06 Abril 2020
Silvia Ribeiro, pesquisadora nascida no Uruguai que vive no México há mais de três décadas, é a diretora para a América Latina do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), com status consultivo no Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas. A soberania alimentar e o impacto dos desenvolvimentos biotecnológicos em saúde e meio ambiente são alguns dos temas sobre os quais pesquisa e que a levaram a questionar, desde o início da pandemia, a ausência, não apenas da descrição das causas, como também das propostas para modificá-las. Nesta entrevista, refere-se a este ponto nodal, ao sistema capitalista de produção e ao que podemos avistar, a partir do isolamento obrigatório, como futuro.
A entrevista é e Claudia Korol, publicada por Página/12, 03-04-2020. A tradução é do Cepat.
Ainda que estejamos há meses falando deste vírus, vale a pena perguntar novamente: O que é o Covid-19?
É uma cepa – a que dá origem à declaração de pandemia atual – da família dos coronavírus, que provoca doenças respiratórias geralmente leves, mas que podem ser graves para uma porcentagem dos afetados, devido a sua vulnerabilidade. Faz parte de uma família ampla de vírus, que como todos muda muito rapidamente. É o mesmo tipo de vírus que deu origem à síndrome respiratória aguda severa (SARS) na Ásia, e à síndrome respiratória aguda do Oriente Médio (MERS).
De onde provém?
Embora exista um consenso amplo, científico, que é de origem animal, sua origem é atribuída aos morcegos, não está claro de onde provém, porque a mutação dos vírus é muito rápida, e há muitos lugares onde poderia ter sido originado. Com a intercomunicação que existe hoje em dia, em nível global, pode ter sido levado de um lugar para outro muito rapidamente. O que, sim, se sabe é que começa a ser uma infecção significativa em uma cidade na China. No entanto, esta não é a origem, mas o lugar onde se manifesta primeiro.
Rob Wallace, um biólogo que estudou um século de pandemias, durante 25 anos, e que é também filogeógrafo, razão pela qual acompanhou a trajetória das pandemias e dos vírus, disse que todos os vírus infecciosos das últimas décadas estão muito relacionados com a criação industrial de animais. Nós - do grupo ETC e GRAIN - já tínhamos visto com o surgimento da gripe aviária, na Ásia, e da gripe suína (que depois colocaram o nome de H1N1 para que fique mais asséptico), também do SARS, que está relacionado à gripe aviária, que são vírus que surgem em uma situação onde há uma espécie de fábrica de replicação e mutação de vírus que é a criação industrial de animais. Porque são muitos animais que ficam juntos, confinados.
Isto se repete tanto nos frangos, como com nos porcos, que não conseguem se movimentar e, portanto, tendem a criar muitas doenças. Há cepas diferentes de vírus, de bactérias, que se transferem entre muitos indivíduos em um espaço reduzido. Os animais são submetidos a aplicações regulares de pesticidas, para eliminar outra série de coisas que há dentro do próprio criadouro. Também há venenos nos alimentos, em geral, recebem milho transgênico.
Tudo está muito relacionado com o comércio de transgênicos para ração. Recebem uma quantidade de antibióticos e antivirais para prevenir as doenças, o que vai criando resistências cada vez mais fortes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) pediu que as indústrias de criação de animais, sobretudo de frangos, porcos, mas também a piscícola e a de perus, deixem de aplicar tantos antibióticos, porque entre 70 e 80% dos antibióticos no mundo são utilizados na criação industrial de animais. Como são animais que têm um sistema imunológico deprimido, estão expostos a todo o tempo a doenças, e além disso também recebem antivirais. Recebem antibióticos não tanto para prevenir doenças, mas para que engordem mais rápido.
Estes centros industriais de criação, do feedlot à criação de porcos, frangos e perus, muito cheios, criam uma situação patológica de reprodução de vírus e bactérias resistentes. Mas, além disso, estão em contato com seres humanos que os levam para as cidades.
Mas provém ou não dos morcegos?
Existem pessoas que se perguntam: “se foi dito que foi encontrado em um mercado e que provém de morcegos, como chega aos animais que estão em criadouros? O que acontece é que os morcegos, as civetas, e outros que se supõe que deram origem a vários vírus - inclusive uma das teorias é que o vírus do HIV provém de uma mutação de um vírus que estava presente nos símios -, os espalham devido à destruição dos habitats naturais dessas espécies, que se deslocam para outros lugares.
Os animais silvestres podem ter um reservatório de vírus, que dentro de sua própria espécie estão controlados, existem, mas não adoecem os animais, mas rapidamente se transferem a um meio onde se tornam uma máquina de produzir vírus, porque se encontram com muitas outras cepas e vírus. Chegam a esses lugares deslocados de seus habitats naturais. Isso tem a ver sobretudo com o desmatamento, que paradoxalmente se dá também pela expansão da fronteira agrícola. A FAO reconhece que 70% do desmatamento tem a ver com a expansão da fronteira agropecuária. Inclusive, a FAO disse que em países como o Brasil, onde acabamos de ver tudo o que aconteceu com os incêndios, pelo desmatamento para a pecuária, a causa do desmatamento é a expansão da indústria agropecuária em mais de 80%.
São vários fatores que se conjugam. Os animais que saem de seus habitats naturais, sejam morcegos ou outros tipos de animais, inclusive podem ser muitos tipos de mosquitos que se criam e se tornam resistentes pelo uso de agrotóxicos. Todo o sistema da agricultura industrial tóxica e química também cria outros vírus que produzem doenças. Há uma quantidade de vetores de doenças que chegam a sistemas de confinamento nas cidades, sobretudo nas áreas marginais, de pessoas que foram deslocadas e não têm condições de moradia e de higiene adequadas. Cria-se um círculo vicioso da circulação entre os vírus.
Qual a sua opinião sobre o modo como se está enfrentando a pandemia no mundo?
Nada do que está acontecendo neste momento está prevenindo a próxima pandemia. O que se discute é como enfrentar esta pandemia em particular, até que quem sabe em algum momento o próprio vírus encontre um limite, porque há uma resistência adquirida em uma quantidade importante da população. Então, este vírus em particular pode desaparecer, como desapareceu o SARS e o MERS. Já não irá afetar, mas vão aparecer outros, ou o próprio Covid-19 irá se transformar no Covid-20 ou no Covid-21, por outra mutação, porque todas as condições se mantêm iguais. É um mecanismo perverso. Seria necessário colocar em discussão o sistema alimentar agroindustrial, da forma de cultivo até a forma de processamento. Todo este círculo vicioso que não se está considerando, faz com que se esteja preparando outra pandemia.
É possível encontrar os responsáveis por esta pandemia?
É o típico mecanismo do sistema capitalista, que cria enormes problemas que vão da mudança climática à poluição das águas, dos mares, com a enorme crise da saúde que existe nos países pela má alimentação, mas também pelos produtos tóxicos aos quais se está exposto, que produzem uma crise de saúde nos humanos. É claro, o sistema capitalista não fará uma revisão, porque para isso teria que atingir os interesses das empresas transnacionais que são as que acumulam, as que concentram muito com a criação industrial de animais, como também com as monoculturas, inclusive, com as empresas florestais e o desmatamento feito de forma comercial.
Em cada uma das escalas da cadeia do sistema agroalimentar industrial, iremos encontrar algumas empresas. Estamos falando de três, quatro, cinco, que dominam a maior parte desse campo, como acontece com os transgênicos que são Bayer, Monsanto, Syngenta, Basf e Corteva. O mesmo acontece com as que produzem ração para os animais. Por exemplo, Cargill, Bunge, ADM. Todas têm interesses na criação industrial de animais, porque são sua principal clientela. Muitas vezes são coproprietárias destas fábricas de vírus.
Além de questionar as causas,... seria necessário mudá-las. E mudá-las questiona as próprias bases do sistema capitalista. É necessário questionar os sistemas de produção, sobretudo o sistema agroalimentar de modo imediato. Mas também está relacionado com muitas coisas. Por exemplo, quem é mais atingido neste momento pela pandemia? As pessoas mais vulneráveis: aqueles que não tem casa, aqueles que não têm água. São os mesmos deslocados por esse sistema, e porque não podem ter acesso aos sistemas de saúde.
Como é a resposta dos sistemas de saúde?
Nestas décadas de neoliberalismo, não se atendeu à necessidade de sistemas de atenção primária à saúde, que é o fundamental. Mas também, agora, não há sistemas de saúde suficientes para atender todas as pessoas que estão adoecendo em muitos países. Os países onde houve menos mortos em sua população, são países que tinham sistemas de saúde relativamente capazes de atender à sua população. Aqueles que os desmantelaram, ficaram pior diante da pandemia.
O sistema é injusto não somente na produção. É injusto no consumo, porque nem todos podem consumir o mesmo. É injusto nos impactos que provoca nas pessoas mais afetadas, que são as mais vulneráveis. Em alguns será pela idade, mas em muitos outros será por doenças causadas pelo próprio sistema agroalimentar industrial, como por exemplo a diabetes, a obesidade, a hipertensão, as doenças cardiovasculares, todos os tipos de câncer do sistema digestivo. Tudo isso está relacionado com o mesmo sistema que produz os vírus.
Em meio a isso, surgem os sistemas de “salvamento” dos governos, e em todos os países do mundo, por mais que digam que primeiro irão atender aos pobres, ainda que possa haver essa intenção - em alguns nem sequer existe, como nos Estados Unidos -, na realidade, o que buscam salvar são as empresas, porque dizem que são os motores da economia. Então, volta-se a repetir o mesmo esquema. Volta-se a salvar as empresas que criaram o problema.
E qual é o lugar das indústrias farmacêuticas frente à pandemia?
Nem mesmo frente à pandemia se fala das causas, mas são buscados novos negócios, por exemplo, com a vacina. Todo o negócio das vacinas que está ocorrendo neste momento, para ver quem chega primeiro, quem a patenteia. As farmacêuticas estão buscando o comércio.
Também é um negócio para todas as empresas de informática, com as comunicações virtuais. Antes da pandemia, as famosas empresas GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft) já eram as empresas mais valorizadas em nível de valor de mercado com suas ações. E são as empresas que estão tendo lucros enormes, porque houve uma substituição da comunicação direta, mais ainda, pela comunicação virtual. Os projetos de salvamento da economia irão apoiar tais tipos de empresas, as farmacêuticas que vão monopolizar as vacinas, as empresas da agricultura industrial que produzem esses vírus. É como uma repetição permanente deste tipo de sistema capitalista injusto, classista, que afeta muito mais aqueles que já por si estavam mal.
É preciso dizer também que 72% das causas de morte no mundo são por doenças não transmissíveis: diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, hipertensão. São doenças respiratórias, mas não por contágio infeccioso, mas pela poluição nas cidades, com o transporte. Tudo o que está sendo feito agora, em relação ao coronavírus, é porque dá a ilusão no sistema capitalista que se pode atacar. Que se há uma pandemia é um problema tecnológico, e a resposta é criar situações reguladas em cada país, que é uma resolução de tipo tecnológica.
Mas há outra possibilidade de enfrentar esta crise que não seja a do isolamento social?
Quero esclarecer que eu concordo que sejam tomadas as medidas de distanciamento físico, não social, mas isso deveria ser acompanhado com medidas que possam apoiar aqueles que não têm condições para isso por sua vulnerabilidade. O fato de selecionar uma doença em particular, como neste caso é uma doença infecciosa, para desatar toda a bateria do que seria um ataque global à situação de pandemia, por um lado, não questiona as causas, mas por outro lado instala uma série de medidas repressivas, inclusive muito autoritárias, de cima, para dizer às pessoas: “Faça isto, faça aquilo, porque nós sabemos o que você tem que fazer e o que não”. Tudo isso está relacionado com a não percepção do fundo do problema, as causas, e, ao mesmo tempo, em dizer que os únicos que podem administrar a situação em vivemos hoje, globalmente, são de cima, os governos, empresas, que são os que nos dariam a solução e, portanto, deveríamos aceitar todas as condições que nos impõem. Diante disso, acredito que é fundamental resgatar e fortalecer as respostas coletivas e a partir de baixo.
Por exemplo?
Por um lado, precisamos entender que há um sistema alimentar que é o que chega a 70% da população mundial. Há trabalhos muito sérios de pesquisa do ETC e GRAIN que mostram que 70% da população mundial é mantida pela produção em pequena escala de camponeses, pequenos agricultores, também de hortas urbanas e outras formas de intercâmbio e colheita de alimentos que são pequenas, descentralizadas, locais. Isto é o que fornece alimentos para a maior parte da humanidade. E não apenas é alimento mais saudável, como também é o que chega para a maior parte das pessoas.
Seria necessário fortalecer e apoiar essas alternativas. É como um paradigma para pensar soluções de baixo, descentralizadas, coletivas, de solidariedade, para ver como nos cuidar, diante de uma ameaça que pode nos infectar, mas também o cuidado entre nós, e continuar trabalhando na criação de culturas completamente questionadoras e contrárias ao sistema capitalista, porque é o que está adoecendo toda a humanidade, a natureza, os ecossistemas e o planeta.
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“Não joguem a culpa no morcego”. Entrevista com Silvia Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU