30 Abril 2020
“Os principais países capitalistas acreditam que podem proteger o comércio mundial, com vacinas e alguma nova forma de organização internacional da saúde. Mas não demonstram nenhum interesse em solucionar o grande tema que preocupa a medicina social: a miséria e a pobreza em escala mundial”, escreve Mike Davis, historiador e sociólogo estadunidense, em artigo publicado por Observatorio de la crisis, 28-04-2020. A tradução é do Cepat.
O capitalismo representa uma ameaça mortal para a sobrevivência humana, basicamente de três formas.
Em primeiro lugar, não cria mais postos de trabalho. Tornou ao menos um bilhão de pessoas totalmente excedente para as necessidades da atual produção globalizada. A maioria das pessoas nas cidades da África e América Latina trabalham no setor informal, e este é o único setor que está criando postos de trabalho.
O segundo aspecto é a mudança climática. O capitalismo nos levou a uma era geológica completamente nova, uma era onde a mudança climática tem enormes consequências na propagação de catástrofes e doenças. Por exemplo, o aquecimento global fez que os insetos transmissores da malária, a dengue e outras pestes estejam se deslocando para o norte. Segundo os especialistas, o ressurgimento da malária em determinados lugares da Europa já é quase inevitável.
E em terceiro lugar, o capitalismo ameaça nossa sobrevivência porque desencadeia e produz tipos de pandemias como a que estamos agora. Não se trata de uma simples pandemia. Na realidade, estamos vendo uma época de pandemias e doenças emergentes. A globalização capitalista produziu estas novas pragas.
O capitalismo destruiu as fronteiras naturais e sociais entre as populações de humanos e os animais selvagens, que antes viviam muito distantes.
Os coronavírus se encontram principalmente nos morcegos. Os morcegos são tão solitários que é necessária uma grande quantidade destes mamíferos alados para que entrem em contato com os humanos ou com animais infectados por eles. A força propulsora deste fenômeno foi a destruição das florestas tropicais por empresas multinacionais de exploração florestal.
Em seguida, vem a agricultura industrial e a industrialização da criação de aves e gado. Existem fábricas que processam um milhão de frangos por ano. São como aceleradores de partículas de doenças virais. Estas fábricas se transformam em uma eficiente máquina que cria novos híbridos de vírus e os distribui massivamente.
A partir dos próprios parâmetros imunológicos, o fator mais importante é que há duas humanidades. Uma humanidade bem alimentada, geralmente com boa saúde e com acesso à medicina. E uma segunda humanidade, que não tem saúde pública ou que dependem de sistemas médicos que foram em grande parte destruídos, nos anos 1980 e 1990.
Os sistemas públicos foram destruídos pela dívida, o ajuste estrutural e as exigências do Fundo Monetário Internacional. Cortou-se o público ou privatizaram os serviços criados pela economia social.
Em toda a África subsaariana (e também em outros países), a ausência de saúde pública é a origem das doenças infecciosas. As pessoas não têm acesso à água limpa e nem sequer podem lavar as mãos com sabão.
Neste momento, estamos à beira do que poderia ser a verdadeiro massacre humano, caso esta pandemia exploda nos bairros pobres do Sul Global.
No passado, o capitalismo global destinava um mínimo de investimento à detecção de doenças e aos alertas antecipados. As potências coloniais desenvolveram mecanismos para salvaguardar o comércio e a saúde dos colonizadores.
De uma série de conferências sanitárias internacionais surgiram – na época do imperialismo da era vitoriana – instituições cujo objetivo explícito era controlar as doenças infecciosas.
De maneira similar, a Organização Mundial da Saúde (OMS), fundada em 1948 pela Fundação Rockefeller, desempenhou um papel essencial nos decênios de 1940 e 1950. Sua preocupação original era salvaguardar a saúde dos trabalhadores das plantações da United Fruit Company e das minas de nitrato chilenas. Queria eliminar a doença mediante a vacinação. Este método de prevenção demonstrou ser exitoso com a eliminação da varíola, mas falhou em praticamente todas as outras doenças importantes.
Há uma explicação alternativa da medicina social para entender a propagação das pragas: os determinantes socioeconômicos das epidemias são a pobreza, a aglomeração, a falta de saneamento e de medicamentos.
Agora, toda a infraestrutura internacional de detecção de doenças e a resposta internacional coordenada caiu por terra. A OMS praticamente desmoronou. Hoje, tem um papel absolutamente marginal. Nunca foi financiada adequadamente. Grandes países como os Estados Unidos jamais cumpriram com as contribuições que disseram que fariam.
A OMS precisou recorrer aos filantropos e grupos de pressão dos países mais poderosos. Em conjunto, estes setores proporcionam cerca de 80% de seu orçamento. A instituição se viu obrigada a suplicar aos Estados Unidos, China e a certos filantropos que não sabem o que fazer com o seu dinheiro. Isto se tornou evidente nos últimos três ou quatro meses.
O Centro Americano para o Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês), que desempenhava um papel internacional na detecção de novas doenças, também foi derrubado. O CDC estadunidense decidiu não utilizar os kits de teste produzidos por uma companhia farmacêutica alemã e que todos os outros países estão utilizando. Desenvolveu seu próprio kit de teste, que resultou defeituoso e deu resultados falsos.
O CDC é financiado em parte por um cristão fundamentalista e seu orçamento foi selvagemente cortado por Donald Trump, em um de seus primeiros atos como presidente. A administração Trump, desde o seu início, começou a desmantelar as entidades públicas de saúde e a reverter as políticas que tinham sido criadas especificamente para enfrentar as pandemias.
Trump disse que os Estados Unidos são o país mais avançado técnica e cientificamente do mundo, no mesmo dia em que o New York Times publicou instruções sobre como fazer uma máscara cirúrgica própria.
O Centro Europeu para o Controle de Doenças não esteve em parte alguma e toda a União Europeia está em profunda crise.
Enquanto a Itália esperava que suas nações irmãs europeias a ajudassem, Alemanha, Áustria e França proibiram a exportação de suprimentos e materiais cruciais ao país de Dante.
Por outro lado, hoje, a China tem uma enorme influência econômica, mas no momento que se declarou a epidemia não tinha suficiente poder brando, nem suficiente influência política.
No entanto, Trump abdicou totalmente da liderança moral ou de uma resposta humanitária. Sendo assim, os italianos se dirigiram a Pequim, que demonstrou estar na vanguarda da prestação de uma ajuda crucial para enfrentar a pandemia.
Na realidade, a China tem uma imensa capacidade para proporcionar suprimentos médicos essenciais. Está em todas as partes em que a Europa e os Estados Unidos desapareceram.
No século XVII, as pragas, particularmente na Itália, aceleraram a transição de uma economia centrada no Mediterrâneo para uma economia centrada no Atlântico Norte. Sendo assim, temos que nos perguntar se a COVID-19 acelerará a mudança da hegemonia estadunidense a um papel hegemônico chinês.
A resposta ao surto foi totalmente nacionalista, até o ponto de ter surpreendido a maioria dos líderes mundiais e os próprios nacionalistas. A cooperação internacional desmoronou.
Qualquer recuperação da produção globalizada dependerá de enormes esforços para criar uma infraestrutura internacional contra a doença. Mas, para derrotar o patógeno não se poderá ignorar as condições sociais que tornam as pessoas vulneráveis e que, de certo modo, são as causas últimas da doença.
A história recente nos demonstra que as grandes empresas farmacêuticas não desenvolveram a tempo uma vacina e os antivirais que sabiam que eram necessários. Como não era negócio, o setor privado não investiu na pesquisa e em novas tecnologias. Desta maneira, o potencial para o desenvolvimento científico foi bloqueado.
A indústria farmacêutica já não produz os medicamentos fundamentais para a vida, cuja produção no passado foi uma das justificativas que utilizou para receber uma posição de monopólio.
Agora, não fabricam antivirais, e em grande parte não fazem vacinas. E também não produzem uma nova geração de antibióticos para enfrentar a uma anunciada crise mundial pela próxima ineficiência destes medicamentos.
A Big Pharma está basicamente ganhando dinheiro com as patentes e gastando mais em publicidade que em pesquisa e desenvolvimento.
Os grandes laboratórios não só se tornaram um obstáculo para a revolução médica e científica, como também se dedicam à especulação com os preços e um enorme lobby político contra os medicamentos genéricos.
Pode o capitalismo mundial superar sua atual fragmentação nacionalista e criar uma infraestrutura que dê conta da continuidade dos lucros e da produção globalizada?
Pois bem, estamos a ponto de uma depressão mundial. Uma depressão cujas raízes não estão na COVID-19, ainda que este bicho microscópico irá desatá-la.
Os principais países capitalistas acreditam que podem proteger o comércio mundial, com vacinas e alguma nova forma de organização internacional da saúde. Mas não demonstram nenhum interesse em solucionar o grande tema que preocupa a medicina social: a miséria e a pobreza em escala mundial.
Estarão as vacinas disponíveis para as populações da África e o sul da Ásia? É muito difícil que o capitalismo, com o seu DNA que é apenas lucro, faça chegar com rapidez a vacina (se conseguir desenvolvê-la) aos pobres e condenados da terra.
De fato, o que o capitalismo global fará é aprofundar ainda mais o abismo entre as duas humanidades. É claro, isso também é certo dentro de muitos países capitalistas do “primeiro mundo”, onde a doença ataca de preferência as vítimas do racismo e pobreza.
Neste momento, ao menos nos Estados Unidos, existe uma oportunidade extraordinária para avançar em um programa progressista, que parte da atenção à saúde como um direito humano e uma cobertura universal.
Também chegou o momento de lutar por demandas essencialmente socialistas, como a nacionalização das grandes farmacêuticas e de outros serviços básicos para a sobrevivência.
A Amazon, que se converteu no maior monopólio da história mundial, agora, ao menos deve ser taxada com impostos ou transformada diretamente em um serviço público, como Correios.
A distribuição deve se tornar uma utilidade pública. Dito de outra maneira, em uma organização socialista controlada democraticamente e de propriedade de toda a sociedade. Esta crise nos oferece uma grande oportunidade para ir além do reformismo de esquerda e apresentar ideias e demandas socialistas.
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O capitalismo em uma era de pragas e catástrofes. Artigo de Mike Davis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU