Em livro recém-lançado, o economista John W. Reid e o biólogo Thomas E. Lovejoy, que conhecem bem a realidade amazônica, afirmam que as grandes paisagens florestais intactas são a última chance de frear as mudanças climáticas.
A reportagem é de Eduardo Nunomura, publicada por Amazônia Real, 28-11-2023.
“As florestas intactas são um alvoroço de vida”, escrevem John W. Reid e Thomas E. Lovejoy, autores do recém-lançado livro Megaflorestas. Às vésperas de mais uma Conferência das Partes, a COP28, realizada de 30 de novembro a 12 de dezembro em Dubai, a obra se reveste de uma urgência que deveria estar na mesa dos negociadores mundiais, burocratas e autoridades públicas. Qualquer debate digno desse nome deve levar em conta que as florestas exercem e vão exercer um papel crucial de regulação do clima e de manutenção da existência humana na Terra. Esta é uma discussão ambiental, econômica e urgente.
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O “alvoroço de vida” representa uma chance de frear o aquecimento global. O livro, vale o spoiler, indica que ainda há tempo. Preservar grandes porções florestais é a garantia de que as emissões de gases de efeito estufa possam ser reabsorvidas. E isso apesar das constantes ameaças. Na primeira década dos anos 2000, a perda de florestas tropicais emitiu 5 bilhões de toneladas métricas de CO2 anualmente, mais do que todas as emissões dos países europeus. Seria um problema gigantesco, mas as próprias florestas tropicais intocadas capturaram metade desse carbono, informou um relatório de 2018 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC).
Reid, um economista, e Lovejoy, um ecólogo, estão obstinados em reunir boas informações. Fazem isso recolhendo dados de estudos científicos, debruçando sobre os relatórios do IPCC (que defende o fim do desmatamento global até 2030) e visitando, in loco, as grandes florestas ao redor do planeta. O foco do livro se volta para as megaflorestas, sendo que 40% delas têm “boa saúde” e se concentram em cinco regiões: zona boreal russa (Taiga), zona boreal norte-americana (que vai do Alasca ao Oceano Atlântico), Amazônia (compartilhada por oito países da América do Sul), Congo (na África) e Nova Guiné (que recobre parte da Papua-Nova Guiné e Indonésia).
“Elas são as terras mais selvagens e biologicamente diversas do planeta. No norte, grandes ícones como ursos-pardos, lobos, felinos, renas e salmões dependem — e sustentam — as matas, da mesma forma que 3 bilhões de aves canoras e aquáticas que migram de latitudes tropicais e temperadas. Florestas tropicais úmidas, as mais diversificadas de todas, regularmente são palco de descobertas de formas de vida desconhecidas pela ciência”, descrevem Thomas Lovejoy e John Reid.
A potência desse livro, publicado no Brasil pela Editora Voo, não se mede pelas 326 páginas, tampouco pelo generoso prefácio da ministra de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva. Mas por dar a devida dimensão de um tema que há algum tempo era ignorado, senão sabotado por governantes e até ambientalistas. Os autores fazem questão de frisar que, em 1992, a Cúpula da Terra da ONU, no Rio de Janeiro, produziu dois tratados: um climático que, na prática, excluía as florestas, e outro, voltado à biodiversidade, que as incorporava. No evento, precursor das COPs (a Conferência do Clima da ONU), defensores do meio ambiente argumentaram que o carbono florestal era difícil de ser medido ou esse tipo de negociação abriria espaço para que nações ricas poluíssem mais – um efeito oposto ao desejado.
Thomas Lovejoy discursa em painel sobre soluções políticas para o desmatamento na Amazônia em maio de 2019. (Foto: Inter-American Dialogue).
Thomas E. Lovejoy é um biólogo norte-americano que desistiu de pesquisar a África depois de se apaixonar pela Amazônia. Em 1965, conheceu a floresta ainda como aluno de doutorado. Quatorze anos depois, estabeleceu-se em Manaus, onde estudou a fragmentação de florestas, sendo responsável por formar muitos cientistas. Ele cunhou o termo “biodiversidade” para o mundo. Em 1991, foi a vez de John W. Reid visitar a Amazônia e decidir trabalhar por sua preservação. Seis anos atrás, os dois se uniram para lutar pela preservação das grandes florestas em todo o mundo. A ideia de Megaflorestas surgiu de um artigo publicado no jornal New York Times. Em 25 de dezembro de 2021, Lovejoy, ou Tom, morreu de câncer, quando o livro já estava no prelo. Agora, para marcar mais uma COP, sai a versão em português no Brasil, país que os dois pesquisadores adotaram.
Para Reid e Lovejoy, as discussões sobre mudanças climáticas correm o risco de produzirem uma “miopia de carbono”, que desfoca a importância da preservação das espécies em prol de um viés puramente econômico. “Grandes florestas são peças-chave num sistema planetário. As abelhas-de-orquídea possibilitam castanhas-do-pará, propagam cutias, retiram carbono do ar, devolvem água a ele, formam nuvens que geram chuva a centenas de quilômetros de distância, alimentando um igarapé onde um bagre, tendo migrado da foz do Amazonas, é capturado por uma lontra ou por uma pessoa, entregando sua proteína para dar vida à mata. A abelha faz tudo isso, e essas coisas fazem a abelha. Perder a floresta mudaria mais do que a leitura no termômetro”, ensinam os autores de Megafloresta.
A Amazônia sul-americana, e em especial a brasileira, guardam uma importância enorme nesse contexto. No ano 2000, havia 13,1 milhões de quilômetros quadrados de megaflorestas no planeta, sendo que 84% nas regiões tropicais e boreais. Mas, entre 2000 e 2016, 10% dessas vastas coberturas vegetais foram perdidas ou fragmentadas por madeireiras, queimadas, pela expansão de fazendas e ranchos e pelas indústrias de mineração, petróleo e gás.
Em setembro de 2020 a equipe da Amazônia Real realizou um sobrevoo na região sudoeste do Pará, nesta foto, fogo na Floresta Nacional do Jamanxim, município de Novo Progresso. (Foto: Marizilda Cruppe | Amazônia Real)
Os autores lembram que a Amazônia é uma “floresta de água”, por conter 20% da água fluvial do mundo, ser o abrigo estimado de mais de 1,3 mil espécies de aves, 3 mil espécies de peixes, 370 de répteis, 420 de anfíbios, 430 de mamíferos e 40 mil de plantas – números que eles fazem questão de dizer que são aproximados, porque ninguém até hoje foi capaz de dimensionar a biodiversidade amazônica. Mas esse patrimônio ambiental está ameaçado. “Hoje, quase todo o desmatamento na Amazônia emana das estradas. A Transamazônica e outras rodovias federais perfuram a floresta, principalmente ao sul e ao leste, onde a selva encontra as partes mais movimentadas do Brasil”, alertam Lovejoy e Reid.
O livro traz notícias boas e más sobre a Amazônia. Começando pela tragédia, os autores lembram que a floresta amazônica é a única dentre as cinco megaflorestas que vem sendo destruída pela expansão agrícola, impulsionada pelas estradas. “A pecuária e a agricultura respondem por cerca de 65% dos danos”, descrevem, comparando com os 23% nas florestas do Congo. Atentos à política local, alertam que o desmatamento brasileiro ganhou um grande aliado com assento no Palácio do Planalto, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Ele propunha flexibilizar o licenciamento ambiental, reduzir áreas protegidas, abrir novas estradas nas florestas e permitir que o agronegócio alugasse matas de povos indígenas para transformá-las em campos de soja. O desmatamento aumentou.”
A boa notícia é que “o Brasil mostrou ao mundo, pela primeira vez, que um país enfrentando enorme pressão por desmatamento poderia salvar sua megafloresta”. Isso ocorreu, contudo, no período de 2000 a 2012, quando houve uma redução de 80% do desmatamento. Prova de que políticas públicas, recursos para a fiscalização, mais unidades de conservação, não negar o financiamento internacional e impedir novas estradas na floresta tropical dão certo. O período acima contemplou os governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e parte do de Dilma Rousseff (PT). A incógnita atual, não respondida em Megaflorestas, é se o Lula cumprirá sua promessa na posse presidencial de zerar o desmatamento – o presidente deve viajar para a COP28 nos próximos dias.
Em todo o mundo, as comunidades indígenas detêm sob seu controle 36% das paisagens florestais intactas, o equivalente a 400 milhões de hectares. Para além da diversidade humana que as megaflorestas abrigam (Nova Guiné possui 1.250 línguas por quilômetro quadrado ante as seis no mesmo espaço dentro da Europa), os indígenas preservam as matas sem quase auxílio. Os autores narram a importância de Sydney Possuelo, indigenista que mudou radicalmente a forma de proteger os povos “não contatados”, mantendo-os isolados onde habitam, ou seja, partes remotas da Amazônia. Mas Reid e Lovejoy também reverenciam, em um número generoso de páginas, a história de Beto Marubo.
Beto Marubo, durante discurso na Univaja, em Atalaia do Norte em fevereiro de 2023. (Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil)
“Ele é um indígena marubo, que cresceu numa aldeia remota chamada Kumãya, no Vale do Javari. Quando tinha 17 anos, enviaram-no para a cidade mais próxima, a cinco dias de caminhada pela selva, para aprender português. Seus professores foram missionários católicos e os quadrinhos de Conan, o Bárbaro. Durante boa parte do tempo, Beto trabalhou para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na proteção dos povos isolados, inclusive dos korubo”, descrevem os autores, que passaram longas horas conversando com o líder indígena.
Outro brasileiro lembrado em Megaflorestas é o cofundador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Paulo Moutinho. Ao lado de Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental, e Steve Schwartzman, antropólogo do Environmental Defense Fund, Moutinho passou a defender nos encontros das COPs o conceito de “redução compensada” do desmatamento — ser pago para desmatar menos. O grupo foi sumariamente ignorado, até que em 2007, os governos da Costa Rica e da Papua-Nova Guiné argumentaram que conservar a floresta em países em desenvolvimento deveria ser bancado pelas nações ricas, em troca de créditos. Nascia assim o mecanismo do REDD, que posteriormente teve o sinal “+” incorporado ao acrônimo. No livro, o REDD+ é esmiuçado ao ponto de se discutir qual é o preço justo para incentivar alguém a preservar as florestas.
Já Ricardo Salles, que “nunca havia visitado a Amazônia antes de assumir o cargo”, é retratado no livro como o responsável por congelar o Fundo Amazônia. Desastroso ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Salles propôs redirecionar o Fundo Amazônia — 1 bilhão de dólares obtidos por meio de um acordo REDD+ com a Noruega e a Alemanha — para questões urbanas, não relacionadas à mudança climática. “Era uma provocação escancarada. Os doadores europeus se opuseram e o fundo foi congelado”, lembram.
Aula de economia ambiental, Megaflorestas se propõe nas cinco paisagens florestais a entender as dinâmicas que movem a preservação ou a destruição em curso. Partidários de que “se há uma floresta saudável nos arredores, a melhor opção é deixar a natureza fazer o trabalho dela sozinha”, os autores lembram que isso só será possível se estradas pararem de cortar as matas nativas, a exploração predatória for interrompida e o ciclo econômico se modificar novamente. Ou seja, é preciso que destruir as florestas deixe de ser lucrativo.
Como última lição, Lovejoy e Reid lembram que o Brasil perdeu 90 milhões de hectares de ecossistemas naturais em 35 anos e que boa parte do desmatamento se concentra no sudeste da Amazônia. Políticas recentes de reflorestamento, explica Paulo Moutinho, podem não ter eficácia diante de um cenário de secas mais frequentes, como as que ocorreram em 2010 e 2015 – o livro foi publicado sem tempo hábil para incluir a atual e maior seca dos últimos 121 anos.
Tal padrão torna o reflorestamento de alto custo uma proposta ainda mais duvidosa, ensinam os autores, já que o risco de incineração é reduzido por faixas de terra nua ao redor da floresta, chamadas de corta-fogo. Esse tipo de proteção custa anualmente de 50 a 160 dólares por quilômetro, um valor bastante elevado diante das dimensões da Amazônia. “Em vez de criar um grande programa que tente reflorestar milhões e milhões de hectares, vamos criar um grande programa para reabilitar pastagens degradadas e nelas cultivar alimentos, para que assim possamos parar de desmatar”, diz Paulo Moutinho, proposta registrada no livro.
A ideia é impedir que a agricultura predatória continue a avançar por sobre as florestas primárias. Ou como diz Marina Silva no prefácio: “Eis o apelo central feito por Reid e Lovejoy em Megaflorestas: mudar o uso que se fez e ainda se faz das florestas, numa nova visão para a relação da economia com a ecologia”.