17 Mai 2024
Embora tenham evoluído para viver em uma clima seco, espécies do bioma e outros ecossistemas abertos não estão preparadas para as mudanças projetadas.
A reportagem é de Bernardo Araujo, publicada por ((o))Eco, 14-05-2024.
A seca, junto ao aumento da temperatura, vem se destacando como uma das grandes vilãs das mudanças climáticas no Brasil. Estudos recentes têm demonstrado que o aquecimento e a redução da pluviosidade previstos para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste já estão causando impactos como o aumento da frequência de secas na Amazônia, fenômeno que vem trazendo consequências para a fauna mesmo em regiões quase intocadas da maior floresta tropical úmida do planeta.
Diante deste cenário, é compreensível que as preocupações de cientistas e ambientalistas se voltem para a Amazônia e outras florestas úmidas destas regiões. Mas este foco também tem um efeito adverso: ele deixa de lado a fauna e a flora de biomas naturalmente mais áridos, como a Caatinga.
“Existia uma visão de que porque esses organismos evoluíram num clima seco, quase desértico, eles estão adaptados às mudanças climáticas”, diz Mario Moura, ecólogo e pesquisador da Universidade Federal de Campinas.
Moura é o primeiro autor de um estudo já reportado pelo ((o))eco no ano passado, demonstrando que essa suposição passa longe da verdade. Seus resultados sugerem que, até 2060, 40% da Caatinga vai passar por um processo de homogeneização em suas comunidades de plantas – isto é, de perda de diversidade entre regiões, tornando todas mais parecidas biologicamente. A pesquisa também prevê que 99% do território do bioma deve perder espécies localmente, e que plantas lenhosas, como árvores, serão mais afetadas.
“E essa perda também é muito mais pronunciada sobre as espécies que são raras, ou seja, aquelas que já tem uma distribuição geográfica um pouco mais restrita”, Moura acrescenta.
Um resultado surpreendente, e que levanta sérias preocupações em relação ao futuro dos organismos que habitam a Caatinga.
“O que se está mostrando é que eles estão à beira do colapso já,” diz Moura.
Moura não está sozinho em sua conclusão. Um estudo publicado este ano na revista Journal of Arid Environments estima que mudanças climáticas devem reduzir a área de distribuição geográfica de espécies de répteis psamófilos – animais especializados em viver em terreno arenoso – que habitam diferentes ambientes secos e abertos na América do Sul.
“Nós estudamos 10 espécies que ocorrem ao longo do que a gente conhece como o Diagonal de Formações Abertas (DFA), que engloba o bioma Caatinga, o Cerrado e o Chaco,” diz Thaís Guedes, coordenadora do estudo e pesquisadora na Universidade Estadual de Campinas.
Guedes e seus colaboradores colocaram à prova a mesma suposição explorada por Moura. “Será que mesmo essas espécies que estão enterradas num ambiente árido vão ser impactadas?”
Os cientistas basearam seu estudo numa modelagem de distribuição de espécies – modelos matemáticos que preveem quais regiões um organismo pode potencialmente habitar, baseado nas condições climáticas e ambientais dos habitats onde sabemos que ele vive. Essa ferramenta ajuda pesquisadores a identificar áreas adequadas para a ocorrência de animais e plantas em locais fora de sua distribuição conhecida, mas é também útil para entender como diferentes espécies ocuparão o espaço geográfico em cenários climáticos futuros.
O estudo estimou quais áreas dentro do DFA teriam condições climáticas para abrigar cada uma das dez espécies analisadas nos futuros de 2040 e 2060, levando em conta cenários de desenvolvimento socioeconômico otimistas e pessimistas – isto é, com mais ou menos emissões de carbono e outros gases de efeito estufa. O resultado foi bem claro.
“Elas vão ser impactadas, e muito impactadas”, diz Guedes.
A previsão é que mudanças no clima reduzam a área de distribuição de seis dos dez répteis analisados. Dois deles – as cobras Phalotris matogrossensis e Rodriguesophis iglesiasi – seriam completamente extintos no cenário otimista previsto para 2060. Outro lagarto, Vanzosaura savanicola, perderá 100% de sua área de distribuição atual no cenário pessimista de 2040 e em ambos os cenários de 2060, ganhando uma área mínima (equivalente a 1,7-6,3% da atual) de distribuição potencial em outras localidades.
Em contrapartida, uma única outra cobra, Philodryas psammophidea, ganhará área total habitável em todos os cenários previstos. Segundo Guedes, P. psammophidea é a única beneficiada em todos os casos por ser uma espécie generalista, e sua resposta às mudanças no clima está longe de ser a regra, especialmente quando consideramos a quantidade de especialistas de habitat analisadas no estudo.
“Pensava-se comumente que essas espécies, por serem adaptadas a solos mais áridos […] na Caatinga, no Cerrado e no Chaco, estariam mais adaptadas a temperaturas mais altas. E a gente refutou essa ideia”, diz Júlia Oliveira, mestre em Biodiversidade, Ambiente e Saúde pela Universidade Estadual do Maranhão e primeira autora do estudo.
Os autores alertam ainda que a gravidade da situação vai além dessas estimativas de mudanças de distribuição. Ainda que os modelos prevejam que alguns répteis ganhem novas áreas habitáveis em determinados cenários, no mundo real, não existe garantia de que eles consigam chegar até esses novos habitats em potencial.
Numa terra de biomas fragmentados, é possível que barreiras antrópicas (cidades, plantações, estradas e outras) e geográficas simplesmente impeçam o deslocamento ou o estabelecimento das espécies, condenando-as a declínios mais severos que aqueles estimados inicialmente pelo estudo.
Às preocupações de Oliveira, Guedes e colaboradores somam-se ainda as tendências reveladas pelo estudo de Moura. “O trabalho do Mário Moura com a vegetação, é muito importante também, […] porque a vegetação contribui para a saúde do solo,” diz Oliveira. Além de condições climáticas ideais, os répteis estudados por ela dependem de um solo com uma composição particular de areia, argila e silte.
“Está tudo relacionado,” Oliveira conclui.
E se o impacto sobre a flora da Caatinga torna ainda mais incerto o futuro da fauna do bioma, o inverso também é verdade. Além de investigar o futuro das plantas, Moura também é o primeiro autor de um estudo similar que avalia como mudanças climáticas podem impactar os mamíferos da Caatinga, publicado na revista Global Change Biology em 2023.
Moura e colaboradores utilizaram, em seus dois estudos, um tipo de modelagem muito parecida com aquele empregado por Oliveira e Guedes. Seu foco, no entanto, era nos futuros de 2060 e 2100 – mais uma vez levando em conta cenários de maior e menor emissão de gases estufa. Mas ao invés de avaliar ganhos e perdas na distribuição de cada espécie analisada – 100 espécies de mamíferos e mais de 3.000 espécies de plantas –, Moura se preocupou em entender que proporção do bioma sofreria alguma perda de espécies. Ele também calculou um índice conhecido como diversidade beta – que mede a diversidade entre diferentes áreas do bioma – para entender se, tal como as plantas, a comunidade de mamíferos também passaria por uma homogeneização na Caatinga.
Enquanto que a perda de espécies de mamíferos afetará uma área ligeiramente menor do bioma, outros impactos serão mais graves sobre a fauna. “Em termos dessa mudança na diversidade beta, a gente teve uma homogeneização de 40% para as plantas, mas a homogeneização é de 60% para mamíferos,” diz Moura.
Assim como a flora, os mamíferos da Caatinga não serão todos impactados na mesma proporção. De acordo com os resultados do estudo, espécies de pequeno porte – muitas delas arborícolas – serão mais afetadas que espécies maiores pelas mudanças no clima.
“As árvores já vão ser impactadas,” explica Moura. “Aí você pega esses mamíferos que são muitas vezes os dispersores de sementes dessas espécies de árvores, e eles também vão ser os mais impactados.”
O resultado desse cenário é um efeito sinérgico entre os impactos climáticos sofridos pela fauna e pela flora, que representa um risco ainda maior para o futuro da diversidade da Caatinga. E com a queda dessa diversidade, perdem-se também diversos organismos que agem em prol da civilização humana.
“Polinização, sequestro de carbono, armazenamento de carbono, controle de pragas, de vetores… Esses serviços ecossistêmicos que a natureza fornece para a gente, eles ocorrem em maior intensidade em locais que são mais ricos em espécies,” explica Moura.
Aliada infortuna das alterações no clima, outra sombra que paira sobre o presente e o futuro da Caatinga é a falta de atenção institucional e científica que ela recebe quando comparada a outros biomas brasileiros.
Apenas 1,3% da área da Caatinga se encontra hoje dentro de unidades de proteção integral – área essa que já foi 50% reduzida em relação ao tamanho original do bioma.
Segundo Oliveira, parte dessa discrepância ainda se deve “ao histórico de negligência em estudos e estratégias de conservação direcionados à biodiversidade do bioma.”
No passado, mesmo os próprios herpetólogos – cientistas que estudam répteis e anfíbios – “acreditavam que Cerrado, Caatinga e o Chaco, no caso da América do Sul, tinham uma fauna parecida, porque são todas áreas abertas”, ela acrescenta. “Precisávamos mesmo de mais estudos, e foi a partir deles que percebeu-se o grande número de espécies, inclusive endêmicas, que existe, e da fauna importante que precisa ser preservada.”
O estudo de Oliveira, apesar de baseado em répteis bem distribuídos nos biomas estudados, soa um alerta também a respeito do que pode acontecer com espécies endêmicas em regiões particulares da Caatinga e além.
E se a natureza críptica da biodiversidade do bioma eludiu cientistas durante muito tempo, ela continua passando despercebida para muitas das pessoas que vivem sobre ele. Em outubro e novembro de 2023, Guedes e outros dois pesquisadores realizaram uma expedição de um mês na margem esquerda das Dunas do São Francisco, chamada Joias das Dunas do Velho Chico.
Em palestras apresentadas para as comunidades locais, Guedes mostrava imagens da tão conhecida fauna carismática de savanas africanas. “Quem sabe que espécie é essa?” As respostas eram diretas e inequívocas. “Um elefante! Uma girafa! Um leão!” Mas quando apresentados a uma imagem de um pequeno lagarto da região, o silêncio era completo. “E é a espécie que ocorre no quintal da pessoa”, lembra Guedes.
As mudanças climáticas são um fenômeno global, e demandam atitudes igualmente globais para mitigar seus efeitos. Mas a criação de áreas de conservação e outras medidas que podem ajudar espécies afetadas pelas alterações no clima a sobreviver podem ser implementadas localmente. E para que se reúna vontade política o suficiente para acioná-las, mais pessoas precisam estar cientes dos tesouros que o bioma abriga.
Lembrando-se de suas interações com as comunidades das margens do Velho Chico, Guedes fica confiante de que com mais comunicação, as espécies da Caatinga podem conquistar o coração das pessoas. “Quando eles conheceram [os répteis], eles falaram, ‘são as nossas joias.’ Então, eu acho que a gente pode construir esse carisma, sabe?”
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Caatinga pode ser severamente impactada por mudanças climáticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU