aliás, nunca lembrados e chamados pelo nome no quarto evangelho), Tomé, Filipe, Natanael, Lázaro, várias Marias, Madalena, Salomé, Susana, Joana (Lucas 8,2-3) etc.; ele vai para Samaria (Lc 10,38-42) para a casa de Marta e Maria (ele também tem algumas amigas samaritanas?); na paixão estão presentes muitas mulheres que o seguiram desde a Galileia, portanto já estavam com ele antes mesmo na Galileia, etc.
Os Doze são uma invenção clerical e machista da segunda geração cristã, tanto que nem sabem muito bem os seus nomes: a lista de Mc 3,13ss e Mt 10,1-4 diverge da lista de Lucas (Evangelho 6,13-16 e Atos 1,13).
Vida, alegria, luz, paz, vinho, água
A igreja deve apenas tornar presente Jesus de Nazaré (não as invenções dos redatores eclesiásticos dos próprios evangelhos). Que os prelados ainda discutam (ou melhor, não o fazem porque a proibição é dada como certa) se seria possível que as mulheres, e não apenas os homens, sejam padres, isto é, ministros na comunidade para a escuta do evangelho e para a Eucaristia, é simplesmente ridículo; no entanto, ofende profundamente as mulheres.
Se a igreja quer continuar perdendo crédito e escuta, prossiga mesmo em tal machismo bolorento, e logo isso não será ouvida por ninguém, apenas por cabeças bolorentas. Além da diaconisa Febe (Romanos 16,1s), logo depois temos a apóstola Júnia junto com Andrônico (provavelmente seu marido), definidos por Paulo como os mais insignes dos apóstolos (Rm 16,7): não apenas uma mulher apóstola, mas um casal apostólico!
Sim, os chefes devem servir (Jo 13,12ss), e estão um degrau bem abaixo de Jesus: "o servo não é maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou" (isto é, Jesus; 13,16). O redator eclesiástico não gostou e acrescentou "Quem recebe aquele que eu enviar (para o futuro: situação eclesial), recebe a mim" (13,20); isto é, devemos olhar para os apóstolos (e seus bispos sucessores) como se fossem Jesus Cristo (sic)! O clericalismo já começou no II século: o sistema é sofisticado: a graça não é negada, mas é considerada estritamente administrada pela Igreja (= seus chefes masculinos); Deus se doa como Lei.
O quarto Evangelho original sempre diz "vida" (verdadeira), enquanto o redator eclesiástico (que escreveu por volta de 140 d.C.) frequentemente acrescenta "eterna"; o primeiro autor (que não é o apóstolo filho de Zebedeu) diz "alegria, luz, paz, vinho bom e novo, água viva para beber" (não aquela para se lavar nas purificações), ou seja, o Cristianismo da Graça (primeiro tipo do cristianismo) sem obrigações e proibições de tipo sexual ou matrimonial (como a indissolubilidade no segundo tipo de cristianismo): a questão do divórcio é ignorada pelo quarto evangelho. É "vida" verdadeira, para um casal divorciado e que voltou a se casar, viver como irmão e irmã para ter acesso à Eucaristia? Dois diferentes tipos de cristianismo se sucederam e se misturaram na história: para o primeiro, por exemplo, os divorciados e homossexuais podem ser acolhidos na Graça, como o Pródigo (a mais antiga apologética do Deus da Graça); para o segundo, entretanto, excluídos e marginalizados. É óbvio que o primeiro é muito mais próprio de Jesus do que o segundo. O drama é que não se pode dizer que o segundo tipo de cristianismo não existe nos Evangelhos: certamente é dos redatores eclesiásticos, dos quais, entretanto, podemos nos dissociar. Eles são cristãos como nós, não acima do que nós.
Dissociar-se e despedir-se
Ao longo dos séculos a justa doutrina para crer e o culto, fáceis de controlar e impor, prevaleceram sobre o essencial: isto é, a comunicação existencial, de pessoa a pessoa, do espírito de amor com que viver, tomar as decisões, relacionando-se com os outros e com o universo.
O sentido do grande mistério que nos envolve e nos alimenta, ou nos assusta, ou nos fascina, hoje nos jovens é sufocado pela vida apressada, feita de inovações tecnológicas, dispersa entre o tédio e a ressaca. A Igreja não sabe falar aos nascidos no mundo de hoje. E teria que dizer coisas fortes, nutritivas e empolgantes.
Linguagem, doutrinas, padres e freiras são tão distantes quanto os marcianos, salvo algumas exceções. A Igreja deve despir-se, e muito, de propriedades, cerimônias, sermões e devoções a santos alheios, lengalenga de orações.
Além de nos dissociarmos dos redatores eclesiásticos dos Evangelhos, talvez tenha chegado a hora, se assim continuarem, de despedirmo-nos das igrejas institucionalizadas. A menos que a instituição Igreja saiba reformar-se fortemente segundo o modelo evangélico de Jesus, fraterno, sinodal (= caminhar todos juntos), nos sínodos que estão ocorrendo ou para os quais se está fazendo (realmente) um "caminho sinodal"?, ou até mesmo em um novo Concílio, não apenas de bispos.
Sabemos que Francisco teme o cisma se tocar naqueles pontos jurídica, social e psiquicamente mais delicados, e talvez seja incerto ele também, mas a Igreja precisa desvincular o evangelho da clericocracia para se tornar fraternidade – Fratelli tutti - e para ser capaz de propor novamente o Evangelho ao mundo de hoje, que tem uma imensa sede e necessidade de fraternidade, para não se destruir.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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