01 Abril 2020
"O estilo dessa intensa “Urbi et Orbi” também foi – indiretamente, mas de um modo nem tão sutil – uma acusação de outros estilos de liderança, incluindo a Igreja e no Vaticano. Não havia apenas um domínio da estética deste momento espiritual, mas também uma leitura teológica significativamente diferente da pandemia", escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em La Croix International, 31-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "no estilo de Francisco, havia toda a mensagem, e é o estilo do Concílio Vaticano II (1962-1965): a “nobre simplicidade” que é enfatizada na constituição do Vaticano II sobre a liturgia".
"O abraço de Francisco ao mundo universal - afirma o teólogo - seria impensável sem a teologia do Concílio da Igreja no mundo moderno, em que a solidão institucional do papa dentro da Igreja e o caráter distintivo da eclesiologia católica são entendidas como uma solidariedade fundamental com a única família humana".
E Faggioli continua: "O contraste entre Francisco e o status quo eclesiástico não é apenas um paradoxo. É também uma contradição real e problemática. Isso contradiz veementemente a contínua revanche do tradicionalismo litúrgico induzida pela pandemia, com fenômenos de solipsismo clerical às vezes acompanhados pelo ressurgimento de rituais semimágicos para consumo da mídia local".
A pandemia do coronavírus está levando todos nós a relativizar e a priorizar. Isso também é verdade para a Igreja Católica, ou pelo menos deveria ser.
A cessação forçada das atividades públicas da Igreja – em alguns países, ela vai durar muito além da Páscoa – traz à tona a importância do conceito teológico de “cristianismo como estilo”.
Christoph Theobald, jesuíta franco-alemão, vem desenvolvendo essa ideia nos últimos anos. Ele publicou seus últimos pensamentos sobre isso em um longo artigo publicado na revista católica italiana Il Regno, muito antes da emergência do coronavírus.
O cristianismo como estilo durante a atual pandemia significa redescobrir uma fé elementar e básica que não depende de construtos externos. Essa é uma chave para entender a importância do pontificado do Papa Francisco neste trágico momento para o mundo e a Igreja.
A ênfase do papa jesuíta no discernimento como um motor da mobilidade interior é ainda mais rica agora quando a mobilidade externa não é possível. Theobald menciona a exortação dele à santidade, Gaudete et exsultate, que evoca a imagem dos “santos ao pé da porta”. “Esta é muitas vezes a santidade ‘ao pé da porta’, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus”, escreveu Francisco naquele texto de 2018.
Essa pode ser uma verdadeira catequese para milhões de pessoas que agora estão fechadas em casa por várias semanas, forçadas a conviver com seus vizinhos como nunca antes. O cristianismo é um evento de encontro com o divino, mas também com os outros.
Este tempo de distanciamento social forçado provavelmente nos ajudará a redescobrir o valor teológico de encontrar Cristo por meio dos nossos encontros com outras pessoas. É uma reversão do famoso ditado do existencialista francês Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”.
A escatologia, ou a “doutrina das últimas coisas”, sempre foi muito poderosa ao dar a dimensão certa a ideias e instituições superdimensionadas.
E esse tipo de emergência exerce uma enorme pressão sobre todos nós para refletir sobre as últimas coisas. Também revela o material de que são feitos certos homens da Igreja e instituições eclesiásticas.
“O estilo é o homem” – o proverbial ditado de que o estilo escolhido por alguém reflete as suas características essenciais – também pode ser aplicado à liderança da Igreja. A emergência do coronavírus está nos mostrando que existem duas maneiras de expressar o estilo da Igreja.
Por um lado, há a abordagem das Pontifícias Academias das Ciências e das Ciências Sociais. Em uma declaração do dia 20 de março, elas ofereceram “lições para ações futuras e mudança de prioridades” após a disseminação do vírus.
“Observamos com grande satisfação os imensos serviços atualmente prestados pelos profissionais da saúde e pelos profissionais médicos, incluindo virologistas e outros”, afirmam as academias nas frases de abertura do seu comunicado.
De maneira semelhante, o jornal diário da Santa Sé, L’Osservatore Romano, ofereceu uma abordagem semelhante defendida por Francisco, publicando dois artigos em sua edição do dia 29 de março sobre a liturgia e a “Igreja doméstica”.
Um dos artigos sugeriu as possibilidades desse momento. “O memorial doméstico contém uma dimensão secular peculiar. Ele não tem cheiro de sacristia. Pelo contrário, toca os fundamentos da nossa humanidade”, afirmou.
Mas também houve outro estilo em exibição, principalmente por causa da emergência litúrgica que todos estamos experimentando.
Por mais desconfortável que eu esteja com a ideia das missas da Páscoa celebradas sem o povo, não tenho certeza de que seria uma boa ideia adiar a Páscoa. Mas tenho certeza de que a Cúria Romana deveria encontrar uma maneira melhor para transmitir isso aos fiéis católicos.
Foi inconveniente que a Congregação para a Doutrina da Fé tenha decidido publicar decretos sobre a forma extraordinária do Rito Romano no dia 25 de março, no meio da pandemia. Mas, ao mesmo tempo, ela indicava a contradição entre Francisco e a agenda litúrgica do establishment vaticano preexistente.
Depois, houve o estilo da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, estritamente em termos de proibições e limites.
Isso me lembrou quando a Administração Estatal para Assuntos Religiosos da China decretou em 2007 que todas as reencarnações de tulkus do budismo tibetano deveriam obter a aprovação do governo; caso contrário, elas seriam “ilegais ou inválidas”. Uma piada involuntária, mas verdadeiramente kafkiana.
Isso é importante para entender a incrivelmente comovente oração do Papa Francisco no dia 27 de março, em uma Praça de São Pedro vazia. Lá estava o papa, sozinho; mas também na companhia da fé e do seu povo.
O estilo dessa intensa “Urbi et Orbi” também foi – indiretamente, mas de um modo nem tão sutil – uma acusação de outros estilos de liderança, incluindo a Igreja e no Vaticano. Não havia apenas um domínio da estética deste momento espiritual, mas também uma leitura teológica significativamente diferente da pandemia.
O papa evitou qualquer interpretação moralista da doença, uma tentação recorrente na nossa civilização, como Susan Sontag escreveu em seu livro de 1978, “A doença como metáfora”. No estilo de Francisco, havia toda a mensagem, e é o estilo do Concílio Vaticano II (1962-1965): a “nobre simplicidade” que é enfatizada na constituição do Vaticano II sobre a liturgia.
O historiador jesuíta John O’Malley escreveu em seu livro de 2008, “What Happened at Vatican II”, que o “estilo de discurso do Concílio era o meio que transmitia a mensagem” e que “o estilo, portanto, expressa valores”.
E, como apontou Theobald, os pontos cegos da teologia do Vaticano II (celebrada há quase 70 anos) podem ser preenchidos com as intuições provenientes do estilo do Vaticano II.
O abraço de Francisco ao mundo universal seria impensável sem a teologia do Concílio da Igreja no mundo moderno, em que a solidão institucional do papa dentro da Igreja e o caráter distintivo da eclesiologia católica são entendidas como uma solidariedade fundamental com a única família humana.
O catolicismo é cheio de paradoxos. O papa sozinho na Praça de São Pedro, rezando em frente a uma basílica que foi construída parcialmente com o dinheiro sujo das indulgências; e, no entanto, ei-lo oferecendo uma indulgência ao povo por meio da sua bênção Urbi et Orbi.
Como eu escrevi para os meus estudantes, é a mesma Igreja da crise dos abusos sexuais que estamos estudando em nosso curso. Francisco está evidentemente ciente das contradições e dos paradoxos, como vimos nos últimos sete anos.
Isso fica particularmente evidente no seu modo de não deixar a Cúria Romana definir seu ministério. E veremos que tipo de impacto a pandemia e a recessão terão em seus planos de reforma da Cúria.
O contraste entre Francisco e o status quo eclesiástico não é apenas um paradoxo. É também uma contradição real e problemática.
Por um lado, isso contradiz veementemente a contínua revanche do tradicionalismo litúrgico induzida pela pandemia, com fenômenos de solipsismo clerical às vezes acompanhados pelo ressurgimento de rituais semimágicos para consumo da mídia local.
É verdade que isso é mais fácil para o papa do que para os bispos e padres que precisam manter suas igrejas locais sobrevivendo, tanto espiritual quanto financeiramente. Francisco tem à sua disposição o formidável aparato e o cenário do Vaticano para transmitir a mensagem de comunhão na Igreja e com o mundo.
Mas seu estilo também é uma mensagem para a Igreja institucional no sentido de superar a tentação de usar este momento como uma oportunidade para retroceder a uma teologia e a uma liturgia moldadas pelo triunfalismo e pelo exclusivismo, em vez da solidariedade.
Compreender a importância do estilo como Igreja também significa, neste momento particular, a capacidade de nos sustentarmos espiritualmente sem os suportes institucionais usuais.
No mínimo, não devemos nos sobrecarregar com mortificações adicionais.
Isso pode ser um desastre ou uma oportunidade para a Igreja repensar sua atividade pastoral e missionária. O Evangelho é uma presença eclesial – no sentido de ser relacional –, e este momento pode ajudar a reconstruir a credibilidade da Igreja.
Quando a atividade pública e litúrgica da Igreja é reduzida ao mínimo (ou a nada), devemos discernir e detectar cuidadosamente os discretos sinais do Espírito em nossas vidas diárias em confinamento.
É mais uma questão de coisas a fazer do que a não fazer.
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Uma bênção “Urbi et Orbi” incomum: a liturgia em tempos de pandemia. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU