06 Agosto 2024
"O planeta está se encaminhando para uma navegação tempestuosa. Precisamos de uma bússola para ajudar a nossa razão e as nossas paixões a ver que mundo queremos. A breve ilusão de uma Pax estadunidense duradoura e consensual, após o fim da Guerra Fria e a queda da União Soviética, se dissolveu"
O artigo é do físico italiano Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, em artigo publicado por Corriere della Sera, 02-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Acredito que Per una Costituzione della Terra [Por uma Constituição da Terra, em tradução livre] (Feltrinelli), de Luigi Ferrajoli, é um livro importante.
É um livro que abre uma perspectiva nova e talvez surpreendente no debate político internacional.
Toma em consideração conscientemente as dificuldades que o mundo está enfrentando e, ainda assim, é profundamente otimista. É um livro que abre para a esperança e mostra uma direção, ainda que não fácil, para um futuro possível. Um livro, acredito, que todos nós deveríamos absorver e meditar.
Luigi Ferrajoli, aluno de Norberto Bobbio, é jurista, ex-magistrado e teórico do direito. Ocupou cargos institucionais no Ministério da Justiça e funções acadêmicas. Recebeu diversos prêmios, incluindo cerca de 20 títulos honorários de outras tantas universidades internacionais.
Per una Costituzione della Terra é um livro de grande inteligência. Parte de um olhar claro sobre os problemas globais que a humanidade está enfrentando: crise climática cada vez mais óbvia, crescente beligerância e instabilidade política global, risco cada vez maior de catástrofe nuclear, fome persistente e pobreza extrema que voltou a crescer, diante de uma escandalosa concentração da riqueza nunca vista na história, da existência de regimes que violam os direitos fundamentais, guerras, migrações forçadas, novo confronto ideológico e retorno à demonização mútua entre as superpotências.
Nesse contexto, Ferrajoli propõe transferir o debate internacional do plano político para o plano jurídico. Ele tem uma proposta simples, evidentemente utópica, mas, acredito, capaz de grande força de orientação intelectual e moral. Vamos pensar, propõe Ferrajoli, em estabelecer princípios jurídicos em torno dos quais todos os povos do planeta possam se encontrar: uma "Constituição para a Terra", para uma futura "Federação da Terra", na qual "nós, povos da Terra [...] promovemos um processo constituinte [para um] pacto de convivência pacífica e de solidariedade". O projeto é radical: inclui a transferência da soberania dos estados para a Federação e a proibição de todas as armas, deixando o monopólio da força apenas para as instituições de segurança pública locais e globais.
Dada a óbvia natureza utópica da proposta no atual estado das relações de poder no mundo, a pergunta imediata é qual o sentido de tomar em consideração um projeto tão radical. A resposta é simples: o planeta está se encaminhando para uma navegação tempestuosa. Precisamos de uma bússola para ajudar a nossa razão e as nossas paixões a ver que mundo queremos. A breve ilusão de uma Pax estadunidense duradoura e consensual, após o fim da Guerra Fria e a queda da União Soviética, se dissolveu. O crescimento econômico mundial rebalançou o poder econômico ocidental, colocando em questão o domínio ocidental ininterrupto desde o colonialismo. O mundo atual precisa de um novo quadro de referência ideal para que se possa viver juntos sem, como já estamos fazendo, recomeçar a nos matar uns aos outros.
Ferrajoli identifica isso na retomada e no desenvolvimento dos ideais de convivência pacífica legal que, no período imediatamente posterior à guerra, inspiraram o nascimento das Nações Unidas e das instituições internacionais como o Tribunal Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, a Organização Mundial da Saúde... e outras instituições destinadas a estabelecer uma estrutura jurídica internacional de paz e de garantia de direitos universais. Esse primeiro processo constituinte, fragmentário e fraco, não teve força para conter a arrogância dos poderosos, que o pisotearam repetidamente, mas continua sendo um ideal de referência, ecoando o ideal kantiano de uma paz universal. Hoje, argumenta Ferrajoli, esse é o único objetivo que podemos ver, que possa nos defender das catástrofes para as quais estão nos levando a luta selvagem e sangrenta entre os Estados, o poder descontrolado da economia que domina a política e a flagrante incapacidade da política estatal de responder aos problemas mais sérios da humanidade: a crise ecológica e as duas espirais mortais do crescimento das desigualdades econômicas e do crescimento dos armamentos.
"Por mais quimérica que essa ideia possa parecer", escreve Kant em Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, "é certo que essa saída inevitável da miséria em que os homens se colocam mutuamente, e que devem obrigar os Estados àquela mesma decisão (por mais difícil que seja para eles) que coagiu tão a contragosto o homem selvagem, ou seja: abdicar de sua liberdade brutal e buscar a tranquilidade e segurança numa constituição legal". Guerras, genocídio, pobreza, desigualdade, destruições da natureza, poluição da atmosfera, devastação da vida dos povos por razões econômicas são crimes, argumenta Ferrajoli, e como tal devem ser combatidos: como violações de princípios legais que queremos estabelecer juntos e compartilhar.
Todos os habitantes da Terra têm interesses comuns e problemas comuns. Juntos, devem estabelecer um pacto de convivência civil que não se baseie na brutalidade da força de alguns. A soberania dos Estados é contraproducente. Ela faz com que cada Estado perceba os outros como uma restrição a seus "interesses vitais" e, portanto, como inimigos. Em outras palavras, a soberania nacional leva naturalmente à guerra, como exemplificado pela política dos países que precisam de amplo domínio militar sobre o planeta para defender aqueles que consideram ser seus "interesses vitais". Hoje, somente um constitucionalismo global pode nos tirar da situação de guerra contínua em que a humanidade se encontra. Uma Constituição da Terra e uma federação capaz de aplicá-la podem garantir os direitos de todos, assegurar que os bens públicos, como a natureza, o ar e a água, continuem a ser disponíveis para todos, estabelecer um domínio público global, reduzir com a tributação global progressiva a atual diabólica concentração econômica, que atingiu a situação moralmente insustentável em que hoje oito pessoas detêm um patrimônio igual à metade da humanidade.
Por uma Constituição da Terra (Foto: Divulgação)
Após muitas páginas de discussão técnica sobre os princípios jurídicos que podem orientar esse constitucionalismo planetário, nas últimas páginas do livro Ferrajoli apresenta uma primeira proposta explícita para uma possível Constituição da Terra. Depois de páginas de linguagem jurídica aparentemente árida, quando comecei a ler a verdadeira proposta para a Constituição, fiquei comovido. "Nós, os povos da Terra...". É um sonho...
Será apenas um sonho? Acho que não. Era igualmente utópico, no passado, pensar em abolir os soberanos absolutos na Europa, ou o Ancien Régime, abolir a escravidão, ter um sufrágio universal ou uma legislação que reconhecesse direitos iguais para homens e mulheres. O mundo de hoje é o que os sonhadores políticos de grande inteligência e visão foram capazes de pensar. Acredito que Ferrajoli seja um deles. Os jovens veem os problemas do mundo e estão recomeçando a pensar em um mundo melhor.
É claro que o caminho não será fácil, e Ferrajoli não escreveu um "O que fazer?". Acredito que, para que essa proposta cresça, também será necessário que saia de seu implícito eurocentrismo e se integre com as formulações de um anseio semelhante em um mundo compartilhado, que hoje em dia estão vindo com mais força das culturas que estão contribuindo cada vez mais para nossa civilização global: o pensamento chinês, indiano, africano, sul-americano... É juntos, acredito, que o próximo pacto de convivência civil no planeta terá de ser escrito, integrando o constitucionalismo ocidental descrito por Ferrajoli com o ideal confuciano da harmonia nas relações, o ideal africano ubuntu ("eu sou porque nós somos") que a África do Sul escolheu como guia moral para transformar pacificamente o apartheid em democracia etc. Juntos, devemos encontrar maneiras de conviver, aceitando e encontrando valor na diversidade e na riqueza do pensamento do mundo.
O universalismo é a aspiração de achar pontos de encontro os mais amplos possíveis, respeitando as diversidades. Será apenas um sonho? A verdadeira questão não é se chegaremos lá: acredito que chegaremos. A verdadeira questão é se chegaremos lá antes ou depois da guerra atômica. O momento utópico da criação das Nações Unidas ocorreu após as duas guerras mundiais, durante as quais nos matamos uns aos outros, causando 100 milhões de mortos. Quantas mortes são necessárias para chegarmos a ser razoáveis?
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Desmascarar o mito da soberania. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU