Os discípulos e as discípulas “prediletos” de Jerusalém

Fonte: Unsplash

08 Junho 2022

 

Após anos de estudo, cheguei à seguinte conclusão: existe o discípulo que Jesus amava, que quase certamente se chamava João, mas não é o apóstolo filho de Zebedeu (a homonímia favoreceu a “confusão” ao longo da história), mas, segundo o testemunho de Policarpo de Esmirna e Papias de Hierápolis, trata-se de outro João de origem hierosolimitana (ele aparece cinco vezes por ocasião da paixão-ressurreição), que chamamos de Jerusalém-Éfeso.

 

O comentário é de Mauro Pedrazzoli, publicado em Il Foglio, publicação mensal de alguns cristãos de Turim, de abril de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O bispo Bettazzi, em Sognare eresie [Sonhar heresias] (p. 34), já citado e resenhado no Il Foglio, n. 485, debate com a teóloga Adriana Valerio (“Maria Maddalena...”, Il Mulino, 2020, pp. 26ss), que levanta a hipótese de que o discípulo ou a discípula a quem Jesus amava é a própria Madalena.

 

Lembramos que em grego o termo discípulo (mathétés) é gramaticalmente apenas masculino [...]. Bettazzi assinala com razão que Madalena como discípula predileta é “dificilmente conciliável com Jo 21,7 e 20,2”: de fato, na primeira passagem, por se tratar de uma pesca, é claramente um homem; e, no segundo, na mesma frase, Madalena é um personagem diferente do discípulo predileto que corre junto a Pedro.

 

Maria Madalena, Giovanni Girolamo Savoldo (Fonte: Wikimedia Commons)

 

O jovem a quem Jesus amava

 

Após anos de estudo, cheguei à seguinte conclusão: existe o discípulo a quem Jesus amava, que quase certamente se chamava João, mas não é o apóstolo filho de Zebedeu (a homonímia favoreceu a “confusão” ao longo da história), mas, segundo o testemunho de Policarpo de Esmirna e Papias de Hierápolis (relatado na “História Eclesiástica” de Eusébio de Cesareia), trata-se de outro João de origem hierosolimitana (ele aparece cinco vezes por ocasião da paixão-ressurreição), que chamamos de Jerusalém-Éfeso.

 

De fato, ele se mudou para a Síria após as perseguições de 62 d.C. (João de Zebedeu, o filho do trovão, muito provavelmente foi apedrejado precisamente em 62) e a subsequente guerra judaica, devido à qual toda a comunidade hierosolimitana fugiu para Pela na Jordânia. Depois, ocorreu a “transferência” para a Ásia Menor (com os centros de Éfeso e Antioquia), onde o inovador líder das Igrejas joaninas, por volta de 107 d.C., foi detido, aprisionado e talvez martirizado sob Trajano: Hegésipo, Eusébio, o “Chronicon” de São Jerônimo relatam essa informação.

 

A homonímia favoreceu a lenda da presença do apóstolo João de Zebedeu (considerado erroneamente como o discípulo predileto) na Ásia Menor, assim como o autor dos escritos joaninos. E Policarpo sabia da distinção entre João de Éfeso e o apóstolo original filho de Zebedeu. Aquele que em 150 d.C. ainda se chamava João de Éfeso (como testemunhado por Papias), um pouco mais tarde na Ásia Menor se tornou o apóstolo irmão de Tiago.

 

A longa vida desse João de Jerusalém significa que, nos tempos de Jesus, ele só podia ser um jovem, um menino (por isso ele corre até o sepulcro... muito mais rapidamente do que Pedro), mas fazia parte de uma família de alto nível do establishment hierosolimitano. De fato, havia também um membro mais idoso da mesma família, aquele que em Jo 18,15s (é definido como discípulo, mas não o predileto) está em casa junto com o sumo sacerdote: entra (subentendendo-se que fala com a pessoa responsável) e depois consegue fazer Pedro entrar também. O pescador galileu João de Zebedeu não podia ser um “habitué” do sumo sacerdote de Jerusalém.

 

Imagino essa figura notável e nobre como um tipo como José de Arimateia (ou Gamaliel em Atos 5,34-39), um homem bom e justo, membro de autoridade do Sinédrio (Mc 15,43 e par.). Com efeito, o de Jo 18 não podia ser o discípulo predileto, então jovem demais para ser um frequentador assíduo do sumo sacerdote, mas sim seu pai ou avô!

 

A virada no deserto árabe

 

Mas como Jesus podia ter todos aqueles discípulos em Jerusalém, se no quarto Evangelho, sim, ele foi até lá cinco vezes, com estadas prolongadas, mas nos sinóticos parece que apenas uma vez? Encontramos a resposta no primeiro capítulo (1,35ss) do quarto Evangelho, mais preciso do que os sinóticos em certos detalhes: a cena se desenrola em Betânia, para além do Jordão, onde João estava batizando (1,28). Não é obviamente a Betânia perto de Jerusalém, mas sim aquela do outro lado do Jordão (a região também recordada em 10,40, onde Jesus se detém, atrasando a viagem rumo a Betânia de Lázaro).

 

As variantes dos manuscritos (Betabara, Betaraba) assinalam uma zona desértica da Jordânia oriental, na fronteira com a Arábia. Fala-se de dois discípulos do Batista: um é André, o outro é inominado (muito provavelmente não o predileto, mas sim seu pai ou avô), que se tornam discípulos de Jesus “começando a viver com ele naquele mesmo dia. Eram mais ou menos quatro horas da tarde” (1,39). Depois, André envolve também o seu irmão Simão Pedro.

 

A pergunta (afiada, de Emanuel Hirsch) é: o que os dois irmãos estavam fazendo na Arábia antes de Jesus os chamar? Eram discípulos (de André, diz-se isso explicitamente) ou em todo o caso simpatizantes do Batista, como o próprio Jesus.

 

Há também uma série de anotações cronológicas precisas: além da já mencionada décima hora, o fato de que, três dias depois, ocorreram as bodas de Caná (2,1), e que, depois das bodas, Jesus ficou (apenas) alguns dias em Cafarnaum antes de subir a Jerusalém (2,12). Essas indicações cronológicas são em si supérfluas e não fazem parte da estrutura do Evangelho; mas isso assinala um fato muito importante (outra observação afiada de Hirsch na p. 47 dos “Studien zum vierten Evangelium”): o autor está utilizando uma fonte/tradição extrassinótica, que, com os seus detalhes geotemporais muito específicos, é historicamente confiável.

 

Jesus encontrou inicialmente os seus (futuros) discípulos no círculo do Batista, onde eles se conheceram e se frequentaram bem; não devemos nos deixar impressionar pelos chamados instantâneos relatados nos sinóticos, que são hagiográficos: Jesus não hipnotizou os discípulos pescadores arrastando-os fulminantemente ao seu seguimento.

 

 

Isso vale não só para os seus discípulos galileus clássicos, mas também para os seus discípulos hierosolimitanos (em particular para a família do predileto): na Arábia, meio mundo havia se reunido para ouvir o Batista, incluindo os sacerdotes, os levitas, os fariseus (Jo 1,19.24). Isso também é comprovado em Jo 7,2-4 pelos seus irmãos quando lhe dizem: “Tu deves sair daqui e ir para a Judeia [para Jerusalém, para a festa das cabanas], para que também teus discípulos [subentendendo-se... os de lá] possam ver as obras que fazes”. Os discípulos galileus já as estão vendo; trata-se aqui dos discípulos hierosolimitanos (conhecidos na Arábia) que também terão de ver as suas obras grandiosas: além da família do discípulo predileto e do já citado José de Arimateia, penso em Nicodemos, os dois de Emaús, Lázaro, Marta e Maria: em Lucas 10,38-42 Jesus conhece as irmãs e se entretém na casa de Marta na Samaria, com Maria aconchegada aos seus pés para escutá-lo; uma atitude muito semelhante à postura da Última Ceia e da unção de Betânia.

 

Depois, Jesus pensa em ir a Jerusalém “privadamente” (esse é o significado do “não publicamente, mas às escondidas” em 7,10). Jesus vai à Judeia de modo privado para encontrar as pessoas que lhe são muito próximas, ou seja, para encontrar os seus amigos-discípulos, em particular a sua nova família “adotiva” depois de ter sido rejeitado pela sua (Mc 3,21), em uma casa ampla e senhoril onde ele se hospedava.

 

Indício disso é a frase “subiram para a sala de cima, onde costumavam hospedar-se”, onde se reúnem os numerosos discípulos e discípulas com as suas famílias em Atos 1,13 ao voltarem da ascensão (outra indicação supérflua que pode ecoar um dado histórico). Os dois de Emaús também param na mesma casa junto com o hóspede ainda desconhecido; obviamente na casa onde ambos habitam: presumivelmente, em se tratando de uma família oligárquica, possuíam, além da de Jerusalém, uma casa no campo (a sete milhas fora da cidade, Lc 24,13), uma em Betânia e talvez também na Samaria.

 

Irmã mais velha ou tia?

 

Nos relatos fantasiosos dos evangelhos gnósticos e dos apócrifos, junto com Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, aparece muitas vezes uma terceira Maria, qualificada às vezes como irmã de Jesus; poderia ser a camuflagem da histórica mulher amada, a quem Jesus muitas vezes beijava (Evangelho de Filipe).

 

Isso ecoa no meu instinto como uma discípula a quem Jesus amava, da mesma família aristocrática acima mencionada, que provavelmente se chamava Maria, mas não a Madalena (que não é hierosolimitana).

 

Adriana Valério intuiu uma experiência de intimidade com Jesus. A substância é a mesma: mas, na minha opinião, trata-se de “outra Maria” (Mt 27,61 e 28,1): a Maria de Cléofas de Jo 19,25? Há aí uma estranha tia debaixo da cruz, que somente na reedição eclesial do Evangelho (140 d.C.) se tornou a tia de Jesus com a inserção posterior de Nossa Senhora (veremos depois essa passagem complexa).

 

Aquele que chamamos de pai-avô poderia ser, sim, o pai de ambos (o jovem e a irmã mais velha), ou o avô do jovem e pai apenas da mulher predileta (a tia solteira do menino, assim como solteiras parecem ser também Marta e Maria?). Com o anonimato, dois coelhos foram pegos com uma cajadada só: encobriu-se o fato “desagradável” de que Jesus amou uma rica família de chefes judeus, de mestres de Israel (como por exemplo Nicodemos), senão até de sacerdotes judeus, além da “inconveniente” relação com uma mulher.

 

Pode-se dizer que esta segunda parte da minha reconstrução é sem provas, mas apenas indiciária; no entanto, não fui eu que inventei o férreo anonimato sobre o discípulo predileto, assim como não inventei a pessoa meio deitada no (sobre o) peito de Jesus. Não se diz “na frente ou ao lado de Jesus” (versão CEE), mas (duas vezes), antes, que “estava à mesa (semi)estendido (anakeimenos) no (en) seio de Jesus”; e, depois, “reclinado sobre o (epi) peito de Jesus” (Jo 13,23.25).

 

Pensemos nas várias mulheres provenientes da Galileia (Madalena, Joana, Susana, Salomé, Maria de Tiago e Joset) e também nas de Jerusalém, Maria de Cléofas e Maria de Betânia que, sendo Cléofas o patronímico e Betânia um lugar de residência, também poderiam ser a mesma pessoa.

 

Pode-se presumir que muitas delas também estiveram presentes na cena do adeus, e não apenas na paixão-morte: cf. Mc 15,40.47 e 16,1, nada menos do que três listas de mulheres que olhavam de longe, todas incrivelmente sem a mãe de Jesus!

 

(Fonte: Pixabay)

 

Na minha opinião, no seio de Jesus, está uma mulher madura; mas também poderia ser o jovem. E por que não ambos nos lados de Jesus, aconchegados sobre ele? É absurda qualquer ilação de homossexualidade ou, pior ainda, de pedofilia. Podemos presumir (p. 341 do divulgativo segundo livro de Hirsch sobre o quarto Evangelho) que as pessoas comiam inclinadas para a esquerda, com o cotovelo esquerdo sobre um travesseiro (ou sobre o sofá: Ezequiel 23,41), com a mão esquerda segurando a cabeça-pescoço, com a mão direita livre para comer.

 

Na nossa tríade (olhando de frente), o companheiro lateral da esquerda está em posição levemente à frente semirreclinado no (sobre o) peito-seio de Jesus, e o da direita, em posição mais recuada, reclinado nas (sobre as) costas de Cristo. Com um Jesus semicoberto, é lógico que Pedro, que não está no lugar de honra (!) ocupado pelos prediletos, peça a um deles que pergunte a Jesus quem seria o traidor; mais provável a uma mulher do que a um menino.

 

Concluindo, os discípulos prediletos são dois: o jovenzinho e Maria, irmã ou tia do menino.

 

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