31 Março 2020
"Mudam de sentido também os ritos de uma tradição confessional problemática, em torno da qual ocorreram lacerações na história eclesiástica e que muitos agora têm dificuldades até para entender. É como se seus códigos fossem radicalmente reescritos, pelo contexto, da forma do evento e das palavras que os acompanham. É um recentramento: além das formas e das práticas, no centro deve estar sobretudo o anúncio da gratuita proximidade e misericórdia do Deus da vida, para todo homem e toda mulher, precisamente quando tudo parece sombrio", escreve Simone Morandini, que coordena o projeto "Ética, Teologia, Filosofia" da Fundação Lanza e leciona no Instituto San Bernardino de Estudos Ecumênicos em Veneza, e coordena o blog Moralia, em artigo publicado por Il Regno, 30-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os gestos e palavras de Francisco que visitam a solidão, em uma triste noite de março – devido à chuva, mas sobretudo às tantas vidas ameaçadas ou perdidas.
“Trevas escuras se adensam sobre as nossas praças, ruas e cidades; tomaram conta de nossas vidas, preenchendo tudo com um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador”. A grande praça vazia, o evidente esforço no caminhar e nos gestos, o rosto cansado e sofrido: tudo comunica a profunda participação de Francisco no drama da humanidade, o compartilhamento da desorientação que nos investe na grande pandemia.
Até suas palavras comunicam a angústia que todos sentimos por dentro; no entanto, são também palavras de esperança, que indicam a força da ação de muitos e muitas que sustentam de forma incondicional a vida de todos. “As pessoas comuns - geralmente esquecidas - que não aparecem nas manchetes dos jornais e das revistas ou nas grandes passarelas do último show, mas sem dúvida estão escrevendo hoje os eventos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiras e enfermeiras, funcionários de supermercados, pessoal da limpeza, atendentes, transportadores, policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos, mas muitos outros que entenderam que ninguém se salva sozinho”... mães e pais, avós e avôs e professores, que tomam conta daqueles a eles confiados.
Ninguém se salva sozinho! Além da vulnerabilidade, que todos dramaticamente experimentamos, o que nos sustenta é a força da solidariedade, enraizada naquele "pertencimento comum ao qual não podemos escapar: o pertencimento como irmãos”. Perder essa raiz, por outro lado, é "esquecer o que nutriu a alma de nossos povos" e, infelizmente, isso também contou a história deste momento: "Ávidos por lucro, nos deixamos absorver pelas coisas e atordoar pela pressa. Não paramos diante de seus chamados, não despertamos diante de guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e de nosso planeta gravemente enfermo”.
É por isso que agora vivemos um tempo que desafia e questiona: “O tempo para escolher o que importa e o que passa, para separar o que é necessário do que não é. É o momento de redefinir o curso da vida em relação a Ti, Senhor e aos outros (...) porque esta é a força de Deus: transformar tudo o que acontece conosco em coisas boas, até as ruins. Ele traz a calmaria a nossas tempestades, porque com Deus a vida nunca morre".
As poucas palavras que relatamos certamente não podem dar a ideia da força de um evento composto por gestos e imagens poderosas, que muitos - mesmo longe dos laços eclesiais - entenderam como vivificantes.
Assim mudam de sentido também os ritos de uma tradição confessional problemática, em torno da qual ocorreram lacerações na história eclesiástica e que muitos agora têm dificuldades até para entender. É como se seus códigos fossem radicalmente reescritos, pelo contexto, da forma do evento e das palavras que os acompanham. É um recentramento: além das formas e das práticas, no centro deve estar sobretudo o anúncio da gratuita proximidade e misericórdia do Deus da vida, para todo homem e toda mulher, precisamente quando tudo parece sombrio.
Uma misericórdia que sustenta a esperança e doa força de resistência; uma misericórdia que consola as lágrimas e sustenta as mãos e mentes daqueles que trabalham para o cuidado dos outros. Uma misericórdia que pede para ser compartilhada, tomando forma na ação cotidiana de cada um. Uma misericórdia que também nos convida a pensar, ao que virá depois da crise, a um futuro diferente, mais rico em justiça e atenção aos direitos de todos, a partir dos mais frágeis; mais atento à custódia das redes de solidariedade e às formas em que habitamos a nossa casar comum do planeta.
Se de João XXIII permanecem na memória de muitos as palavras do discurso da lua de 11 de outubro de 1962, com o convite de levar um carinho do papa às crianças, talvez de Francisco nos reste na memória o rosto de 27 de março, tão fatigado que em dificuldade a caminhar, mas tão forte ao indicar esperança resistente em uma encruzilhada dramática sem precedentes para esta geração.
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Francisco, 27 de março: a misericórdia que sobrescreve os códigos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU