18 Março 2020
Esta é a hora de confiar no sensus fidei do povo e encontrar maneiras que sejam criativas, mas também muito tradicionais para nos sustentar enquanto atravessamos este deserto.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em La Croix International, 17-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Em vez de assistir à missa no computador, por que não lemos a Bíblia juntos?”
Foi assim que nossa filha de oito anos reagiu no domingo passado quando nos reunimos para assistir à celebração da missa em casa, onde estamos em autoquarentena desde a semana passada.
Das bocas das crianças...
Nossa filha está acostumada a me ver atuando como ministro extraordinário da Eucaristia na nossa paróquia, onde ela se prepara para fazer a sua primeira comunhão. Essa cerimônia, aliás, provavelmente será adiada.
Ela realmente sente falta de não poder ir à missa agora. Nosso pároco costuma fazer com que os ministros leigos conduzam uma catequese bíblica especial para as crianças durante a Liturgia da Palavra, da qual ela, seu irmãozinho e seus colegas de classe participam.
Assim como nós, ela está passando por um momento difícil. Mas, mesmo em sua tenra idade, ela entendeu a questão teológica em jogo.
A situação de bloqueio total prolongado e de distanciamento social está levando todos nós – e de uma maneira inesperada e abrupta – a explorar novas maneiras de ser Igreja.
Ninguém deve romantizar o que está acontecendo. Dado o bloqueio, não apenas a celebração da missa, mas também a atividade pastoral da Igreja parou quase totalmente. Esse é um problema sério.
Um bispo italiano da região da Lombardia (o marco zero da pandemia na Itália) me disse que eles estão muito preocupados.
“É como um curso intensivo em ‘Igreja e mídia’ para nós”, disse ele. “Podemos usar a mídia como um substituto para a nossa atividade pastoral local, mas apenas até um certo ponto.”
Muitos bispos estão expressando essa mesma ansiedade em relação às mídias sociais. Mas alguns estão defendendo que se faça “tudo como sempre”.
Eles não parecem entender completamente como é perigoso – não apenas para os padres, mas também para toda a comunidade – empurrar os limites do sacrossanto distanciamento social que agora nos é exigido.
A emergência do coronavírus está forçando todos nós a reconceituar a nossa religião. Não apenas intelectualmente, mas também visual, emocional e antropologicamente em todos nós.
Esse é um teste formidável para a nossa teologia: liturgia e vida sacramental, eclesiologia e relações entre Igreja e Estado.
É particularmente desafiador para a nossa teologia moral.
Epidemias e pandemias tendem a despertar instintos brutais de sobrevivência em todos nós. Elas também podem provocar outras reações e comportamentos que contradizem a mensagem do Evangelho.
Se a Igreja deve ser uma presença em tudo isso, deve ser de um modo diferente da sua posição padrão normal – a celebração da missa.
A pandemia atual está testando a capacidade da Igreja institucional – incluindo o papado e o Vaticano – de estar presente, quase invisivelmente, sem poder contar com o aparato da Igreja visível.
É também um teste difícil para a teologia do Papa Francisco. O pontificado deve caminhar sobre uma linha extraordinariamente fina entre a necessidade de seguir as medidas antivírus do governo para o bem do povo e a necessidade da Igreja de ser Igreja.
Os historiadores falam sobre a “solidão institucional” do papado. Isso é verdade em tempos normais. Mas um papa está ainda mais solitário em tempos de crise. Francisco está sendo forçado a interpretar seu trabalho como um ator solitário no agora quase totalmente vazio palco de Roma, em uma performance quase becketiana.
O papa jesuíta de 83 anos parece mais à vontade navegando o lado público e político da questão (as relações com o Estado) com suas aparições, do que lidando teologicamente com o significado desta emergência para uma Igreja totalmente ministerial.
A se julgar pelo que ele disse até agora em suas homilias na missa diária e em suas reflexões no Ângelus de domingo, sua ênfase tem sido mais naquilo que os padres podem e devem fazer do que naquilo que todo cristão chamado à santidade é capaz de fazer.
Sua referência no domingo passado ao Pe. Abbondio, o padre covarde de “Os Noivos”, de Alessandro Manzoni, o famoso romance encenado na Milão do século XVII assolada pela praga, foi um belo toque literário. Mas reflete uma Igreja bastante centrada no padre.
Há muitas expressões da espiritualidade cristã que podem ser redescobertas neste momento extraordinário, sem voltar para uma teologia do sacerdócio que não é mais saudável, muito menos segura em tempos de pandemia.
Eu ouvi no sábado, via internet, o som dos sinos aquecendo o ar das ruas totalmente vazias de Roma. Foi como o começo do Grande Silêncio para uma comunidade onde todas as diferenças são agora relativizadas.
Isso me lembrou um mosteiro, e de um ditado de um certo Abbá Antônio, um dos Padres do Deserto: “Assim como os peixes morrem se ficam muito tempo fora da água, assim também os monges que se demoram fora das suas celas”.
Muitos de nós vamos ter que ficar dentro de casa por algum tempo, e não está claro por quanto tempo.
Os católicos precisam dos sacramentos, mas o nosso corpo já é o templo do Espírito Santo. Na vida cristã, há uma sacramentalidade que não depende dos sacramentos em si mesmos.
Assistir à missa online não é um substituto de verdade à participação física na celebração da Eucaristia. E, durante este tempo de pandemia, deveríamos nos concentrar menos nas missas transmitidas ao vivo, na “comunhão espiritual” e nas devoções privadas.
A hierarquia (incluindo o Papa Francisco) deveria incentivar os católicos a explorar a Liturgia das Horas, a “lectio divina” e as celebrações familiares da Palavra.
Existe um enorme potencial nisso. Não é apenas uma questão, especialmente em alguns países, de oferecer uma alternativa viável à dieta hiperclerical oferecida por alguns meios de comunicação católicos como a EWTN. Trata-se também de fornecer um alimento espiritual de verdade, de uma forma teologicamente mais rica e tecnologicamente muito simples.
Os católicos em muitos países se encontrarão nessa situação de bloqueio pelas próximas semanas, senão até meses. Neste momento de emergência, a nossa Igreja – que inclui todos nós, e não apenas a hierarquia – está mostrando como é difícil realmente pôr em prática a visão de renovação espiritual que foi lançada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e tem sido tão energicamente reproposta neste pontificado.
Por exemplo, a reforma litúrgica pós-Vaticano II não foi apenas a “missa nova” – a virada do altar, o uso do vernáculo e a participação ativa dos fiéis. Foi também um modo de entender a liturgia no contexto de uma eclesiologia não hierárquica e de uma teologia da Revelação que deu início a uma nova abordagem da Sagrada Escritura.
Este é um momento para experimentar a solidariedade com os outros, especialmente com os mais frágeis, enquanto cumprimos os nossos deveres cristãos e cívicos.
Além de alguns intelectuais e clérigos, a maioria dos católicos não parecem particularmente preocupados com essa medida de emergência extraordinária e temporária de suspender as celebrações litúrgicas comunitárias. Mas o papa e os bispos devem dizer aos que estão preocupados que não deveriam estar.
Os católicos continuarão acreditando. Continuaremos mantendo a nossa comunidade de fé unida por meio das redes sociais, oferecendo apoio uns aos outros enquanto antecipamos o dia em que poderemos retomar a nossa vida litúrgica normal.
Em muitos países, a Igreja já suspendeu a missa e outras liturgias com a participação do povo. Isso também acontecerá em outros países.
Mas o nosso espírito litúrgico não foi interrompido. Há algo litúrgico nos cantos espontâneos, mas coordenados, das sacadas italianas (por mais que esse cantar seja ruim às vezes!).
Nós nos apoiamos de mil maneiras, na única família humana, na nossa humanidade comum e na fé. Certamente este período difícil de lidar com o Covid-19, por mais longo que seja, terá consequências para a fé e para a Igreja.
Mas esta é a hora de confiar no sensus fidei do povo e encontrar maneiras que sejam criativas, mas também muito tradicionais (Liturgia das Horas, “lectio divina”, celebrações familiares da Palavra) para nos sustentar enquanto atravessamos este deserto.
Caso contrário, todo o debate recente sobre a necessidade urgente de acabar com o clericalismo se revelará como apenas mais uma máscara – uma máscara da qual certamente não precisamos neste momento.
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O coronavírus e a miopia (religiosa) em massa. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU