“Passamos da etapa do aquecimento; estamos em uma emergência climática ou de ebulição global.” Foi com estas palavras que o cientista brasileiro Paulo Artaxo se pronunciou em outubro do ano passado, quando diversos municípios do Rio Grande do Sul vivenciavam a segunda onda de enchentes do ano, enquanto a população de outros estados do país sofria com as ondas de calor extremo. Neste contexto de eventos climáticos díspares, sublinha, “não há a menor dúvida de que informar a população sobre os riscos atuais e potenciais das mudanças climáticas é tão importante quanto o de produzir a ciência que embasa essas conclusões”.
Enquanto a população atingida pelos eventos climáticos não é totalmente esclarecida e os governos de plantão demonstram, na prática, ceticismo quanto aos fenômenos observados, no Rio Grande do Sul, estado atingido pelas enchentes das últimas semanas, os governos federal e estadual “divergem sobre soluções para a crise climática”.
Não bastasse o impasse político acerca das políticas públicas a serem adotadas a curto, médio e longo prazo, as fake news invadem os celulares dos gaúchos e “viram arma política na tragédia climática do RS”. O fenômeno das últimas eleições ganha nova dimensão diante da crise climática e social que toma conta do estado. “A desinformação no Brasil é um fenômeno político. Dependendo da ideologia que a pessoa segue, escolhe certas fontes. A mediação dos algoritmos sugere outros conteúdos e outras pessoas para seguir nessa linha. Então, cai no buraco de uma teoria da conspiração ou desinformação não por ignorância, mas pelos seus valores", comenta Yurij Castelfranchi, professor de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Apesar da desinformação e das dificuldades enfrentadas, a solidariedade dos brasileiros chama novamente atenção em meio ao caos. A construção de abrigos emergências para assistir aos desabrigados, embora positiva, “antes de tudo revela a necessidade de fazer uma discussão séria sobre justiça climática”, disse Leonardo Rossatto, especialista em políticas públicas, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “As mudanças climáticas atingem de forma desigual as pessoas. Grupos que estão morando em moradias subnormais, por exemplo, acabam sendo mais vulneráveis a grandes eventos, como foi o desastre que ainda está acontecendo no RS. Grupos que sofrem muito estão extremamente vulneráveis. A diversidade dos abrigos mostra que são justamente os grupos mais vulneráveis que perderam suas casas”, exemplifica.
Em 2020, Gaël Giraud, jesuíta, economista francês e professor da Georgetown University, dos Estados Unidos, advertiu para duas consequências das mudanças climáticas: todos os países serão atingidos, em algum nível, pela falta de água, energia, minérios ou biodiversidade e todos os países serão afetados por eventos climáticos extremos. Na videoconferência "Emergência Climática. Ecologia integral e o cuidado da casa comum", promovida pelo IHU, Giraud destacou a abundância dos bens comuns e chamou atenção para a administração e distribuição dos recursos naturais no contexto de novo regime climático. "Os bens comuns são o projeto político da modernidade de hoje para o século XXI, o qual devemos implementar para lutar contra as mudanças climáticas. Nos últimos 40 anos, por causa do neoliberalismo, estamos envolvidos num grande projeto de privatização do mundo. E é este projeto que o primeiro capítulo da encíclica papal Fratelli tutti denuncia como uma lógica perversa, segundo a qual, a natureza, o corpo humano, o genoma, as crianças e as mulheres, podem virar mercadoria e serem vendidos no mercado".
Para refletir sobre a ebulição climática em curso, o IHU promove o ciclo de estudos Ebulição global. O Novo Regime Climático e seus desafios psicossocioambientais no Brasil. A próxima videconferência, intitulada "Emergência climática. A era da ebulição global, suas causas e impactos", será ministrada pelo doutor em Ciências Atmosféricas pela Colorado State University e professor da Universidade Federal do Ceará, Alexandre Araújo Costa, na próxima terça-feira, 28-05-2024, às 10h. O evento será transmitido pela página eletrônica do IHU e pelo Canal IHU Comunica.
Os fenômenos climáticos extremos tendem a aumentar caso o aquecimento global não seja controlado, disse o cientista em entrevista concedida ao IHU. “Hoje, já ocorrem eventos de secas ecológicas e agrícolas motivadas por esses processos em uma frequência muito maior do que no período pré-industrial. A atmosfera, quando retira mais água da superfície e dos corpos d’água, do solo, da vegetação, contém mais vapor d’água e produz tempestades mais severas, eventos de chuvas extremas do tipo que acontecia uma vez em cada dez anos. Esse tipo de evento está 30% mais recorrente e a tendência é de que essa frequência cresça a cada grau que o planeta aquecer”, explica.
Na avaliação do pesquisador, além de o debate ser crucial, “existe uma forte imposição moral em torno da questão climática hoje. O que acontece, no entanto, segundo análise feita pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, é que os compromissos assumidos pelos países estão muito longe de oferecer qualquer horizonte de segurança climáticas para as gerações futuras. Embora as partes tenham assinado o Acordo de Paris na Conferência das Partes em 2015, se comprometendo em manter o aquecimento global bem abaixo de 2ºC e, preferencialmente, bem abaixo de 1,5ºC, não estão cumprindo com o combinado. Basicamente, precisaríamos ter, ao longo das próximas quatro décadas, uma trajetória de emissões que fosse marcada pela redução imediata e acelerada dos gases de efeito estufa, reduzindo metade das emissões por volta de 2030 e zerando as emissões em meados do século. Essa é a única receita possível para manter o aquecimento global controlado em níveis minimamente seguros, como falamos, de 1,5ºC”, assegura.
A gravidade do aquecimento global de 1,5ºC, acrescenta, é justamente a intensificação de eventos extremos em curto espaço de tempo. “Para termos uma noção de quão grave é o problema do aquecimento de 1,5ºC do presente, ondas de calor que eram raras e costumavam ocorrer uma a cada 50 anos – ondas de calor letais, diga-se de passagem, perigosas, que provocam desidratação intensa e podem levar à morte –, hoje ocorrem em uma frequência quase cinco vezes maior. Eventos que costumavam ocorrer uma vez a cada 50 anos se tornaram eventos de uma vez a cada 10 anos. Essa frequência tende a aumentar a cada décimo de grau que o planeta aquecer. Mesmo com a elevação da temperatura em 1,5ºC, essas ondas de calor passariam a ocorrer, em média, uma a cada seis anos. Estou falando de eventos como o que matou mais de 12 mil pessoas na Europa em 2003, mais de quatro mil pessoas na Índia e no Paquistão em 2015. Num mundo em que a temperatura aumentar 2ºC ou mais, esses eventos se tornariam o novo normal. Ora, ocorreria uma onda de calor dessas a cada ano. Se essa realidade se transformar no novo normal, com eventos extremos anuais, o que seria o novo extremo?”, questiona.
A estimativa é que as gerações futuras serão ainda mais impactadas pelos efeitos do aquecimento global. “Os eventos extremos serão quatro vezes mais frequentes na vida das pessoas nascidas no ano passado do que na vida daqueles que nasceram nos anos 1960. Num cenário pior, com aumento da temperatura em 2ºC, a expectativa é de que os eventos extremos sejam sete vezes mais recorrentes na vida da geração que nasceu em 2021 do que na que nasceu em 1960. Estou falando do dobro de furacões intensos, do dobro de incêndios florestais, do triplo de inundações, do quádruplo de perdas de safras, do quíntuplo de secas e um aumento de ondas de calor a serem vivenciadas pelas novas gerações”, especifica.
Neste contexto, Costa também advoga em torno da justiça climática. Este, frisa, “é um conceito que precisa ser trazido a primeiro plano e que nos remete a todas as profundas fissuras que a humanidade vivencia”.
As demais conferências do ciclo de estudos Ebulição global. O Novo Regime Climático e seus desafios psicossocioambientais no Brasil estão disponíveis aqui.