"Vamos agora colocar a verdadeira questão, que não é de caráter litúrgico, ou jurídico, mas sistemático. No plano da teologia sistemática, toda essa operação é uma mistificação sem possibilidade de saída. Dizer que dois ritos estão em vigor ao mesmo tempo, dos quais o segundo nasceu para corrigir, emendar e renovar o primeiro, é um sofisma que desde o início alterou as competências litúrgicas na Igreja católica", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come se non, 26-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Precisamente em uma época de crise sanitária tão grave, onde a vida de muitos homens e mulheres em Roma, na Itália, na Europa e no mundo é radicalmente posta em discussão, nunca esperaria ver notáveis Congregações da Igreja romana escorregarem de maneira tão desajeitada nas armadilhas que o passado sempre joga entre os pés do presente. Como é fácil, quando se está dentro de uma instituição tão antiga, pensar que a tradição seja um museu a ser conservado em vez de um jardim a ser cultivado. E inclusive quando no jardim há homens e mulheres que sofrem, que buscam orientação, que anseiam por uma palavra de vida e esperança, não é tão difícil se preocupar com as boas condições do museu, polir as maçanetas e os espelhos, agradar os amigos, simplesmente repetir a lengalenga do passado, de cor e com um certo soberano desapego.
Assim, depois de ver a Congregação de Culto resolver com o Decreto Covid-19 as questões relativas à Páscoa com o viés de um regulamento condominial reservado a clérigos, e depois de ver a Penitenciária Apostólica escrever dois documentos para tratar penitência e indulgências apenas como questões relevante nos termos do Código de Direito Canônico, ontem fomos surpreendidos pelo urgentíssimo e aguardadíssimo duplo Decreto que integra novos prefácios e novas festas de Santos no Missal Romano de 1962. Quem lê pode pensar que estou de brincadeira. Não. Primeiro a Comissão Ecclesia Dei, temporibus illis, e então, no último ano, uma Seção da Congregação para a Doutrina da Fé gastaram tempo, energia e dinheiro, convocando "especialistas", realizando reuniões, sondando terrenos, lubrificando engrenagens, para poder chegar a – ouçam bem! - modificar aquele Missal que o Papa João XXIII havia aprovado em 1962, como "instrumento provisório" no aguardo do Concílio e da Reforma Litúrgica. Aquele missal que, portanto, devido ao fato de, desde 1969, tivemos um novo "Ordo Missae", obviamente tinha permanecido no estágio da época, sem nenhuma atualização ou modificação.
Como tudo isso foi possível? Como foi possível que uma Congregação, que não é competente em matéria litúrgica, pudesse aprovar a modificação de um "ordo" que saiu de vigência desde 1969 e que um Motu Proprio de 2007 pretende "ter recolocado em vigor"? Vamos tentar reconstruir brevemente as etapas dessa história, que hoje alcançou o seu ápice de cômica tragicidade.
a) o Papa João XXIII, em 1960, avaliando o que fazer, hesitara: deveria continuar as reformas que Pio XII já havia preparado, ou deveria esperar o desdobramento do Concílio, que já havia convocado? Ele decidiu prosseguir com a revisão do Missal Tridentino, de forma provisória. O Concílio estabeleceria a "altiora principia" com base nos quais a reforma seria realizada. E assim nasceu o texto provisório de 1962.
b) O Concílio, explicitamente, nos números 47-58 do Sacrosanctum Concilium, estabelece as linhas fundamentais da reforma do Ordo Missae, que será implementado e aprovado em 1969. E solicita, para isso, modificar profundamente, integrar amplamente, implementar e enriquecer estruturalmente o rito de 1962.
c) Paulo VI, na entrada em vigor do Novus Ordo, reitera o que seu antecessor e o Concílio haviam dito. O novo texto substitui o anterior, devido às limitações rituais, teológicas, pastorais e espirituais do texto anterior.
d) Em 2007, com o Motu Proprio "Summorum Pontificum", Bento XVI tenta favorecer a "reconciliação" na Igreja e concede um uso mais amplo do "missal de 1962", construindo uma hipótese sistematicamente muito questionável e argumentada com o sofisma da "covigência" de um rito ordinário e de um rito extraordinário. Como disse Camillo Ruini, quando saiu o SP: "esperamos que um gesto de reconciliação não se torne um princípio de divisão".
e) Nestes 13 anos, a presença do "rito extraordinário", com sua ambígua oficialidade, deu força a todas as formas de igreja "anticonciliar". Não estava nas intenções de Bento XVI, mas aconteceu nos efeitos. Esse rito "antigo" coagulou em torno de si personagens de reação eclesial e civil, cultores do passado de várias tendências, aristocratas falidos, esnobes arrogantes e até alguns sujeitos pouco equilibrados. Enquanto isso, a Comissão Ecclesia Dei conduzia tratativas de acordo com os lefebvrianos, nas quais nunca ficava claro de que lado da mesa estavam os verdadeiros inimigos do Concílio Vaticano II. Amigos, sempre havia bem poucos.
f) Por fim, a Comissão, tendo combinado confusões em demasia, foi encerrada. Mas, como pode ser visto nos documentos apresentados ontem, ela simplesmente se mudou para a Congregação para a Doutrina da Fé. Cujos responsáveis não foram capazes de conter sua tendência ao desvio e ao paroxismo. Aliás, assumiram e assinaram os resultados mais implausíveis.
Vamos agora colocar a verdadeira questão, que não é de caráter litúrgico, ou jurídico, mas sistemático. No plano da teologia sistemática, toda essa operação é uma mistificação sem possibilidade de saída. Dizer que dois ritos estão em vigor ao mesmo tempo, dos quais o segundo nasceu para corrigir, emendar e renovar o primeiro, é um sofisma que desde o início alterou as competências litúrgicas na Igreja católica. Mas é um sofisma sistemático que não consegue convencer e que, acima de tudo, não funciona. Tanto que, desde 2007, não apenas os Bispos das dioceses não podem supervisionar a liturgia em sua diocese, mas agora está claro que mesmo a Congregação para o Culto não pode exercer discernimento em matéria litúrgica, porque uma "liturgia extraordinária" é controlada e modificada pela Congregação para a Doutrina da Fé. Sem ao menos informar o Dicastério competente para a matéria.
A teologia sistemática também aponta que um rito de 1962, que desde 1969 está "fora de uso", se de repente alguém quiser usá-lo novamente, está inevitavelmente preso em 1962. Isso foi percebido imediatamente, alguns meses depois de julho de 2007, quando uma grave questão teve que ser enfrentada: na sexta-feira, quando se rezaria pelos irmãos judeus, aqueles que se valessem das fórmulas de 1962, como poderiam evitar corar e fazer corar todos os que os ouviam com as palavras da fórmula de oração para os "pérfidos judeus"? E a turmas dos “panos quentes” da época, tão semelhante à de hoje, falou: vamos construir uma "nova fórmula" diferente daquela de 1962, mas também diferente daquela de 1969. Assim, em 2008, foi inventada uma fórmula que não era tão antijudaica quanto a de 1962, mas não tão irênica quanto a de 1969. Foi como se em 2008 se fingisse estar em 1966, pouco depois de 1962 e pouco antes de 1969. E assim criamos o primeiro "monstro".
Muitos outros foram os "monstros" que nesses 13 anos vimos nascer. Como quando, três anos depois, a comissão Ecclesia Dei, novamente com o "placet" do então prefeito da Congregação, estabeleceu este princípio, que parece retirado diretamente da "Revolução dos Bichos" de Orwell: "existe um grupo válido para o pedido do ‘rito extraordinário’ quando o pedido é feito por pelo menos três pessoas, mesmo pertencentes a diferentes dioceses".
Pois bem! Que joguinho maravilhoso! Dessa maneira, três pessoas, de três dioceses diferentes, podiam, nas três dioceses, fundar três grupos de fiéis "VO", cada um tendo como membros os mesmos três sujeitos. Uma obra-prima de mistificação, com oportuna bênção romana.
E assim chegamos aos nossos dias. E vemos como a cúria romana, em determinados setores, favorece abertamente a si mesma, a seus fechamentos, a suas fixações, chegando a atender o desejo de "atualizar" o missal de 1962, desde que não tenha nada a ver com o missal que o havia atualizado desde 1969! Que obra-prima! Que preocupação com o povo de Deus!
Aquele Missal, que o Papa João queria provisório, que o Concílio quis superar e que Paulo VI efetivamente superou, agora o nosso Prefeito decreta reanimá-lo, maquiá-lo, torná-lo minimamente passável, não fazê-lo parecer tão velho e tão pobre quanto irremediavelmente é.
Mas o Missal de 1962 não se reanima, não pode ser reanimado. Ele está morto. Pensar em "reanimá-lo" é o sofisma de Summorum Pontificum, que, no entanto, é um documento bem pequeno, com uma voz bem fraquinha, contrária à voz retumbante do Concílio, da Reforma Litúrgica e da experiência do povo de Deus de 50 anos, em 5 continentes diferentes. A pequena província chamada Cúria Romana sempre pode confundir as vozinhas abafadas pelo rugido das grandes quedas d’água, mas não pode brincar com a tradição, nem com o bom senso do povo de Deus, apenas para agradar poucos reacionários com adesões em alto escalão. Por outro lado, nós sentimo-nos muito bem e damos às vozinhas o peso das vozinhas e, ao som das quedas d’água, a devida importância.
Diante desse mesquinho espetáculo, do qual, no entanto, os protagonistas não conseguem compreender a mesquinhez, uma última coisa deve ser dita. No fundo, eles, essa turma dos “panos quentes” da liturgia, também têm suas razões. Porque nesses 13 anos eles puderam fazer muitas coisas sem serem perturbados: quantos homens da Igreja, quantos pastores, quantos teólogos, quantos responsáveis pela liturgia ou pelos seminários tiveram coragem e honestidade para falar claramente? De denunciar os truques, os sofismas, os efeitos distorcidos? Porque não hoje, mas desde o começo tudo estava absolutamente claro. Desde o início, havia mistificação sobre os dados, havia cardeais que falavam da "grande reforma de João XXIII" e ampliavam as "hordas de jovens" sedentos de VO. No entanto, quase todos ficaram calados. Até alguns teólogos, inclusive famosos, se curvaram para elogiar o "Summorum Pontificum" como uma "lição de estilo católico".
Mas a maioria permaneceu muda e calada. Hoje podemos bem ver que, se não falarmos a verdade, se não o fazemos, em primeiro lugar, nós teólogos, que estamos na Igreja justamente por esse motivo, para dizer a verdade, gratuitamente, sem lucros, sem responsabilidade pastoral imediata, mas apenas para apresentar os fatos como eles são - mesmo quando custa, talvez especialmente quando custa - se não o fizermos nós, todos entramos em um círculo vicioso de distorções, contorções e mistificações, de modo que na Igreja não se consegue mais distinguir o que é necessário, o que é possível e o que é ridículo.
Pois bem, ontem, no momento em que li os dois decretos com a assinatura do prefeito Ladaria, percebi que, infelizmente, o ridículo havia sido alcançado, da maneira mais completa e também mais vergonhosa. No entanto, como são dias em que muitas pessoas morrem, e se não morrem estão passando mal, vivem isoladas, preocupadas e às vezes até desesperadas, ver as Congregações romanas se entreter fazendo reforminhas de brinquedo dos ritos tridentinos, calcular as indulgências em trinta minutos (não 29) de leitura das Escrituras ou reduzir a missa em coena domini a "ofício eclesiástico" para celibatários solteiros, não só é triste e embaraçoso, mas também assume um perfil dramático e infelizmente também trágico.