“Há um colapso simbólico do supremacismo ocidental em sua forma liberal”. Entrevista com Alberto Toscano

Este filósofo estudou os desejos sociais insatisfeitos que a extrema-direita conseguiu aproveitar para o seu ressurgimento na última década. Nesta entrevista, ele também explica como a esquerda pode enfrentá-los

Foto: Heinrich Hoffmann | The Wiener Holocaust Library

26 Agosto 2025

Nos últimos tempos, a extrema-direita 2.0 se tornou um fenômeno demoscópico, um mobilizador nas urnas, tanto para quem vota a favor quanto para quem a teme, e um atrativo editorial. Dezenas de ensaios trataram, com maior ou menor sucesso, do crescimento de uma série de tendências que pareciam ter desaparecido na era da globalização feliz e que retornaram com força após o colapso do Lehman Brothers e o despertar para a austeridade militarizada.

A obra de Alberto Toscano (Fascismo tardío: raza, capitalismo y las políticas de crisis) é uma das mais sugestivas entre toda a oferta de conteúdo sobre essa nova juventude ou segunda reencarnação do fascismo, entre outras coisas porque não reconhece que só faz sentido falar de fascismo com base na experiência da Itália e da Alemanha dos anos 30 e 40 do século passado e leva sua pesquisa, pelo contrário, às expressões fascistas no mundo liberal anterior a essas manifestações, especificamente no crime das incursões coloniais.

Toscano, além disso, conecta essa história com o momento atual e, mais concretamente, com o genocídio que está ocorrendo em Gaza, apoiado e financiado por líderes que não foram e nem serão fascistas, mas que nem por isso deixam de compartilhar os mesmos desejos e horizontes que os líderes da extrema-direita.

Foto: Tomislav Medak | Wikimedia Commomns

A entrevista com Alberto Toscano é de Álvaro Minguito, publicada por El Salto, 24-08-2025. 

Eis a entrevista. 

O que representa hoje Israel para a ideia do fascismo tardio?

Acho que podemos começar refletindo brevemente sobre o debate a respeito do fascismo em Israel mesmo, que é um debate que tem uma história bastante longa e que, como muitas das questões das quais falo no livro, começou nos anos 70. A pequeníssima esquerda antissionista em Israel começou a discutir então, sobretudo a partir da ascensão de Menachem Begin, se era possível falar de Israel como uma forma sui generis de fascismo. Isso é interessante e sintomático, porque no caso israelense se pode ver muito bem como a categoria de fascismo pode servir não somente para nomear e analisar, mas também para ocultar alguns fenômenos. Então, no interior de um sionismo liberal — se este termo ainda tem sentido, talvez muito menos agora do que no passado — a ideia de uma fascistização de Israel também funcionava como justificação ou legitimação do sionismo em sua forma clássica. Transmitia-se a ideia de que o fascismo podia ser uma deriva, um momento de crise.

De onde surge essa ideia de equiparação entre sionismo clássico e fascismo?

Um dos movimentos mais interessantes da dissidência antissionista de esquerda, microscópico, mas muito produtivo intelectualmente, foi um grupo trotskista dos anos 70. Eles criticaram muito o fato de que alguns comunistas israelenses falavam do momento de Menachem Begin como um momento de fascismo, porque diziam que com isso se estava normalizando o que havia acontecido antes. Isso se pode ver também quando muitos centrismos, o progressismo e liberalismo, apresentam o fascismo não como o produto de uma potencialidade ou de uma dialética no interior do statu quo, mas como uma violação, uma exceção. Esse discurso o seguimos vendo. No Haaretz há um monte de artigos, escritos em vários momentos críticos na política israelense nos quais se fala de fascismo. O último momento foi a crise sobre a Suprema Corte, antes de 7 de outubro de 2023, e isso é supersintomático.

Em que sentido?

Nas entrevistas com intelectuais liberais e progressistas sionistas, estes dizem: "Bem, se esta reforma autoritária da Suprema Corte por parte do governo de Netanyahu se realiza, vamos entrar em uma lógica de fascistização na qual, por exemplo, os policiais vão chegar à casa das pessoas e tirá-las de suas camas; o Exército vai ter a licença de fazer o que quiser...". Sem serem conscientes, eles descreviam exatamente o que lhes acontece aos palestinos nos territórios ocupados e também a muitos palestinos que são formalmente cidadãos de Israel desde 1948. Hoje o discurso sobre o fascismo também tem esta possibilidade de uma autoexculpação por parte de um liberalismo, de um centrismo, que vê os fenômenos que ele mesmo produziu, ou do qual é cúmplice, como uma exceção.

Hoje vemos que a extrema-direita internacional está rendida nos braços de Israel. A pergunta, de fato, é como e por que a direita extrema internacional, a internacional tardo-fascista que se está compondo por todas as partes, tem tal identificação com Israel no momento de sua violência colonial mais extrema: genocida, exterminadora.

Creio que isso se podia também ler de muitas maneiras, e segundo os contextos, mas o que podemos ver neste caso é como a história profunda e a pré-história do fascismo, ou seja, a relação constitutiva do fascismo com o colonialismo e o capitalismo racial, faz com que neste momento Israel se possa perceber por parte de uma direita racista, ocidentalizada, supremacista, como a afirmação ou a realização quase utópica de suas ideias: a possibilidade de ser livres de dominar ao outro, o outro racializado, o indígena, com impunidade total no interior de uma sociedade neoliberal e capitalista, tecnologicamente desenvolvida.

Há uma identificação absoluta. É como se o inconsciente colonial da direita agora se pudesse expressar livremente. E claro, a situação é diferente com relação à Índia ou à direita latino-americana, mas no caso europeu é perfeito porque esta identificação com um Estado etocrático que está praticando uma guerra de extermínio, permite ao mesmo tempo a Europa se imunizar ou se limpar da acusação de ser antissemita, de ser racistas, e de ser identificados com o Holocausto. Por isso achei grotesco, mas sintomático, que há pouco tempo se produzisse um encontro em Jerusalém “pela defesa do mundo judeu” no qual havia fascistas com passado e presente de antissemitismo.

A referência fundamental é Estados Unidos, onde apenas há diferenças entre o tratamento em relação a Israel entre o establishment do Partido Democrata, os Republicanos e Trump. Como funciona neste caso essa adesão?

Na versão específica americana toda a lógica do sionismo cristão nacionalista extremo também tem seu papel: há uma identificação aberta, quase irrefletida com o colonialismo racial. É uma lógica diferente, talvez mais significativa e mais daninha. No entanto, nela podemos enquadrar também a declaração do primeiro-ministro alemão de que os israelenses estão fazendo “nosso trabalho sujo”. Parte desta ideia pela qual qualquer ato bélico ou de violência israelense é por definição legítima defesa.

É a lógica de que Israel é como uma ponta de lança do Ocidente e que a violência que desata é sempre uma contraviolência. Por isso também é muito sintomático que o Ministério de Assuntos Exteriores alemão pusesse no X uma mensagem que condenava a agressão iraniana antes que o Irã lançasse seus mísseis, mas depois que Israel bombardeou Teerã.

Você já mencionou a questão básica de que as práticas fascistas intoleráveis para as sociedades europeias em seu interior eram toleradas e aplaudidas quando se tratava das nações colonizadas. Esquecemos essa herança?

Em sua forma clássica essa é a análise que está no Discurso sobre o colonialismo, de Aimé Césaire, e essa é a lógica do que agora se voltou bastante comum chamar o bumerangue do colonialismo. O fascismo se pode compreender como o momento no qual esses métodos e violências coloniais — e também as ideologias raciais que comportam — rompem a fronteira sagrada da Europa. Mas nunca foram excepcionais para suas vítimas coloniais ou indígenas. Isso foi todo o discurso do pensamento radical negro anticolonial já nos anos 20 e 30 do século XX. É importante a conjuntura da metade dos anos 30, ou seja, do momento da invasão italiana da Etiópia em 1935 e claro, da Guerra Civil na Espanha do 36.

O que acontece nesses anos?

É o momento no qual o Komintern e a União Soviética têm mudado de estratégia: têm passado da ideia de classe contra classe, de antagonismo total contra o fascismo e contra a socialdemocracia, a uma lógica de Frente Popular. E na lógica da Frente Popular no 35 — também nos debates sobre a Liga das Nações — está a ideia de que se tem que diferenciar entre um imperialismo racista ou imperialismo fascista, e um imperialismo democrático, que funciona como mal menor. Então, toda uma série de intelectuais radicais, comunistas, marxistas procedentes do mundo colonial, mas em diásporas, em Paris, em Londres, desenvolvem esta outra tendência no pensamento crítico do fascismo, que põe em cima da mesa a relação fundamental entre o fascismo e o colonialismo. Dizem: o que vocês pensam que é uma abominação ou é uma exceção é nossa experiência do colonialismo, também do colonialismo francês, britânico, democrático e liberal. Estão os textos de George Padmore, de Césaire, de C. L. R. James e outros.

Esse é o momento e a razão pela qual estes dissidentes saem do Komintern e da Terceira Internacional e depois desenvolvem várias dissidências marxistas e socialistas. No caso da invasão da Etiópia, tratam de armar um discurso de solidariedade internacional em torno da ideia de sanções operárias, de um boicote operário. É interessante porque essa é a mesma tradição que é explicitamente citada no momento do apartheid e também em solidariedade contra a ditadura no Chile. Estende-se sobretudo entre os trabalhadores nos portos, os trabalhadores marítimos.

É um legado não muito recordado pela esquerda continental. Creio que é importante não só ver como há uma perspectiva política muito diferente que é desenvolvida no interior de um pensamento anticapitalista, mas também anticolonial, mas também pensar como este é o resultado de uma série de debates estratégicos e práticos. Estas outras teorias do fascismo se desenvolvem também no momento em que o antifascismo oficial, seja o liberal ou também no caso dos anos 30, da Terceira Internacional, trata o colonialismo ocidental liberal como um mal menor. E recordar isto me parece muito importante no momento contemporâneo.

O debate se dá também nos Estados Unidos no contexto da segregação racial, em uma fase prévia ao movimento pelos direitos civis. O discurso tem outros matizes, entre os quais está a ideia que dá uma das citações com as quais abro o livro, que a enunciou o poeta Langston Hughes, de que o fascismo, que para os europeus é algo novo, é algo muito familiar para a gente que tem vivido a escravidão, mas também todo o regime de Jim Crow do apartheid que governou muitos dos Estados Unidos.

Toda pessoa de esquerda tem reivindicado as utopias, no entanto, a experiência mostra que a utopia é, no mínimo, algo transversal às ideologias, e muito a miúdo, excludente por definição. A própria Utopia de Tomás Moro o era, e hoje vemos que Israel, à sua maneira, propõe sua própria utopia com a ajuda de Trump e seus vídeos com oropéis e cassinos.

A esquerda tem que problematizar a reivindicação do conceito de utopia?

Os movimentos radicais europeus tiveram umas relações muito complexas e também bastante problemáticas com o colonialismo, e estes se estenderam até as utopias concretas que propuseram. Faz uns anos estava trabalhando sobre os escritos do geógrafo anarquista Élisée Reclús. Em determinados momentos, muitos dos revolucionários exilados no século XIX — anarquistas, mas também comunistas —, sobretudo com as derrotas das revoluções no 48 e depois da comuna de Paris, tentaram construir ilhas, enclaves utópicos, mas em situações de colonialismo de assentamento. E há um debate entre os anarquistas franceses sobre se é possível colonizar, não no sentido de dominar, mas sim no sentido de encontrar terras livres ou sem ninguém. A questão de descolonizar a utopia é complexa. Também se olharmos a ficção científica, sobretudo a americana, por todos os fantasmas históricos próprios, vemos como está sedimentada a ideia do colonialismo de assentamento em todas as suas narrativas.

A utopia da direita se estende sem essas problemáticas.

Mas creio que há uma ambivalência e também contradições muito fortes no interior das direitas, também as direitas radicais ou extremas contemporâneas, com relação ao que é a utopia. De fato, uma das razões pelas que comecei a falar de fascismo tardio foi que nesse momento, em 2016-17, me parecia que — pensando em fenômenos como Trump ou as direitas extremas europeias— havia uma carga utópica bastante débil.

Qual é a diferença com o fascismo clássico nesse aspecto?

Nas análises dos anos 30 de figuras heterodoxas do marxismo e a teoria crítica como Ernst Bloch e George Bataille, estes — de maneira crítica com relação ao comunismo e o socialismo oficial — diziam que se estava menospreciando o elemento utópico do fascismo. Reconheciam que sim, efetivamente era uma perversão, mas também uma utopia, e que por isso tinha uma capacidade de canalizar umas forças, desejos, fantasmas excedentes na sociedade. Criticavam que seria um erro por parte de um marxismo excessivamente racionalista não confrontar isto e também, em sua versão talvez um pouquinho mais extrema no caso de Bataille, não tentar também captar estas energias.

No entanto, você diz que o desejo utópico da extrema-direita atual é fraco. Por quê?

Há muitas figuras na extrema-direita que se orientam para os fascismos mais ocultos, mas em sua maioria são movimentos muito conservadores em suas formas e estilos de vida e em seus imaginários. Toda a ideia — que é uma mímese invertida do comunismo, das utopias de esquerda nos anos 20 e 30 — que o fascismo tinha do imaginário de um “novo homem” ou de um futuro radicalmente diferente; em seu sentido de uma revolução nacional com sua estética, com sua cultura, não é central ou algo tão significativo para as direitas atuais.

Por quê?

Em certo sentido, essas direitas extremas têm as capacidades eleitorais e culturais que têm porque não pedem muito de seus seguidores. E uso esta palavra consciente de que se vincula às redes sociais. Não te pedem que mudes tua vida, não te pedem quase nem que te imagines fazendo sacrifícios. Foi curioso nesse momento das tarifas alfandegárias que, depois de um discurso de Trump, a gente ficou muito impactada porque ele disse, num sentido estranho e misógino, que as meninas estadunidenses deviam assumir ter três bonecas e não 30. Era surpreendente porque, ainda que somente fora uma pequena diminuição do consumo, se viu como uma ruptura de um contrato simbólico. Isto é sintomático deste conservadorismo a nível subjetivo, existencial. Se há elementos utópicos são mais banais, pequenas utopias de dominação doméstica, de dominação contra os migrantes, mas não existe uma ideia de que vá haver uma ruptura ou uma transformação da vida cotidiana.

De novo, Israel sim supõe uma utopia totalizante, com essa ideia do Grande Israel que representa a extrema-direita sionista. Talvez seja essa a razão pela qual há direitas extremas que têm uma forte identificação e atração para Israel, porque aí parece que, em sua extrema violência e capacidade de romper toda uma série de marcos geopolíticos, de carregar totalmente o direito internacional, há uma ideia utópica de novos espaços antes inimagináveis, de novos assentamentos. Tudo isso não é algo que seja parte do imaginário concreto, da tardo ou pós-fascista direita europeia, que já não tem verdadeiramente imaginários expansivos, tampouco a nível territorial. É a diferença que há (não sei se isto funciona em castelhano) entre o border e a fronteira. A fronteira pode avançar infinitamente, até Marte no caso de Elon Musk, mas a fronteira no sentido de border...

A fronteira política.

Sim. É algo que tem que se manter fixo e que funciona para ter o Outro fora e não para conquistar. É um imaginário que tem caráter conservador, mas há tensões. Creio que, ainda que seja débil, um elemento utópico sempre é necessário, e por isso aparece projetado em outros lados.

No caso de Estados Unidos, Trump mantém perto os evangelistas graças à promessa de uma nova Idade de Ouro, que tem ressonâncias com o pensamento religioso radical.

De fato temos ao embaixador americano em Israel, que descreve a Trump como uma figura quase messiânica.

Essa visão transcendental, que flerta com ideias como o apocalipse ou o anticristo não está presente nas experiências da extrema-direita europeia de partidos como os Fratelli d’Italia, Alternativa pela Alemanha, Agrupamento Nacional ou o mesmo Vox. Por quê?

Creio que há muito cálculo realista nas direitas extremas contemporâneas. Quer dizer, há um discurso, uma razão cínica que diz: “não há um horizonte de crescimento”. Ainda que o neguem às vezes de maneira muito violenta, creio que a questão da emergência climática e da finitude de tudo é parte do imaginário que dá força, que empurra a direita. Funciona com a ideia de que as coisas vão piorar, que, se não está fechado, o futuro certamente não tem um horizonte muito positivo e que, portanto, o papel da política é uma redistribuição antagonista, excludente, dominadora, de uns recursos que se vão restringindo. Isso forma parte do contrato simbólico e psíquico que se estabelece com formações como Fratelli d'Italia. Têm também elementos de gozo simbólico, psicológico, mas tomam parte de sua força deste cinismo: “Todos sabemos que nos toca ficar no mundo thatcherista: ‘Não há alternativa’, que o capitalismo é o que é, mas vamos limitar as capacidades de Os Outros internos ou mundiais de tomar os recursos, e também te vamos prometer um elemento de gozo, um incentivo psicológico que te permita romper todas as regras do politicamente correto, do woke; te vamos permitir ter teu discurso identitário racial, nacional, de gênero; te vamos permitir insultar e humilhar”. Me parece evidente que, para muita direita contemporânea este cinismo, este fatalismo de base, é quase explícito. Usando essa formulação de W.E.B. du Bois, há muito salário psicológico, mas bastante pouco salário material, e isto é quase explícito no contrato que se vem a assinar.

Não há alternativa, mas a há menos para o Outro alheio. Um fenômeno bastante significativo desta 'derechização' e nacionalização da política foi o Brexit na Inglaterra, onde eu vivi faz uns anos. Houve nesse período sondagens curiosas nos quais parecia que havia uma diferença bastante importante entre os que se queriam ficar na União Europeia e os que votavam pelo Brexit: a maioria das pessoas que votava pelo Brexit pensava que não ia mudar nada. 70% dizia "claro que não vai mudar nada, porque os políticos são corruptos, vendidos, mas vou afirmar minha identidade”. Enquanto, por todo lado, a maioria de gente que queria ficar na Europa pensava que ia haver consequências materiais. Isso me pareceu um sinal deste cinismo ou fatalismo que explica o crescimento da direita. Nos Estados Unidos é outra história pela questão evangélica. Há sondagens que dizem que o 40% dos americanos pensam que o anticristo vai chegar, o que te indica que as cargas utópicas são bastante diferentes. Mas ao menos, no Velho Continente, é muito forte este caráter de redistribuição mais bem simbólica e de políticas identitárias sem verdadeiramente um horizonte de mudança.

Outra família dentro da extrema-direita estadunidense é hoje dia a dos multimilionários do Vale do Silício. Por que você crê que têm abraçado estas ideologias gente como Elon Musk e outros como Peter Thiel as têm desenvolvido teoricamente?

Há uma longa história do Vale do Silício que é profundamente de direitas, isto o traça muito bem Malcolm Harris em seu livro “Palo Alto: A History of California, Capitalism, and the World”. É uma longa história de pensamento eugenésico, de imaginários de dominação ou supremacia intelectual com forte caráter racial, etc. E esta história começa antes dos computadores, nos anos 20-30 na Universidade de Standford. Soma a isto um elemento de níveis de desigualdade estratosféricos e da formação de uma autoconsciência de classe exorbitante, multimilionária. Me recorda uma bela frase do teórico comunista italiano Mario Tronti que diz que nossa história é a do capitalismo que quer se emancipar da classe operária; agora vemos que é uma emancipação da terra mesma, até Marte. Mas por outro lado, há algo muito mais concreto.

O quê?

Este grupo de capitalistas de big techPeter Thiel e Marc Andreesen à parte— tinha um determinado modus vivendi com o centrismo, com o neoliberalismo progressista do Partido Democrata, que parecia ser a ideologia orgânica do Vale do Silício. Isso tem mudado sobretudo nos últimos anos da década dos 10, e também no momento da revolta depois do assassinato de George Floyd por parte da polícia. Então começou a haver movimentos significativos ético-políticos no interior de suas planilhas. Se pensamos na organização de Tech Workers against Apartheid, No tech for ICE… Toda a gente que naquele momento tinha se tomado em sério o branding liberal e progressista destas companhias exigiram que Google, que Amazon, etc. não funcionassem, como de fato o fazem, como partes fundamentais da infraestrutura repressiva do Estado. Sobretudo no aparato militar industrial e também, e isso é muito significativo agora, da repressão dos migrantes e da militarização das fronteiras. E então a nível ideológico, mas também a nível material, esses setores são o pão e o sal de Amazon, de Google, de Musk. Os contratos com a infraestrutura militar e repressiva do Estado são os interesses materiais destas companhias, não as apps de brinquedo.

A tecnologia da repressão.

Por outro lado, também há uma psicologia política do founder, que se vê como uma figura meta ou parapolítica: o gênio, inventor, o capitalista mais ou menos soberano, que não pode tolerar que seus empregados —pagos muito bem, mas com poucos direitos — organizem formas ético-políticas, sindicais, no interior de suas companhias. E é interessante porque, claro, é gente que poderia ter aceitado todas as exigências de seus empregados e ainda ficar com quantidades de dinheiro com as que ninguém saberia o que fazer, mas aí emerge essa questão de seu poder material e simbólico também.

Há contradições entre este setor de milionários e o movimento MAGA.

Se tem dado uma aliança curiosa, não sem conflitos — Steve Bannon por exemplo tem denunciado que o Vale do Silício é um Estado de apartheid — mas se tem dado esta convergência, na qual há uma amálgama, um inimigo que é o wokismo, que são as universidades, que são as elites intelectuais, que são imaginadas como as que reprimem a capacidade do founder de exprimir toda sua inventiva transformadora, mas que também são as que dominam ao (mais bem imaginário) operário branco nacionalista. Então se tem criado esta estranha aliança de solidariedade negativa, entre estas várias figuras da direita extrema.

Peter Thiel, o fundador da Palantir, é um dos vértices mais importantes da extrema-direita estadunidense. O que representa hoje?

A Palantir representa o momento da plena autoconsciência desta ideia de que o Vale do Silício tem que se transformar abertamente em um projeto civilizatório e nacionalista devido à ameaça da China e a outros fatores. Um pode ler este texto super chato, mas delirante e muito estranho, de Alex Karp, chefe da Palantir e amigo de Thiel, que se chama “The Technological Republic”. O discurso é que temos que eliminar este vírus de liberalismo, essa debilidade, que se necessitam mais energias viris no mundo do Vale do Silício. Isso é algo que tem adotado Mark Zuckerberg. Karp diz também que, no momento da inteligência artificial, dos drones e dos algoritmos, tem que se criar a mesma síntese entre identidade tecnológica e domínio geopolítico que havia nos momentos álgidos da Guerra Fria e na época do Projeto Manhattan. Essa é sua utopia. E a coisa interessante é que é uma utopia que se tem voltado hiperestatalista, quase já não neoliberal, senão outra coisa. É como um capitalismo hipertecnológico de Estado.

Com rebites monárquicos.

Com rebites monárquicos, sim, sobretudo com estas figuras como Curtis Yarvin, que apresentam uma versão do CEO como figura da soberania, da antidemocracia.

Personagens como Yarvin me levam à questão de se nos devemos tomar realmente em sério este baticurrillo teórico para além que como uma justificação das práticas de dominação. Quer dizer, se todas estas ideias não são mais que uma forma de folclore ou se realmente obedecem a um programa coerente.

É difícil de discernir. Às vezes pensas que estas referências são mais bem ornamentais. A Steve Bannon ou a Peter Thiel e talvez a outros, lhes gosta ler a Julius Evola ou a Herbert Spengler, mas não sei até que ponto isto é importante. Há uma patologia profissional: os filósofos, os historiadores das ideias ou dos conceitos, nos orientamos nessa direção. Mas ao mesmo tempo me parece significativo que esta galáxia da direita extrema organizada em torno a Trump, com todas suas heterogeneidades, é curiosamente muito mais eurófila que o Partido Republicano do passado. Claro, há um muito forte componente de evangélicos, nacionalistas, cristãos e demais, mas também está esse grupo orientado para elementos da nouvelle droite, toda esta gente que se lê El Campamento de los Santos, de Jean Raspail, talvez um pouquinho de Alain de Benoist, etc., passando por esta organização bastante significativa que é o National Conservatism que forma outro laço com Israel e o sionismo.

Até que ponto a cultura da nova extrema-direita é importante para entender o fenômeno de sua extensão política nesta última década?

Há um desejo de intelectualidade na direita que a mim me é muito familiar, porque o tenho visto na direita extrema italiana que, desde os anos 70 com casa Pound, estava sempre cheia de revistas, colóquios, grupos de leitura; as paredes tinham fotografias de Gottfried Benn, Ernest Junger, Giovanni Gentile, Gabriele D'Annunzio e tudo isso. É difícil ver no interior de toda esta galáxia algo de orgânico. E se corre o risco de focar muito sobre as leituras de Bannon. Mas a realidade é que há uma produção muito mais chata, uma intelectualidade muito mais concreta, que plasma muito as políticas do trumpismo, que é a que se encontra em todo o trabalho cinza e quase anônimo de determinados think tanks. Se um lê o Projeto 2025, especialmente no nível jurídico e legal, que é onde se expressa uma profunda intelectualidade técnica que é muito particular de Estados Unidos, mas que tem seus imaginários políticos — cristãos, nacionalistas, identitários, homófobos e misóginos — creio que essa é a espinha dorsal sobre a qual se juntam estes outros elementos. Então, por exemplo, podemos pensar na ideologia europeia do grande substituto da década do 90, mas há que compreender também que isto nos Estados Unidos entronca com 150 anos de prática e pensamento anti-imigração, que encontramos já nas leis contra os trabalhadores chineses, e que já está no aparato legal e constitucional dos Estados Unidos. Sobre essa base se sintetizam estes outros elementos que não são insignificantes, mas que podem funcionar somente porque existe esta infraestrutura ideológica jurídica mais profunda.

Como influencia a extrema-direita estadunidense nos partidos pós-fascistas europeus?

Há uma influência clara do estilo. É algo lógico em um continente subimperialista, no qual a hegemonia cultural e geopolítica americana é tão forte. A ideia de que há amigos-irmãos ideológicos na Casa Branca tem sido chave para abrir um sentido de possibilidade. A figura de Bannon tem sido significativa por este intento de armar redes de intelectualidade e também de mímese pelos dois lados. Porque não são somente as guerras culturais, para as que se tomam algumas das táticas e estratégias institucionais nos Estados Unidos, também houve bastante mímese com a ideia de lutar contra as elites progressistas e criar um novo iliberalismo que pode tomar forma institucional. Viktor Orbán tem sido um exemplo nesse sentido. Há um sentido de possibilidade política, de abertura de outro ciclo, de outro horizonte. Por suposto, se têm tomado elementos das contrarrevoluções com formas jurídicas estadunidenses sobre questões de gênero, sexualidade e reprodução ou, na Itália, até o debate sobre portar armas. Há elementos de mímese, mas dentro de tradições jurídicas e de formas de institucionalidade muito diferentes. Se vê nas relações de Javier Milei com Musk, Meloni e Orban, ou Orban e Ron de Santis. Se tem aberto um mundo de possibilidades políticas. Se poderia dizer também que, a nível formal, talvez não seja tão diferente de como as esquerdas radicais na Europa iam ver o que se fazia em Equador, em Venezuela ou em Brasil. Não para operar a nível técnico-institucional senão como ambiente de época. Creio que é significativo ver também como se combinam nestas direitas extremas o identitarismo e o provincialismo com esta ideia de que são parte de um movimento bastante global.

O pós-fascismo se fortalece a partir de uma reivindicação da ideia de liberdade que não estava presente, não da mesma maneira, no fascismo clássico.

Não concordo, creio que na pré-história colonial do fascismo existe uma promessa que é utópica em seu sentido de ser livre para dominar, livre para desfrutar do próprio domínio em alguns espaços. Isso se encontra em alguns enclaves ou em alguns momentos também dos fascismos históricos clássicos de entreguerras. É uma das temáticas do livro do historiador francês Johann Chapoutot "Libres para obedecer" (Alianza, 2022). Ele fala que até na ideologia gerencial e subjetiva das SS existia esta ideia de que você tem um objetivo, mas como realiza o seu objetivo é o seu espaço de liberdade e autonomia. Para mim, um dos obstáculos para pensar criticamente o fascismo clássico, mas sobretudo o fascismo tardio, é todo o senso comum — que é uma herança da Guerra Fria — de que o fascismo é um totalitarismo no sentido de um sistema burocratizado de obediência total e quase mecânica. E esta ideia como do “Estado moloch” tem pouca relação com a realidade e também com os desejos ou as formas de subjetividade da extrema-direita contemporânea. E claro, por isso também existem todas estas relações complexas, entre formas extremas e violentas de autoritarismo e ideologias econômicas libertárias.

Por isso figuras como Javier Milei são também sintomáticas. Penso nos trabalhos do historiador Quinn Slobodian sobre “os bastardos de Hayek”, em todas as tendências de pensamento racial e colonial que estão no interior da história e genealogia do neoliberalismo. Se pensamos que o fascismo tem que se definir como uma Estadolatria, um estatismo exorbitante, então se torna quase impossível, porque pensas que o anarcocapitalismo não pode ter nada a ver com o fascismo. E por isso encontrei muito significativo ver como até no fascismo mais clássico, ou seja, desde os textos e discursos de Mussolini no período da Marcha sobre Roma, há toda uma curiosa identificação com o Estado mínimo liberal. Quer dizer, o fascismo se vê como método de violência para romper a espinha do movimento operário e toda a autonomia dos camponeses, dos operários, das organizações de solidariedade… para tornar possível menos Estado. Aí se vê também que a genealogia mesma do fascismo tem relações bastante complicadas com a ideia de liberdade econômica: liberdade econômica, liberdade da propriedade e então também liberdade de explorar, dominar, etc.

No livro, você inclui uma citação que diz que quem não estiver disposto a falar sobre o capitalismo, deveria calar-se também sobre o fascismo. A pergunta é se a semente do que está acontecendo agora estava ali antes de 2008, antes de Lehman Brothers e das políticas de austeridade.

Para Karl Polanyi já está ali com David Ricardo. Encontrei muito curiosa a ideia do vírus, um vírus que talvez estava suspenso, adormecido, mas que já estava ali. Por quê? Pode-se pensar também que há um vírus fascista porque a modernidade política econômica é altamente contraditória, porque a universalização dos direitos políticos e a universalização da cidadania tem uma relação conflitiva com um capitalismo. Este não só tem que reproduzir várias formações hierárquicas e parasitar formações hierárquicas que são sua herança pré-capitalista, mas que também, continuamente, cria populações, excedentes, descartáveis. Estava lendo a bela edição de Akal de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, e nesse livro está esta ideia de que o cesarismo bonapartista que se manifesta na metade do século XIX é como o sintoma desta contradição e quase impossibilidade constitutiva.

Como?

Essa é a teoria também do teórico japonês Kojin Karatani, que diz que o fascismo é uma variante da forma transcendental e contraditória da política no capitalismo. O autoritarismo bonapartista se toma como solução capitalista ao problema da necessidade de uma política de massas em uma sociedade que funciona com uma exploração hierárquica que gera populações excedentes. É nesse sentido — não no sentido do fascismo com as botas de couro preto — de uma solução violenta, mas que também necessita uma política de massas e necessita imaginários ou utopias de uma igualdade antagonista (dos colonos contra os indígenas, dos heterossexuais contra os anômalos, etc.), que se dá esta solução invariável mas que se repete em formas super diferentes.

O que resgatamos então do estudo do fascismo clássico para enfrentar a atual situação?

Quando comecei a escrever o livro estava este debate nos Estados Unidos, sobre analogias e desanalogias com o fascismo, encontrei muito significativo pensar através dos textos de gente que teve experiência direta do fascismo: Hannah Arendt, Primo Levi, o mencionado Césaire, e outros que eram sempre muito lúcidos sobre o fato de que a potencialidade e a repetição do fascismo está sempre aí sobre a mesa, mas que não ia tomar as mesmas formas. Marcuse, por exemplo, diz que pode haver fascismo nos Estados Unidos, mas que suas formas de aparência, suas manifestações não vão ser reconhecíveis como tais. Isso quer dizer que também a nível teórico conceitual estamos obrigados a pensar o que quer dizer exatamente este processo e potencialidade. Mas tampouco é tão misterioso se um pensa que o fascismo mesmo, que na politologia se torna algo muito sólido em sua história, não o é para nada. Tem momentos radicalmente diferentes.

Há uma proposição no livro, uma pequena esperança, que você baseia em que é necessário converter-se no que a extrema-direita crê que é hoje a esquerda: antibranca, queer, mestiça.

Minha modesta proposição é a versão antifascista da ideia de Nietzche de se tornar o que você é. Ser o que eles pensam de você. Realizar seu inimigo imaginário.

Despertar de verdade, ser woke de maneira consciente.

Mas claro, é um ideal regulativo bastante utópico. Creio que este é um momento extremo também a nível simbólico. É extremo a nível material pelos excessos de violência militar, mas o que encontro politicamente significativo na Europa e América do Norte é o profundo vazio no interior das ideologias do extremo centro. Tudo o que se apresenta como possibilidade de reproduzir uma normalidade ocidental se torna como uma caricatura oca. É bastante assustador o mantra, como de zumbis possuídos, quando defendem que Israel tem o direito de se defender. Não a nível material, porque como diz Ilan Pappé sobre Israel, o sionismo está em sua crise terminal, mas essa crise pode durar muito tempo e ser particularmente violenta em suas partes finais, mas creio que há um colapso simbólico deste supremacismo ocidental em sua forma liberal e liberal progressista, que é muito acusado. Nesse colapso, por agora, os fascismos têm seu húmus, seu ambiente de crescimento, mas não sei quanto mais vai durar isso sem contrapesos ou reações. E isso se vê também a um nível empírico de desfiliação massiva: vemos por exemplo como os níveis de apoio para a guerra no Irã ou para o que estão fazendo em Gaza é mínimo a nível social. Inclusive na Alemanha, onde é delirante o apoio a Israelright or wrong”, a nível da população, as críticas não são muito diferentes das que há na Espanha ou Itália. Então não sei quanto mais tempo esta fachada, este vazio político pode continuar da mesma maneira.

O programa é provocar a destruição do supremacismo ocidental?

Sim, seria um bom programa. Como a eutanásia do rentismo, a eutanásia do supremacismo ocidental.

Leia mais