20 Dezembro 2021
"Em Sognare eresie, Bettazzi não quer ser um teólogo refinado e um ensaísta renomado, mas simplesmente um bispo que sabe perfeitamente que em seu ensinamento ele deve às vezes ser uma voz incômoda e inquietante", escreve Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Stampa, 18-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Será uma das costumeiras heresias!”, foi a piada que monsenhor Luigi Bettazzi ouviu de um importante bispo do Vaticano. “Aceitei bem - confessa Bettazzi - pensando que originalmente a palavra grega ‘heresia’ significa escolha, preferência”. É sob o autêntico sentido de "heresia" que o bispo emérito de Ivrea, de 98 anos - o último bispo italiano vivo hoje a ter participado do Concílio Vaticano II - recolhe os ensinamentos recebidos, abrindo-os a novas perspectivas, para oferecer estímulos para reflexões, reais e verdadeiros "sonhos" capazes de levantar questionamentos até incômodos, e por isso, como rezava a antiga teologia, "perto da heresia". E aqui está o leve e precioso volume Sognare eresie. Fede, amore e libertà (Sonhar heresias. Fé, amor e liberdade, em tradução livre, EDB).
Sognare eresie. Fede, amore e libertà
Capa do livro | Divulgação
Conheço o bispo Bettazzi desde que ele se tornou bispo de Ivrea em 1967, quando eu já estava em Bose havia dois anos. Quando o bispo de Biella via com suspeita e criava obstáculos à nova comunidade que fundei, Bettazzi paternalmente nos apoiava e encorajava com suas visitas frequentes. De lá para cá, mantive com Bettazzi um assíduo vínculo de estima e amizade, constituído sobre uma discussão franca sobre o cristianismo, a Igreja, a sociedade e a humanidade hoje. Em Sognare eresie, encontramos todo o frescor e a franqueza, mas acima de tudo aquela capacidade de provocar de forma inteligente e livre que sempre caracterizou a pessoa e a palavra de Bettazzi. Nos cinco breves capítulos, o bispo interpreta as verdades tradicionais do Cristianismo e da Igreja de uma forma nova e mais fácil de entender e envolvente para a mentalidade de hoje. E assim ele se desloca com grande maestria do Antigo ao Novo Testamento, da doutrina da Trindade à figura de Jesus, das dificuldades da oração às "heresias" sociais. Então os progenitores da humanidade Adão e Eva são “um símbolo de cada homem e de cada mulher”, lembrando que sem a mulher “apenas o homem não é imagem de Deus”.
Sobre a antiga quaestio theologica da consciência de Jesus e de sua consciência de ser Deus, Bettazzi pensa que a doutrina da "visão beatífica", de ver continuamente Deus à sua frente, teria tornado Jesus completamente alheio aos limites e as fraquezas da condição humana; pelo contrário, precisamente como homem e não apesar disso, era consciente de que também era Deus. E o que é aquele Reino de Deus que está no centro da pregação do Nazareno? “O Reino de Deus é a humanidade tal como Deus quer, aberta a ele que é amor e misericórdia, e solidária dentro dela, justamente começando por sua relação com os pobres e os sofredores”. Recordando os católicos japoneses que em tempos de perseguição, de 1660 a 1854, viveram sua fé e permaneceram fiéis mesmo sem o clero, Bettazzi observa que a Igreja é o povo de Deus mesmo quando por algum motivo a hierarquia está ausente: a fé não desaparece graças ao batismo e mesmo apenas "uma Eucaristia do desejo" a mantém viva. Diante do fenômeno cada vez mais frequente das comunidades sem eucaristia dominical porque sem presbítero, ele se pergunta: “Por que não permitir que o membro de uma confissão cristã participe da Eucaristia celebrada em outra confissão? Seria uma experiência de ecumenismo particularmente eficaz”.
Finalmente, quando ele enfrenta as "heresias" sociais, o tom se torna mais autobiográfico e a escrita mais determinada. Não poderia ser diferente para quem foi presidente da Pax Christi nacional e depois internacional, para quem conduziu batalhas pela objeção de consciência nos anos em que se arriscava a prisão e pela objeção fiscal contra as despesas militares, e para quem foi por anos uma referência para o movimento pacifista. Bettazzi recorda o espírito que o moveu em sua intensa correspondência com Enrico Berlinguer, páginas que hoje poderiam fazer parte de uma antologia do diálogo entre o catolicismo italiano e o Partido Comunista. Diálogo que fez com que o então patriarca de Veneza, Albino Luciani, exclamasse: "Berlinguer pode falar em nome de seu partido, Bettazzi não tem mandato algum para falar em nome da Igreja". Em seguida, ele evoca aquela que define como sua "última ‘heresia’ social", quando em 2005 os bispos italianos proibiram os católicos de participarem do referendo sobre bioética para que a consulta não chegasse ao quórum: "Eu o considerei um expediente estritamente político... Fui votar". Referindo-se ao que Berlinguer lhe disse em uma conversa particular, que os católicos se aliam aos inimigos de ontem contra os amigos de amanhã, Bettazzi conclui desconsolado: “Em nosso mundo eclesial houve uma propensão para a ‘direita’ política, como aquela apoiada pela burguesia, mais influente nas estruturas da Igreja, contra as ‘esquerdas’, apoiadas pelo mundo operário”.
Em Sognare eresie, Bettazzi não quer ser um teólogo refinado e um ensaísta renomado, mas simplesmente um bispo que sabe perfeitamente que em seu ensinamento ele deve às vezes ser uma voz incômoda e inquietante. Claro, o bispo deve sempre ser capaz de dizer palavras de mansidão, de brandura, cheias de misericórdia; mas às vezes ele é solicitado a pronunciar palavras duras, claras e inequívocas, emitidas com parrésia: palavras que resultarão inoportunas para alguns, que irão ferir outros. Ele o fará sabendo que é chamado a obedecer ao Evangelho e a Deus antes que aos homens (cf. Atos 5,29). Conhecemos bem as palavras do apóstolo Paulo endereçadas ao bispo, que expressam a profunda intenção que deve animar o magistério episcopal: “Que pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes, com toda a longanimidade e doutrina"(2Tm 4,2). Bettazzi faz isso nesse livro como fez durante toda a sua vida.
“Os vossos anciãos terão sonhos”, anuncia o profeta Joel, e quem mais do que o quase centenário Bettazzi cumpre esta profecia com lucidez e fecundidade, ele que até ousa sonhar com “heresias”? O livro termina com uma advertência que tem o sabor da advertência que um idoso centenário dirige aos jovens: "Se ‘heresia’ significa ‘escolha’, concluo que todos devemos ser ‘hereges’, isto é, devemos sentir que somos realmente a nossa liberdade".
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Se analisar pelo verso certo (etimológico), a heresia é uma escolha que pode fazer sonhar. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU