17 Novembro 2018
"A explosão das desigualdades sociais explica a crise do nosso tempo. O triste ocaso das democracias liberais e o amanhecer dourado das direitas populistas", escreve Massimo Giannini, jornalista e escritor italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 15-11-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não à austeridade. Investimentos em educação, pesquisa e meio ambiente. Em seu novo ensaio, a economista Mariana Mazzucato propõe uma estratégia para enfrentar desigualdades e patologias de um capitalismo voraz.
Quando eu penso ao “clube do 1 por cento" que se apropria da metade da riqueza do planeta, ao gerente que embolsa um super bônus 450 vezes maior que o salário médio de seus funcionários, aos 5 milhões de italianos em situação de pobreza, lembro-me de uma das lendárias charges de Altan. Os dois ricaços habituais que falam: "Mas neste mundo só os rendimentos contam?" "Claro que não, também há o lucro".
Vamos rir disso, mesmo que não haja nada para rir.
A explosão das desigualdades sociais explica a crise do nosso tempo. O triste ocaso das democracias liberais e o amanhecer dourado das direitas populistas.
No discurso público moderno, isso não parece ser um acidente da História, que entrou na contramão numa curva fechada. Pelo contrário, parece um destino que se cumpre, inelutável e imutável. E então viva Mariana Mazzucato, que na esteira de Piketty e Stiglitz tem a coragem de lutar contra os falsos mitos de que se alimenta a Sociedade Desigual da qual somos partícipes, e para a qual parecemos condenados.
Seu último ensaio, Il valore di tutto (O valor de tudo, Laterza), explica o paradoxo da charge de Altan. Como chegamos a acreditar que, para além do rendimento, no capitalismo contemporâneo haja espaço apenas para lucro? Quando trocamos renda com rendimento, quem ganha com quem produz?
Porque confundimos a "criação de valor" (ou seja, o uso dos recursos para a produção de novas mercadorias e serviços) com a "extração de valor" (ou seja, a transferência de recursos ou produtos existentes, e o ganho que resulta de sua comercialização)?
Ela já nos havia deleitado com o Lo Stato Innovatore (O Estado Inovador), um livro quase subversivo de quatro anos atrás. Agora, partindo de Ricardo e Marx, Mazzucato chega ao âmago do problema. No século XVII, a economia mundial cresceu graças ao incentivo das atividades produtivas e à penalização das atividades improdutivas. Na segunda metade do século XIX, ocorreu a primeira mutação: o "valor" passou de uma dimensão coletiva para um viés individual. Hoje a metamorfose se completa, a economia "de papel" e as finanças "short" prevalecem sobre a indústria, afirma-se a primazia das gestões patrimoniais, impõe-se a "maximização do valor para os acionistas". Na esteira da Grande Recessão de 2008 nasce um capitalismo voraz e parasitário, que impõe aos governos um storytelling, desviado e desviante: "Para eles altas remunerações, para nós as sobras"
"Eles" são as moscas do Capital. Os "criadores das fábulas que governam o mundo", como dizia Platão. "Eles" são os banqueiros da Goldman Sachs que, apesar dos desastres do Big Crash de dez anos atrás e dos 125 bilhões gastos pelo governo dos EUA para sua recuperação, entre 2009 e 2016 acumulam 63 bilhões de lucros.
"Eles" são os gigantes da Big Pharma, que por três meses colocam no mercado o fármaco Gilead contra a hepatite C pelo módico preço de US $ 94.500. "Eles" são os Over The Top tipo a Apple, que para não pagar os impostos dos EUA transfere para o exterior seu volume de negócios de 187 bilhões de dólares, ou os colossos da Gig Economy tipo a Uber e o Airbnb, quem lucram proveitos e dividendos nos ombros do sistema público.
Esquecendo que sem os colossais investimentos públicos em hi-tech dos últimos trinta anos nunca teria nascido a Internet, o GPS, o touchscreen, o Siri, ou seja, todas as plataformas das quais se extrai valor para os acionistas e gerentes. E alimentando outro mito, que Mazzucato havia desmentido com seu ensaio anterior: aquele do "privado leopardo" que ganha em velocidade e eficiência do "Estado tartaruga". Uma mentira, à qual, no entanto, acreditamos cegamente como a história da luta entre o bem e o mal. Sem sequer nos sentirmos atravessados por uma dúvida: e se tudo fosse falso? Nada a fazer.
Nós não temos tempo para as perguntas. No entanto, "nós" somos o povo manada, que está à margem dessa elite, capaz de orientar políticas industriais e fiscais e de drenar isenções crescentes sobre os ganhos de capital. "Nós" somos o trabalho aviltado, precário e sub-remunerado. Hoje – nos relembra Mazzucato - o patrimônio dos 62 homens mais ricos do mundo é igual àquele da metade mais pobre, ou seja, 3,5 bilhões de indivíduos.
Entre 1975 e 2017, apenas nos Estados Unidos, o PIB real triplicou de 5.490 para 17.290 bilhões de dólares, a produtividade aumentou 60%, mas os salários reais permaneceram inalterados. Tudo o resto acabou onde é natural que acabe, nesse sistema equivocado: nos bolsos de raider e "rentier". Os "extratores" disfarçados de "criadores".
Se essa é a doença, Mazzucato arrisca uma cura. E aqui começam as dores. Não porque as terapias não sejam convincentes. Pelo contrário: são tão lúcidas que, por isso mesmo, se tornam Utopia.
Entender o que é o valor, quem o cria e quem o subtrai é a premissa para reconstruir um capitalismo sustentável e inclusivo. Precisamos "devolver uma missão à economia" reformando as instituições financeiras, mudando as normas sobre as patentes, devolvendo um papel forte ao Estado regulador e inovador. A economista italiana radicada em Londres, que está enredada nas malhas estreitas do Brexit, não se retrai diante do confronto sobre a atualidade que vê a Itália Soberanista no centro do desafio com a Europa Tecnocrática. E o resolve como uma convicta desenvolvimentista keynesiana: "não à austeridade", que nos últimos anos sufocou a retomada. O déficit baixo "é um objetivo errado". Para o crescimento, é preciso "uma direção de caminho", não uma "lista de compras".
São necessários investimentos nos setores estratégicos, a pesquisa, a educação e a economia verde.
Um programa de "esquerda", poderia se dizer, se não estivéssemos vivendo o seu penoso eclipse. Que culmina na investida final: é o momento de uma política apta a sustentar um sistema tributário mais progressivo, "que atinja a riqueza".
É assim mesmo que Mazzucato escreve: “que atinja a riqueza”. Uma blasfêmia na igreja, para uma esquerda que mimou os ricos, esquecendo-se dos pobres e dos últimos.
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