24 Novembro 2021
"A tradição é dinâmica, porque a humanidade é multiforme e em constante desenvolvimento. Os profetas perturbam porque enxergam à frente. O simples fato de falar dessas intuições provocou a marginalização do autor que, na sua idade, gostaria, mesmo com dificuldade, propô-las ao discernimento da comunidade", escreve Enrico Peyretti, teólogo, ativista italiano, padre casado e ex-presidente da Federação Universitária Católica Italiana (Fuci), em artigo publicado por finesettimana.org, 22-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Luigi Bettazzi: “Sognare eresie. Fede, amore e libertà” (Sonhar heresias. Fé, amor e liberdade, em tradução livre), Edizioni Dehoniane, Bolonha 2021, pp. 165
Para o caminho sinodal de a Igreja, esse livro é importante. O bispo Luigi Bettazzi completa 98 anos.
Ele escreve um livro por ano para se manter vivo e continuar se aprimorando. Neste Sognare eresie propõe o verdadeiro sentido de "heresia" (escolha, preferência): "escolher a formulação de verdades tradicionais de uma forma nova, mais facilmente compreensível e envolvente na mentalidade de hoje" (p. 7). Assim, ele enfrenta problemas de interpretação no primeiro e no segundo Testamento, na pessoa de Jesus, em nossa vida cristã, nos resultados últimos de nossa existência.
Como entender os relatos da criação, do pecado original, da eleição de um povo, da violência religiosa? A razão analisa a realidade, a inteligência intui os valores (p. 14). Os Evangelhos são escritos "com palavras que devem ser entendidas no significado que a elas davam os escritores" (p. 31). Assim, muitas passagens do "anúncio alegre" se interpretam cada vez melhor. Encarnação, Trindade, amor, alegria, dor, a teologia do sacrifício expiatório, são discutidos e explicados aqui de forma séria e simples, tornando-se um catecismo atualizado para quem se questiona sobre os conteúdos da fé cristã.
Jesus é o salvador de todos: mas quem não é batizado? E o que aconteceu com o limbo tradicional? A fé é suficiente? Bettazzi entende que, uma vez que toda pessoa nasce na graça (não no pecado), basta crer, isto é, estar abertos a Deus e aos outros, para ter a vida eterna (cf. p. 72-76).
O que é o Reino de Deus anunciado por Jesus? Chega no final de tudo? Não, já está entre nós, é a humanidade descrita nas Bem-aventuranças, aberta a Deus, que é amor e misericórdia. A Igreja é formada pelos "convocados", comunidades de fiéis ligadas entre si. Com o passar do tempo, se formam os vários ministérios-serviços. Mais adiante, depois de Teodósio, a Igreja passa a ser a instituição que conhecemos, e o papa, com o Estado pontifício, vai dar à Igreja "uma face também política", com as relativas cisões, no Oriente e depois na Europa. Sua forma é "piramidal" até o Concílio Vaticano II, que "inverte a pirâmide colocando o povo de Deus no vértice". A hierarquia tem como tarefa "não comandar, mas servir". É o contrário do clericalismo que o Papa Francisco deplora como um grande mal da Igreja, e também daquela marginalização das mulheres herdada do mundo judaico.
Então, "talvez seja possível repensar novas orientações ministeriais", como fez a Igreja primitiva ao se abrir "às gentes" e batizando os incircuncisos, sobre os quais o Espírito Santo desceu antes da água do batismo (Atos dos Apóstolos, cap. 10). Desde que se veja que a tradição não está presa ao passado, mas insere a verdade de sempre no mundo em evolução (pp. 76-94).
É paradoxal que até algumas formas de orar sejam vistas como heresia. O autor escreve sobre a oração com sólido suporte bíblico e experiências simples e preciosas. Entre outras coisas, repropõe a tradição da lectio divina, indicando também o método prático: leitura, meditação, contemplação. Na oração, o amor a Deus e o desejo por ele, se for sincero, comporta o amor pelos irmãos, especialmente se necessitados. E requer humildade, requer paz com os outros - “vai primeiro e reconcilia-te ...” - e é verdadeira mesmo que silenciosa, no Espírito Santo, na gratidão. É nos tornar humanidade na escuta de Deus. E confidencia: "Espero sempre intuir um Jesus que sorri para mim" (p. 108). A oração eterna do Jesus ressuscitado é a nossa oração. Jesus garante que o Pai dará o Espírito Santo àqueles que o pedirem (Lucas 11,13).
Jesus, morto por amor, está vivo, "saiu do tempo", mas continua a rezar com a sua Igreja. A Eucaristia “não é tanto o rito que nos dá a presença real perante a qual rezaremos” (...), mas “é precisamente a nossa grande oração, porque nos une à oração eterna de Jesus”. Portanto, não se assiste, mas se participa, se toma parte, porque é a oração de todos, não só do padre: seria bom se o cânone fosse recitado todos juntos, como já fazem algumas comunidades (p. 118). Paulo fala (1Cor 11,20) de uma Ceia do Senhor que não parece ter um presbítero para presidi-la. Exemplos históricos (Japão em 1600; Amazônia) mostram que a Igreja é povo de Deus mesmo quando a hierarquia está ausente ou raramente presente. Pode-se dizer que, assim como existe o batismo de desejo, também uma comunidade desprovida de um ministro ordenado, se renova o memorial da Última Ceia, torna Jesus presente com uma "Eucaristia de desejo". Por que não permitir a participação na Eucaristia em outra confissão cristã? Seria uma experiência eficaz de ecumenismo.
Heresia? No máximo, um sonho, um almejo (p. 122). “A prioridade do povo de Deus sobre a hierarquia deveria derrotar qualquer vingança do clericalismo, isto é, do predomínio do clero sobre os fiéis”.
Passando depois às “heresias sociais” - sempre de acordo com a consciência, na qual encontramos principalmente com Deus, segundo o Concílio - o autor passa pela própria experiência: educado para a submissão, depois a Fuci, os estudos críticos, o Concílio, finalmente a presidência da Pax Christi, que o empenhou no tema e na ação pela paz, com presença também em países em sofrimento por guerras e ditaduras, depois com a iniciativa de um diálogo humano e civil com Berlinguer. Outras "heresias" mais recentes de Bettazzi são mais conhecidas: a oferta, proibida pelo Vaticano, de se entregar como refém pela libertação de Aldo Moro; a fama de ser um bispo de esquerda (ele diz "bispo canhoto" ...).
As últimas heresias? Reflexões atualizadas sobre morte, eternidade, vida nova, juízo final, paraíso, inferno, corpo espiritual, purgatório, indulgências, etc. Somos todos heréticos, se heresia significa escolha, porque o ser humano tem o poder e o dever de escolher, dentro de dados limites reais, evitando tanto a vontade de dominar como a submissão às forças dominantes. O que é realmente a liberdade? Não indiferença, mas liberdade para se realizar, liberdade para amar. Minha liberdade implica a liberdade dos outros. A liberdade degenera em "populismo como derivação incestuosa da democracia", quando os direitos se estabelecem sem deveres. Um caso significativo é o do aborto, para o qual se obtém a não punibilidade. O embrião já é um ser humano? Há quem o considere apenas uma parte da mãe. A lei italiana faz uma distinção entre os primeiros e os últimos meses. Hoje, considera-se que o óvulo recém-fertilizado seja um ser humano em estado potencial, subordinado, na opinião comum, à humanidade plenamente atuável da mãe. Hoje o magistério da Igreja assume, pelo menos por precaução, a primeira tese: o óvulo fecundado é um ser humano. Mas existe uma questão estimulante: cerca de 40% dos óvulos fecundados são dispersos antes de se fixarem no útero. É possível que a natureza condene quase metade dos projetos-homem ao fracasso? O teólogo Enrico Chiavacci propunha a humanização na formação do córtex cerebral (segundo-terceiro mês), e ao acolhimento pela mãe, que personifica a humanidade. A Igreja deveria estar ciente da grande diferença entre as situações (contracepção, aborto) em que está em jogo o início de uma vida humana. Deus não nos ordena apenas uma ordem de coisas ditada pela razão, mas nos abre à intuição mais ampla, ao amor generoso.
O propósito desse escrito, conclui o autor, é ouvir questionamentos e ideias de muitas pessoas na comunidade cristã. A tradição é dinâmica, porque a humanidade é multiforme e em constante desenvolvimento. Os profetas perturbam porque enxergam à frente. O simples fato de falar dessas intuições provocou a marginalização do autor que, na sua idade, gostaria, mesmo com dificuldade, propô-las ao discernimento da comunidade. A relação entre a nossa liberdade limitada e a onisciência de Deus é misteriosa: sabemos que somos responsáveis e que Deus não sufoca, mas ajuda a nossa liberdade, amparada e acrescida pelo Espírito Santo. A "religião" tem a tarefa de levar essa mensagem fundamental para a história, e "portanto corre o risco de identificá-la com as modalidades temporárias", de "tornar perene, mas frágil, o que é funcional naquele tempo e naquela humanidade". Somos criados para realizar a nossa liberdade, que cresce a cada momento e será o nosso eu para sempre.
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A mensagem e os tempos. "Sonhar heresias. Fé, amor e liberdade" de Luigi Bettazzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU