Hobbes e Schmitt e a soberania como fundamento da política autoritária contemporânea. Artigo de Márcia Rosane Junges

As categorias de medo hobbesiano e de amigo-inimigo schmittiano são cruciais para lermos o contexto político atual, em democracias liberais capturadas pelo autoritarismo plebiscitário e que são condição para que o fascismo se constitua legalmente

Leviatã | Foto: Divulgação/Wikimedia Commons

24 Mai 2025

“Enquanto Hobbes vê o medo como fundador da ordem, Schmitt vê a inimizade como motor da decisão soberana. Nas democracias atuais, ambas as lógicas se mesclam. O medo justifica a centralização do poder e a inimizade define quem deve ser expulso do corpo político, a exemplo dos imigrantes como ‘ameaça cultural’”, afirma Márcia Rosane Junges no artigo escrito para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Para a pesquisadora, “Hobbes e Schmitt oferecem ferramentas para decifrar a reativação do autoritarismo sob roupagens democráticas. Se o medo legitima o poder centralizado e a amizade-inimizade fragmenta o corpo político, a soberania contemporânea opera numa zona cinzenta entre democracia e autocracia. Urge, portanto, reforçar instituições que resistam à redução da política ao binômio segurança/inimigo, reafirmando o espaço público como arena de contestação e diálogo”. Em sua análise, há um paradoxo fundamental enfrentado pela filosofia política, concretizado a partir do estado de exceção, legalmente previsto e aplicado: “a própria ordem democrática frequentemente recorre a instrumentos autoritários para se sustentar. Esse aparente contrassenso revela a complexa relação entre medo, soberania e exercício do poder nos regimes liberais modernos”. Assim, o caráter bifronte da soberania moderna não pode mais ser escondido, e serve de modelo operativo da política democrática liberal, que tem se mostrado terreno fértil para o crescimento da extrema-direita e suas reconfigurações fascistas.

Márcia Rosane Junges é graduada em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e licenciada em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. É especialista em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), mestra e doutora em Filosofia Política pela Unisinos e pela Universitá degli Studi di Padova (UNIPD), na Itália, onde realizou cotutela com dupla titulação. É professora permanente do PPG Filosofia da Unisinos e do curso de graduação em Filosofia e uma das jornalistas da equipe do IHU. Coordena o grupo de estudos "A Filosofia Política Pensada pelas Mulheres: Vozes, Ressonâncias e Insurgências", ligado ao projeto de pesquisa em desenvolvimento no PPG Filosofia "Os Dilemas das Democracias Ocidentais: Espetacularização da Política e Recrudescimento do Neofascismo – Diálogos a Partir de Nietzsche e Agamben".

Dentre suas publicações, destacamos: A transvaloração dos valores em Nietzsche e a profanação em Agamben (Cadernos de Filosofia Política da USP, Especial II Encontro do GT de Filosofia Política Contemporânea, nº 28, 2016, p. 97-108), bem como os capítulos de livros Potência-do-não e potência destituinte: uma política como forma-de-vida (ALVES NETO, Rodrigo Ribeiro (org.), Política, direito e economia no século XXI, Rio de Janeiro: Via Verita, 2019, v. 1, p. 203-214) e A potência em Nietzsche e Agamben: aberturas da política e críticas à democracia liberal (VIESENTEINER, Jorge L.; MÜLLER, Maria Cristina; NETO, Rodrigo Ribeiro Alves (org.), Filosofia política contemporânea, São Paulo: ANPOF, 2019, v. 1, p. 68-75).

Eis o artigo.

Medo e amigo-inimigo: conceitos atuais

Este artigo examina como os conceitos de medo, em Thomas Hobbes (1), e de amigo-inimigo, em Carl Schmitt (2), influenciam o uso da soberania autoritária no contexto das democracias liberais contemporâneas. Argumenta-se que mesmo em regimes democráticos a instrumentalização política do medo e a construção discursiva de inimigos internos/externos reativam lógicas autoritárias sob o pretexto de segurança e ordem. A análise articula a filosofia política de Hobbes e Schmitt com fenômenos atuais, como o securitismo, o populismo de direita e a erosão de garantias liberais com o recrudescimento de autoritarismos que nascem por dentro das democracias, via estado de exceção.

A tensão entre democracia e autoritarismo persiste nas sociedades ocidentais, onde crises (econômicas, migratórias, sanitárias, entre outras) são frequentemente geridas mediante a exacerbação do medo coletivo e a polarização política. Dois pensadores oferecem chaves interpretativas cruciais para olharmos para esses fenômenos de nosso tempo: Thomas Hobbes (autor de Leviatã, de 1651), para quem o medo opera como fundamento do contrato social e da soberania absoluta, e Carl Schmitt (autor de O conceito do político, de 1932), que propunha uma compreensão da política como distinção entre amigo e inimigo, base da decisão soberana. A relação entre medosoberania e autoritarismo nas democracias liberais remonta a uma tensão irresoluta na filosofia política: a paradoxal dependência da ordem democrática de mecanismos autoritários de exceção.

Hobbes parte de uma antropologia pessimista: o homem, movido por paixões (medo, desejo, glória), só aceita a soberania porque teme a morte violenta (bellum omnium contra omnes). O Leviatã não é apenas um contrato racional, mas uma instituição fundada no terror primordial. Schmitt, por sua vez, desvela o mito liberal da neutralidade política: a ordem jurídica sempre repousa sobre uma decisão soberana que define quem é o inimigo (o "outro" a ser excluído). A política, assim, não se reduz a consenso, mas à potência de exclusão.

A tese central que reside em nossa argumentação é que nas democracias atuais, a biopolítica do medo (Hobbes) e a gramática da inimizade (Schmitt) são mobilizadas para justificar a soberania autoritária como proteção contra ameaças reais ou, na maior parte das vezes, imaginadas e criadas artificialmente em atendimento a interesses governamentais. Procuraremos explorar como esses conceitos são ressignificados para legitimar práticas autoritárias dentro de estruturas democráticas.

Hobbes: o medo como alicerce da soberania

Para Hobbes, o estado de natureza é uma guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes), onde o medo da morte violenta leva os indivíduos a cederem liberdades a um soberano absoluto. Na contemporaneidade, observamos dois desdobramentos fundamentais da hipótese hobbesiana.

O primeiro deles é a securitização da política. Governos ampliam poderes de vigilância e repressão sob a justificativa de proteger cidadãos de ameaças como terrorismo, pandemias e crises migratórias, entre outros eventos reais e/ou potenciais. Para conseguir isso, apelam à legitimação pelo perigo, imprimindo vigilância e restrições a liberdades, como as leis antiterrorismo implementadas após o 11 de Setembro de 2001.

O outro desdobramento é o uso da exceção como norma, que está atrelado ao ponto anterior e é fundamentado na filosofia política de Giorgio Agamben (3), na obra já clássica e que compõe o projeto Homo sacer. A suspensão temporária de direitos (como em estados de emergência) aproxima-se da lógica hobbesiana de soberania como controle da desordem. Depois do 11 de Setembro norte-americano, leis como o USA Patriot Act normalizaram a vigilância em massa, evocando o medo do "inimigo externo", de uma forma difusa e sempre prestes a se configurar através do “outro” encarnado na figura do estrangeiro imigrante. Por outro lado, eventos como a pandemia de Covid-19, cuja letalidade fez milhões de vítimas, expôs o paradoxo das democracias suspenderem direitos legalmente, como no caso do lockdown, a fim de evitar que o vírus de propagasse e dizimasse ainda mais vidas. Em ambos os casos (pós 11 de Setembro e pandemia de Covid-19), o medo é a categoria unificadora que destrava os mecanismos de exceção, que passam a operar como norma. Por receio de novos atentados e por temer a morte por contaminação, os cidadãos dão sua anuência às medidas excepcionais decretadas pelo soberano.

Para Hobbes, o medo não é patológico, mas constituinte da ordem política. Assim, o estado de natureza paira no horizonte permanentemente: a soberania hobbesiana não supera o medo, mas o canaliza contra um inimigo comum (o caos). Daí a frase: “Pactos, sem a espada, são apenas palavras” (Leviatã, Cap. XVII). A soberania nesse autor direciona o medo enquanto afeto político para otimizar resultados em favor dos signatários do pacto social.

soberania moderna, mesmo em contextos democráticos, opera como um Leviatã light – centralizando poder sob o discurso da proteção, mas reproduzindo a lógica do homem lobo do homem. A metáfora do Leviatã light remete diretamente à obra Leviatã (1651), na qual Hobbes propunha que o Estado surge como um monstro artificial necessário para conter a guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Na Modernidade, mesmo em regimes democráticos, a soberania mantém essa essência hobbesiana de centralização do poder, ainda que atenuada por mecanismos de legitimação discursiva. Hobbes argumentava que, no estado de natureza, o homem é o lobo do homem (homo homini lupus), e a soberania moderna, ao justificar-se pela proteção da segurança e da ordem, perpetua essa lógica sob novas roupagens: o poder concentrado continua a ser a resposta a um suposto caos latente, agora domesticado pelo contrato social, mas não eliminado. A democracia, nesse sentido, pode ser vista como uma forma de Leviatã mitigado, que, embora institucionalize a participação, não abdica da violência simbólica e material inerente à soberania.

A reprodução da máxima homo homini lupus nos sistemas contemporâneos revela a ambiguidade do projeto hobbesiano: a ordem civilizatória não supera a natureza predatória humana, apenas a institucionaliza. O "Leviatã light" opera sob o véu da racionalidade técnica e da governabilidade, mas sua estrutura ainda reflete o medo primordial da desordem, que Hobbes via como o cerne da política. A centralização do poder, mesmo em contextos democráticos, demonstra que a soberania moderna não rompe com a dinâmica da suspeita e do controle, apenas a sublima em dispositivos burocráticos e jurídicos. Assim, a democracia pode ser interpretada, sob a ótica hobbesiana, como uma forma de pacto de submissão renovado, onde os indivíduos trocam parte de sua liberdade por segurança, mas sem jamais transcender completamente a sombra do lobo – agora metamorfoseada em estruturas de vigilância, marginalização e exclusão política.

Schmitt: a política como distinção amigo-inimigo

Schmitt critica o liberalismo por neutralizar o conflito político, defendendo que a essência da política reside na diferenciação binária entre amigos e inimigos. Em nossa análise, na era atual podemos apontar duas expressões das teses do controverso jurista alemão.

A primeira das teses é o populismo autoritário, expresso por líderes como Orbán (Hungria) ou Trump (EUA), que constroem narrativas maniqueístas, identificando "inimigos do povo" (imigrantes, elites, minorias) e que revela um núcleo essencial da política contemporânea: a construção deliberada de inimigos como estratégia de poder. Esse processo não é meramente retórico, mas uma tecnologia política que resgata e atualiza os conceitos de Carl Schmitt, transformando a distinção amigo-inimigo no eixo de uma nova forma de soberania. Para Carl Schmitt, o político se define pela capacidade de identificar e excluir o inimigo. O populismo autoritário opera exatamente nessa chave que se desdobra em uma tríade:

1) Maniqueísmo radical: A política é reduzida a um jogo binário onde não há adversários, apenas inimigos existenciais. Orbán não diz que os imigrantes são um grupo com demandas legítimas, mas uma "invasão" que ameaça a "Europa cristã". Por sua vez, Trump não critica a mídia, mas a declara "inimiga do povo americano" (enemy of the people).

2) Politização do ódio: O inimigo não é um competidor, mas um mal a ser erradicado. Isso justifica medidas excepcionais. No caso de Orbán, são fechadas universidades (como a Central European University) por serem "anti-húngaras", ao passo que Trump promove ou reedita uma "caça às bruxas" contra o "deep state" (o Estado profundo) e ameaça retirar verbas de universidades que não se dobrarem ao seu escrutínio e imposições. Isso é profundamente schmittiano, porque o líder populista define quem é o inimigo, basta lembrar a afirmação de Schmitt de que "Soberano é aquele que decide o estado de exceção". A suspensão da normalidade é outra atribuição do líder de tipo populista, que evoca o discurso de crise ("Estamos sob ataque!"), que permite violar regras democráticas para "salvar o povo".

3) A fabricação do "inimigo do povo": O populismo autoritário não inventa inimigos do nada, mas reativa e amplifica divisões sociais através de três expedientes fundamentais:

O populismo autoritário, à luz da filosofia política de Carl Schmitt, radicaliza a distinção amigo-inimigo como núcleo do político, transformando-a em um maniqueísmo radical que divide o mundo entre forças antagônicas e irreconciliáveis. Essa lógica opera não como mera disputa ideológica, mas como uma guerra existencial em que o "inimigo" é desumanizado e estigmatizado como ameaça à pureza identitária do povo. Schmitt via na definição do inimigo a essência da soberania, e o populismo autoritário leva esse princípio ao extremo, convertendo adversários políticos em inimigos objetivos – figuras a serem não apenas derrotadas, mas eliminadas simbolicamente (e, em casos extremos, fisicamente). Aqui, a politização do ódio não é um efeito colateral, mas um mecanismo deliberado de mobilização, onde o afeto negativo se torna o cimento da unidade popular.

fabricação do "inimigo do povo" é o corolário desse processo, uma construção retórica que amalgama diferenças políticas, étnicas ou culturais em uma figura única e malevolente – seja a elite corrupta, o estrangeiro invasor ou o "outro" ideológico. Schmitt entendia que a política é fundada na exclusão, e o populismo autoritário instrumentaliza essa exclusão como espetáculo permanente, garantindo a perpetuação do estado de exceção sob o pretexto da defesa da comunidade. Nessa tríade (maniqueísmo, ódio politizado e inimigo fabricado), o poder não se contenta em governar; precisa gestar inimigos para justificar sua própria existência. Assim, a democracia é esvaziada em favor de uma soberania plebiscitária, onde o povo, reduzido a massa homogênea, delega ao líder a missão sagrada de purgar o corpo social de seus supostos parasitas.

Autoritarismo plebiscitário

Tais expressões do populismo autoritário não são uma excrescência conseguida através de um golpe militar e impostas à força à população como no passado, quando a força bruta se materializava ocupando os postos mais altos dos governos. Agora, tais facetas de autoritarismo plebiscitário se concretizam legalmente, através de eleições legítimas e amplamente reconhecidas pela comunidade internacional.

autoritarismo plebiscitário é um regime que mantém as formas democráticas (eleições, parlamentos, constituições) enquanto esvazia seu conteúdo substantivo, substituindo o pluralismo político por uma lógica de mobilização popular em torno de um líder carismático. Esse modelo não é uma ditadura clássica, mas uma democracia iliberal que instrumentaliza o voto popular para legitimar o poder autoritário. O termo tem raízes na teoria política de Max Weber, em Economia e Sociedade (1922), no qual descreve a dominação carismática, na qual um líder exerce poder com base em uma conexão emocional direta com as massas, contornando instituições. Outro referencial teórico do autoritarismo plebiscitário é Carl Schmitt, que em A Ditadura (1921), analisa como governos podem usar plebiscitos (consultas populares) para concentrar poder, alegando representar a "vontade do povo" contra elites corruptas. É um regime que simula democracia por meio de eleições e referendos, mas suprime controles institucionais (Justiça independente, imprensa livre, oposição política), substituindo-os por legitimação plebiscitária (apoio popular direto ao líder).

Essa estratégia não destrói a democracia formal, mas a esvazia por dentro, originando democracias sem pluralismo, nas quais as eleições continuam, mas o espaço público é dominado pelo maniqueísmo amigo-inimigo. Outra consequência é a implementação de direitos sem garantias, como as minorias que são legalmente cidadãs, mas politicamente estão excluídas, a exemplo das leis anti-LGBTQIA+ na Hungria. O uso da soberania como vingança, quando o governo vira um instrumento de punição aos inimigos, e não de bem comum, é mais uma das concretizações desse autoritarismo plebiscitário.

No governo de Orbán essa deriva se constitui via leis antimigração, nas quais os imigrantes são tratados como invasores, não como sujeitos de direitos. Já os jornalistas críticos são classificados como "inimigos da pátria". No governo de Trump, a retórica da "America First" ecoa aos quatro ventos, enquanto acordos internacionais são abandonados por "traírem" os EUA. Todo e qualquer opositor é tido como antipatriótico nesse culto ao líder.

O fenômeno Orbán-Trump não é um acidente, mas a expressão máxima de uma política schmittiana em contextos democráticos, qual seja: 1) o inimigo como cimento do poder: sem a figura do outro maligno, o populismo autoritário perde força; 2) a democracia como campo de batalha: a política vira guerra civil fria, onde o objetivo não é convencer, mas aniquilar simbolicamente o adversário.

Democracias iliberais

A segunda das teses schmittianas aparece nas democracias iliberais, nas quais a soberania manifesta-se na supressão de dissidências sob o argumento de "proteção da identidade nacional". Exemplo disso é o discurso anti-imigração na Europa, que instrumentaliza a figura do "inimigo cultural" para restringir direitos humanos.

Schmitt radicaliza Maquiavel (4) e Hobbes ao afirmar que a política é sempre um campo de antagonismo irreconciliável. O jurista critica o pluralismo liberal por tentar domesticar o conflito via procedimentos (através de eleições e direitos, por exemplo), mas falha em eliminar a dimensão existencial do inimigo (Der Begriff des Politischen).

No populismo autoritário, líderes como Bolsonaro ou Trump constroem inimigos (esquerda, mídia, minorias) para se consolidarem no poder. Schmitt diria que isso não é patologia, mas a essência do político, é algo ínsito à sua conformação e é impossível pensar e fazer política fora desse paradigma. Já na democracia militante, em países como a Alemanha pós-nazismo criminalizam discursos "antidemocráticos", criando um inimigo do sistema (paradoxo: excluir para preservar a inclusão).

Enquanto Hobbes vê o medo como fundador da ordem, Schmitt vê a inimizade como motor da decisão soberana. Nas democracias atuais, ambas as lógicas se mesclam. O medo justifica a centralização do poder e a inimizade define quem deve ser expulso do corpo político, a exemplo dos imigrantes como "ameaça cultural".

Medo, soberania e autoritarismo

A filosofia política enfrenta um paradoxo fundamental: a própria ordem democrática frequentemente recorre a instrumentos autoritários para se sustentar, a exemplo do estado de exceção, previsto constitucionalmente e aplicado em diferentes contextos e períodos (como ocorreu ao longo dos 12 anos em que esteve vigente o regime nacional-socialista, na Alemanha, perfeitamente de acordo com a Constituição de Weimar, jamais revogada). Esse aparente contrassenso revela a complexa relação entre medo, soberania e exercício do poder nos regimes liberais modernos.

Portanto, nesta análise que propomos, as bases filosóficas do autoritarismo democrático se assentam sob duas fundações:

1) a fundamentação hobbesiana do poder, que parte de uma visão profundamente pessimista da natureza humana, na qual Hobbes identifica no medo da morte violenta (bellum omnium contra omnes) o verdadeiro alicerce do contrato social. O Leviatã emerge não como fruto de deliberação racional, mas como manifestação institucionalizada do terror primordial que impele os homens a abrirem mão de sua liberdade;

2) a crítica schmittiana à neutralidade política desconstrói a ilusão liberal de uma política neutra, demonstrando como todo ordenamento jurídico necessariamente se apoia em atos soberanos de exclusão. Para o jurista alemão, a essência do político reside precisamente na capacidade de distinguir e marginalizar o "outro" como inimigo.

Nas democracias atuais, observamos uma convergência preocupante dessas duas perspectivas, de que o medo hobbesiano é instrumentalizado como justificativa para medidas autoritárias e de que a lógica schmittiana da inimizade serve para identificar e excluir grupos considerados ameaças. Juntas, essas dinâmicas criam um novo paradigma de soberania que mescla aparências democráticas com práticas autoritárias.

Dessa forma, nas democracias contemporâneas, a instrumentalização do medo hobbesiano – outrora justificativa para a criação do Leviatã como garantia de segurança – ressurge como mecanismo de legitimação de medidas autoritárias sob o verniz da legalidade. O discurso da proteção, que em Hobbes servia para fundar a ordem política, é agora manipulado para expandir o controle estatal, vigiar dissidentes e restringir liberdades em nome de uma suposta ameaça permanente. Se no estado de natureza o medo era do outro, hoje ele é reativado e dirigido pelo próprio poder soberano, que se apresenta como único capaz de conter o caos. Essa dinâmica revela uma paradoxal permanência do hobbesianismo mesmo em regimes democráticos, nos quais a segurança se torna pretexto para a erosão de direitos fundamentais, reeditando a máxima de que a paz social exige a renúncia à liberdade.

Quando essa lógica se combina com a soberania schmittiana, baseada na distinção amigo-inimigo, consolida-se um novo paradigma de poder: uma democracia autoritária que mantém formas representativas, mas opera pela exclusão sistemática de grupos estigmatizados como "perigosos". A identificação de inimigos internos – sejam minorias políticas, étnicas ou sociais – permite ao poder soberano justificar sua exceção permanente, transformando a política em um campo de batalha onde a norma é suspensa em nome da "defesa da sociedade". O resultado é um regime híbrido, que preserva rituais eleitorais enquanto esvazia a substância democrática, reduzindo-a a um simulacro no qual o povo é convocado não para deliberar, mas para legitimar a perseguição daqueles que o próprio poder define como ameaça. Nesse contexto, a soberania moderna revela seu caráter bifronte, tal qual o deus romano Janus (5): de um lado, seu rosto democrático, de outro, uma máquina hobbesiana de medo e uma lógica schmittiana de exclusão que operam em consonância, retroalimentando-se incessantemente. Essa bipolaridade não é casual, nem mesmo esporádica: é a própria lógica do funcionamento democrático liberal, sempre sob a possibilidade de derivar para formas autoritárias, inclusive fascistas, variando em contextos locais e epocais, como podemos observar no crescimento da extrema-direita em inúmeros países, seja no Brasil, EUA, Hungria ou Alemanha.

Algumas conclusões

Hobbes e Schmitt oferecem ferramentas para decifrar a reativação do autoritarismo sob roupagens democráticas. Se o medo legitima o poder centralizado e a amizade-inimizade fragmenta o corpo político, a soberania contemporânea opera numa zona cinzenta entre democracia e autocracia. Urge, portanto, reforçar instituições que resistam à redução da política ao binômio segurança/inimigo, reafirmando o espaço público como arena de contestação e diálogo.

A combinação Hobbes-Schmitt revela que o autoritarismo contemporâneo não é um desvio da democracia, mas um produto de suas contradições internas. Assim, o medo hobbesiano garante a obediência ao Estado. Já a inimizade schmittiana fornece o inimigo necessário para mobilizar as massas.

A síntese entre Hobbes e Schmitt expõe as entranhas paradoxais da democracia liberal, demonstrando que o autoritarismo contemporâneo não surge como sua negação, mas como consequência de suas tensões irresolutas. Por um lado, o medo hobbesiano, longe de ser superado pelo contrato social, é reativado como dispositivo de controle: a insegurança econômica, o terrorismo ou as crises sanitárias transformam-se em justificativas para a ampliação do poder estatal e a restrição de liberdades individuais. Nesse sentido, a obediência não decorre mais do consentimento racional, mas do pânico administrado – uma atualização do estado de natureza onde o Leviatã já não protege os cidadãos da guerra de todos contra todos, mas os mantém reféns de uma paz autoritária. A democracia, assim, revela sua vulnerabilidade ao abrigar em seu seio o germe do absolutismo, que se alimenta da própria linguagem dos direitos e da segurança.

Por outro lado, a inimizade schmittiana fornece o combustível para a mobilização política em sociedades fragmentadas, onde a polarização substitui o debate pluralista. A construção de "inimigos do povo" – sejam elites corruptas, minorias identitárias ou adversários ideológicos – permite ao poder soberano consolidar sua hegemonia através da exclusão, convertendo a política em uma guerra simbólica permanente. Esse mecanismo não é um acidente, mas um sintoma da crise da representação: quando a democracia falha em mediar conflitos, a figura do inimigo restaura artificialmente a unidade do corpo político, ainda que ao preço de sua degradação ética. A combinação dessas duas lógicas – o medo que paralisa e o ódio que mobiliza – gera um autoritarismo pós-moderno, que preserva as formas democráticas enquanto as esvazia de conteúdo, demonstrando que o totalitarismo do século XXI não chega com tanques, mas com pesquisas de opinião e estados de exceção normalizados.

Essa análise sugere que a resistência ao autoritarismo exige primeiramente desnaturalizar o medo, questionando narrativas que transformam riscos em ameaças existenciais, como faz a teoria crítica de Ulrich Beck (7) e politizar a inclusão ao rejeitar a lógica amigo-inimigo e repensar a democracia como espaço de conflito sem exclusão, como propõe Chantal Mouffe (8).

Referências

AGAMBEN, G. Estado de Exceção, 2003.

HOBBES, T. Leviatã, 1651.

MOUFFE, C. Por um Populismo de Esquerda (2018) – Como evitar o maniqueísmo.

MÜLLER, J-W. What is Populism? (2016) – Análise do populismo autoritário.

SCHMITT, C. O Conceito do político, 1932.

SCHMITT, C. Teologia Política (1922) – Sobre a decisão soberana.

Notas

(1) Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês, mais conhecido por seu livro de 1651 intitulado Leviatã, no qual ele expõe uma formulação influente da teoria do contrato social. É considerado um dos fundadores da filosofia política moderna. Influenciado por ideias científicas contemporâneas, desejava que sua teoria política fosse um sistema quase geométrico, em que as conclusões decorressem inevitavelmente das premissas. A principal conclusão prática de sua teoria política é que um Estado ou sociedade não pode ser seguro a menos que esteja nas mãos de um soberano absoluto. Disso decorre a visão de que nenhum indivíduo pode ter direitos de propriedade contra o soberano, e que o soberano pode, portanto, tomar os bens de seus súditos sem seu consentimento.

(2) Carl Schmitt (1888-1985): filósofo, jurista e teórico político alemão. Membro proeminente do Partido Nazista, é considerado um dos mais significativos e controversos especialistas em direito constitucional e internacional do século XX. Para além dos campos do direito, sua obra abrange outros campos de estudo, como ciência política, sociologia, teologia, filosofia política e germânica. De sua extensa produção, destacamos A ditadura, O conceito do político e Teologia política.

(3) Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer. Formado em Direito, em 1965, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, participou dos seminários promovidos por Martin Heidegger, no fim dos anos 1960. De 2003 a 2009 lecionou Estética e Filosofia, no Instituto Universitário de Arquitetura (IUAV) de Veneza. Em seguida decidiu abandonar a atividade de ensino nas universidades italianas.[1] Atualmente dirige a coleção "Quarta prosa" da editora Neri Pozza. na Università IUAV em Veneza. A sua produção se concentra nas relações entre a filosofia, a literatura, a poesia e, fundamentalmente, a política. Responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, foi professor visitante da New York University, antes de se decidir a não mais entrar nos Estados Unidos, em protesto contra a política de segurança do governo Bush. Sobre o pensamento de Agamben, confira a Revista IHU On-Line Edição 505, de 22-05-2017, intitulada Giorgio Agamben e a impossibilidade de salvação da modernidade e da política moderna, disponível aqui.

(4) Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (1469-1527): filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico de origem florentina do Renascimento, reconhecido como fundador do pensamento e da ciência política moderna pelo fato de ter escrito sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser. Desde as primeiras críticas, feitas postumamente pelo cardeal inglês Reginald Pole, cunhou-se um entendimento equivocado da obra completa de Maquiavel. Com o choque de realidade causado pelas suas ideias sobre a dinâmica do poder, seus textos geraram uma ameaça aos valores cristãos vigentes, principalmente devido às análises do poder político da igreja católica contidas em "O Príncipe". Já na literatura e teatro ingleses do século XVII, foi associado diretamente ao Diabo por meio das referências caricaturais e do apelido "Old Nick". Surgiu, aí, na visão do pensamento enganoso e da trapaça, o adjetivo maquiavélico nas línguas ocidentais. Sobre o pensamento de Maquiavel, confira a Edição 427 da Revista IHU On-Line, de 16-09-2013, intitulada A política desnudada. Cinco séculos de O Príncipe, de Maquiavel, disponível aqui.

(5) Janus: deus romano das mudanças e transições, cuja figura é associada a portas (entrada e saída), bem como a transições. A sua face dupla também simboliza o passado e o futuro. É o deus dos inícios, das decisões e escolhas.

(6) Ulrich Beck (1944-2015): sociólogo, filósofo, psicólogo e cientista político pela Universidade de Munique. Escreveu o importante livro Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne (Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986), traduzido para diversas línguas, entre as quais para o italiano sob o título La società del rischio. Verso uma seconda modernità (Roma: Carocci, 2000). Confira a entrevista concedida por Beck, intitulada Incertezas fabricadas, à Edição 181 da Revista IHU On-Line, de 22-05-2006, disponível aqui.

(7) Chantal Mouffe (1943): cientista política pós-marxista belga. Desenvolve trabalhos na área da teoria política. Estudou em Lovaina, Paris e Essex e tem trabalhado em várias universidades na Europa, América do Norte e América Latina. Foi professora convidada em Harvard, Cornell, Princeton e no Centre National de la Recherche Scientifique. De 1989 a 1995, foi diretora de departamento no Collège International de Philosophie, em Paris. Atualmente, é Professora de Teoria Política na Universidade de Westminster, no Reino Unido. É mais conhecida pela sua contribuição, juntamente com seu companheiro, Ernesto Laclau, para o desenvolvimento da análise de discurso, também referida como Essex School of Discourse Analysis. Também com Laclau, é coautora do livro Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics, obra escrita em 1985, editada somente em 2015 no Brasil com o título de Hegemonia e estratégia socialista pela editora Intermeios. A obra se tornou seminal em áreas de estudo como a teoria crítica, teoria da democracia, subjetivação política ou movimentos sociais, apresentando uma articulação entre uma abordagem pós-marxista, que parte da releitura de Antonio Gramsci, e pós-estruturalista, com atenção à análise e desconstrução de identidades, narrativas e jogos de linguagem nas questões do poder político, sendo centrais neste trabalho os conceitos de "hegemonia" e "antagonismo".

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