22 Janeiro 2020
O cientista americano George Church está desenvolvendo um aplicativo de namoro que analisará o genoma dos usuários para evitar casais com “incompatibilidades” e, assim, evitar crianças com malformações. A revolução técnico-científica está se tornando o monstro totalitário imaginado pela ficção científica? Ou é o caso de que as descobertas da última geração conseguirão erradicar as doenças congênitas?
A reportagem é de Aram Aharonian, publicada por CLAE, 18-01-2020. A tradução é do Cepat.
A verdade é que me soou o alarme da eugenia, a aplicação das leis biológicas da herança para o aperfeiçoamento da espécie humana. E, imediatamente, vieram em minha memória os experimentos de Joseph Mengele, o médico nazista que realizou vários experimentos genéticos na Argentina, Uruguai e Brasil, e que se converteu em uma lenda que inspirou histórias e filmes como Os meninos do Brasil e ‘O médico alemão’.
Em Os meninos do Brasil, o objetivo de Mengele era produzir uma geração de clones de Adolf Hitler. Havia estudado na Alemanha as especialidades científicas da eugenia e limpeza racial na busca quimérica e ardilosa da raça ariana. Ele era conhecido como O Anjo da Morte pelos inúmeros assassinatos cometidos sob suas ordens e pessoalmente no campo de concentração de Auschwitz.
E, no final do ano, o alarme soou novamente quando o programa de televisão americano 60 Minutes transmitiu um curta protagonizado pelo especialista em genética George Church, onde o biotecnólogo fazia um breve comentário sobre um aplicativo de namoro baseado na genética que seu laboratório estava desenvolvendo e que, segundo ele, poderia eliminar as doenças hereditárias. Destacava que isto poderia ser a solução para evitar que os pais transmitam doenças hereditárias.
A biotecnologia se refere a qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos e organismos vivos ou seus derivados para a criação ou modificação de produtos ou processos para usos específicos. Tais organismos podem estar ou não geneticamente modificados, razão pela qual não se deve confundir Biotecnologia com Engenharia Genética.
Para o Grupo ETC, que monitora o impacto das tecnologias emergentes e as estratégias corporativas sobre a biodiversidade, a agricultura e os direitos humanos, a biotecnologia é uma diversidade de técnicas que incluem o uso e a manipulação de organismos vivos para obter produtos comerciais.
Essas técnicas incluem cultivos de células, cultivos de tecidos, transferência de embriões e tecnologia de DNA recombinante (engenharia genética). “Não nos opomos de maneira fundamental à engenharia genética, mas temos profundas preocupações com a maneira como ela está se impondo no mundo. No atual contexto social, econômico e político, a engenharia genética não somente é insegura, como também seus níveis de risco para a saúde humana e o meio ambiente são inaceitáveis”, destaca o Grupo ETC.
E a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, clube dos países mais desenvolvidos) confirma: a biotecnologia é a “aplicação de princípios da ciência e engenharia para tratamentos de materiais orgânicos e inorgânicos por sistemas biológicos para produzir bens e serviços”.
O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança da Convenção sobre Diversidade Biológica define a biotecnologia moderna como a aplicação de técnicas ‘in vitro’ de ácido nucleico, incluindo o DNA recombinante e a injeção direta de ácido nucleico em organelas celulares, e a fusão de células para além da família taxonômica, que supere as barreiras fisiológicas naturais da reprodução e que não sejam técnicas utilizadas na reprodução e seleção tradicionais.
A resposta nos meios de comunicação (tanto convencionais, como nas redes sociais) à proposta de Church foi imediata e em sua maioria negativa. As pessoas surdas se ofenderam. As pessoas trans também. Assim como alguns cientistas. Eugenia!, destacou Antonio Regalado na revista do Massachusetts Institute of Technology - MIT.
Regalado, editor de Biotecnologia da revista do MIT, disse que praticamente não há possibilidade de que isto funcione. É basicamente eugenia. Não se deve dar a informação de seu DNA a um aplicativo de namoro, que provavelmente será extremamente racista.
Nenhuma das opiniões dos indignados deu mais detalhes sobre o aplicativo, mas obtivemos informações exclusivas sobre essa nova empresa de encontros por DNA que sai do laboratório de Church.
A startup, chamada Digid8, foi criada em setembro por Barghavi Govindarajan, que se descreve como “tecnólogo formado em Harvard (Estados Unidos), inovador e educador”. Church afirma que ele é cofundador da empresa. A empresa inspira o seu nome em D8, um conceito presente na prática de usar a internet para encontros. Seu objetivo será o que Church denomina “encontros do genoma completo”.
A ideia consiste em utilizar comparações de DNA para garantir que as pessoas que compartilham uma mutação genética, como aquelas que causam a doença de Tay-Sachs ou a fibrose cística, nunca se encontrem, namorem ou tenham filhos. Para Regalado, existem três tipos de usuários para usar esse aplicativo: jovens neonazistas, usuários que não querem sair acidentalmente com seus primos e hackers chineses que criam armas biológicas.
Com tais tipos de características recessivas (existem milhares delas), as crianças só desenvolvem a doença se herdarem dois genes de risco, um de cada progenitor. A probabilidade costuma ser em torno de 25%. Church garante que o aplicativo genético que o Digid8 está desenvolvendo seria executado em segundo plano nas páginas de namoro existentes, “como um GPS” para impedir que essas pessoas se unam através do serviço.
Um sequenciamento de genoma custa cerca de 670 euros, mas os custos continuam baixando. Church, cujo laboratório lança projetos cada vez mais polêmicos, acredita que o custo poderia ser incorporado ao preço da subscrição nos sites de namoro, que geralmente custam cerca de 45 euros por mês.
A revista do Massachusetts Institute of Technology destaca que o laboratório de Church recebeu fundos para a investigação do condenado por crimes sexuais Jeffrey Epstein, razão pela qual não é um bom momento para entrar no assunto dos encontros. Essa vinculação só aumentou a reação furiosa à sua aparição no programa por 60 Minutes.
Logo após a transmissão de 60 Minutes, Church apontou que os críticos não pararam para “pensar profundamente sobre esse problema tão complicado”. De acordo com suas explicações, qualquer usuário seria compatível com 95% das outras pessoas. E afirmou que o aplicativo não forneceria os dados de saúde para as pessoas, apenas usaria seus genes para descartar coincidências de risco.
Então, questiona-se Regalado: a Digid8 é uma empresa de eugenia? Sim e não. Não porque a eugenia costuma se referir à esterilização forçada, à procriação imposta ou ao extermínio de pessoas por parte de um Estado. Mas também sim, porque o aplicativo está buscando impedir o nascimento de pessoas com doenças graves. E essa ideia não agrada todo mundo. Segundo Vice News, é um desenvolvimento ‘horrível’ que ataca as pessoas marginalizadas.
Church destacou em um tuíte: Não “eliminar todas”, mas reduzir a incidência das doenças mais graves. A eugenia (Estados Unidos, Alemanha etc. 1920-1970) interferiu na vida humana e nas escolhas reprodutivas pessoais. Dor Yeshorim ajuda as pessoas a entender o risco genético de doenças graves como Tay Sachs.
A verdade é que a medicina já está tentando evitar essas doenças: testes genéticos de “preconcepção” são comuns em casais que planejam ter filhos e, às vezes, os embriões de fertilização in vitro (FIV) são analisados e selecionados em função de seus genes. Alguns futuros pais decidem abortar quando o teste revela resultados negativos.
“Se tudo isso é feito após um casal se apaixonar, resulta em uma má notícia. Um quarto das crianças terá essas doenças. Se é possível voltar no tempo antes que se apaixonem, a mensagem seria muito mais positiva”, explica Church, que almejava a ideia de usar a genética para prevenir doenças.
Uma de suas inspirações é um grupo de pesquisa judeu no Brooklyn (Estados Unidos), Dor Yeshorim, que analisa os adolescentes das comunidades ortodoxas e usa essas informações para ajudar a efetivar seus casamentos. Como resultado, as taxas de Tay-Sachs, o distúrbio neurodegenerativo fatal mais comum entre alguns grupos judeus, diminuíram.
Church argumenta que um aplicativo de namoro como o Didig8 automatizaria e tornaria tudo mais fácil, mas diz que a tecnologia não é nova. O cientista detalha: “Todas as peças já foram comprovadas, estamos apenas unindo o sequenciamento do genoma completo com encriptação com o software genético para encontrar um parceiro”. Os encontros por DNA, em teoria, permitiriam muitas aplicações que alguns poderiam considerar problemáticas.
Por exemplo, em algumas culturas as pessoas tentam se casar apenas dentro de certas castas, clãs ou tribos. Um anúncio de emprego publicado no site Digid8 afirma que a empresa está procurando um mercado “inexplorado”, ao criar um serviço de namoro que usa a ciência para avaliar tal “compatibilidade linear”, aparentemente se referindo às práticas de autossegregação grupal que ocorrem na região do Golfo e na Índia.
Por acaso, a ideia não era evitar o nascimento de crianças doentes? Seria o caso de eugenia se sua aplicação tentasse impedir que toda uma classe de pessoas tenha encontros.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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Eugenia biotecnológica? Didig8, um Tinder que usará o DNA para evitar filhos doentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU