08 Agosto 2022
“Construir a paz é abrir caminhos seguros para todas as pessoas que fogem da guerra, da fome. Construir a paz é parar de legislar para as multinacionais que saqueiam as terras, minerais, mares e reservas de água doce do sul global. Parar de provocar essas guerras, essas fomes, e apoiar as produções locais, social e ecologicamente responsáveis”, escrevem Amelia M. Lobo e María del Vigo, da Fundação Rosa Luxemburgo, em artigo publicado por El Salto, 01-08-2022. A tradução é do Cepat.
Na perspectiva feminista, a segurança é entendida não apenas como ausência de violência militar, mas também de violências econômicas, institucionais e sexuais. Violências que estão relacionadas entre si e cujo antídoto passa necessariamente pela valorização dos cuidados em seu sentido mais amplo.
Frente a um modelo de segurança nacional que busca proteger os interesses das elites econômicas ou as fronteiras, o feminismo pacifista defende que são as vidas das pessoas que precisam ser protegidas. É o que, com exemplos muito claros, explica uma das fundadoras do Centre d'Estudis per la Pau J.M. Delàs, Tica Font: “As pessoas devem se sentir seguras no sentido de que, aconteça o que acontecer, receberão um salário para poder continuar vivendo; que se ficarem doentes, terão acesso a remédios; que terão educação assegurada; que poderão viver em um ambiente seguro para sua saúde, sua alimentação e o seu lazer; segurança de participação social e política, sem medo de ser reprimidas”.
No entanto, o conceito hegemônico de segurança se refere exclusivamente à violência física. Por isso, os grandes meios de comunicação dizem que, na execução de um despejo, violentas são as pessoas que ficam entre a polícia e a família em situação de vulnerabilidade. Não o Corpo de Segurança do Estado arrombando a porta. Não o juiz que sentencia o despejo. Não a lei que não garante o direito à moradia. Não o banco ou os fundos abutres que lucram monopolizando a área de onde outros são expulsos.
Quando falamos de construção da paz, falamos de algo que vai muito além da simples ausência de guerra. Referimo-nos à paz positiva como um processo que também busca a justiça, a igualdade, o respeito à natureza e aos direitos humanos. Esta paz positiva se fundamenta no diálogo, na empatia, na solidariedade, no respeito pela diversidade e na interdependência.
O objetivo do sistema capitalista heteropatriarcal é que os poucos que o controlam continuem acumulando riqueza à custa do resto. Partindo dessa base, a grande ameaça a esse sistema é que os lucros desses monopolizadores diminuam. O sistema não protege as pessoas, mas o capital.
Todo o resto é teatro. Para que esqueçamos que somos explorados em todos os cantos do mundo para que pessoas como Jeff Bezos possam fazer excursões ao espaço, encham as nossas redes, as televisões, os parlamentos e as ruas com discursos de ódio, para tentar nos convencer de que o inimigo é o muçulmano, o negro ou o cigano. Para que detestemos as pessoas com menos recursos, as mais vulneráveis. Como se tivéssemos mais em comum com Bezos, Tesla ou Galán.
Nas palavras da cientista política e pesquisadora austríaca Judith Goetz, especialista em Ideologias e Políticas da Desigualdade, “onde a extrema direita do passado falava de Volkstod (morte do povo) ou Umvolkung (inversão de etnia), agora fala de Grande Substituição. Esta teoria da Grande Substituição, que para as pessoas que não vivem no ódio pode soar como uma conspiração marciana, tem um denso pano de fundo sistêmico.
Essa teoria da ultradireita mais fundamentalista considera que a cultura ocidental está em perigo devido à conjunção de dois fenômenos: migração e feminismo. A chegada - segundo eles - de imigrantes em massa (não brancos, não católicos) e o fato de as mulheres brancas terem cada vez menos filhos - segundo eles - por causa do feminismo, faz com que o futuro da Europa seja mestiço e não branco. O que - segundo eles - é um problema.
A jornalista e antropóloga Nuria Alabao acerta em cheio quando aponta que “essa teoria está por trás de todos os discursos racistas e antifeministas da ultradireita, e aciona uma dupla ofensiva, pois tem em sua mira mulheres e migrantes. Coincidentemente, as duas fontes de mão de obra barata”.
Portanto, esses discursos de ódio têm uma leitura totalmente material. “A extrema direita condensa em termos culturais as inseguranças vitais que são produzidas em consequência do avanço do neoliberalismo. Os sentimentos de incerteza e medo provocados pela deterioração das condições de vida são reinterpretados como crise de valores tradicionais: família tradicional, pátria, raça”, explica Alabao. Dessa forma, desviam o foco do problema real: o da necessidade de redistribuição da riqueza.
A justiça social é imprescindível para neutralizar esses discursos, enfrentar a ultradireita e alcançar uma paz positiva. Mesmo para alcançar a simples ausência de violência física, a justiça social é necessária. Os discursos de ódio têm por objetivo defender o status quo e a monopolização dos recursos pelas elites. As consequências para a maior parte da população são a discriminação, a espoliação, a exploração e, em muitos casos, a morte.
Por isso é tão urgente que alguns abandonem a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras. Se o presidente do Governo defende que uma operação policial que termina com mais de 20 pessoas assassinadas e empilhadas é um bom trabalho, esse presidente está defendendo que as vidas dessas pessoas não importam. Não valem. Incomodam.
Nós que defendemos os Direitos Humanos não podemos deixar de clamar que a segurança é outra coisa, e que outra gestão das fronteiras não só é possível, como também necessária. A celeridade dos tempos nos permite comparar o caso do massacre de Melilla com as medidas adotadas pela União Europeia, há apenas quatro meses, em relação às refugiadas ucranianas. Esse racismo institucional, essa necropolítica, é um substrato indispensável para enraizar o discurso de ódio da extrema direita.
Construir a paz é abrir caminhos seguros para todas as pessoas que fogem da guerra, da fome. Construir a paz é parar de legislar para as multinacionais que saqueiam as terras, minerais, mares e reservas de água doce do sul global. Parar de provocar essas guerras, essas fomes, e apoiar as produções locais, social e ecologicamente responsáveis. Construir a paz seria abolir a lei de imigração e igualar os direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas e cuidadoras aos do regime geral. Para dar alguns exemplos.
Devemos entender que a segurança do país, ou das ruas, não será alcançada com mais presença policial, nem com muros mais altos, mas com igualdade de direitos para todas as pessoas e garantindo acesso igualitário à cobertura de todas as necessidades básicas. Da mesma forma que o problema da moradia na Europa não é a ocupação, mas a especulação. O problema de segurança que nos ameaça não são as fronteiras, mas o progressivo desaparecimento dos serviços públicos.
A concepção de segurança que escolhemos é importante porque dela dependem as dotações orçamentárias estimadas pelos diferentes governos. Durante a primeira etapa da pandemia de Covid-19, quando não havia espaço nas UTIs - nem nos cemitérios -, quando tantas pessoas morreram por não ter acesso a um respirador, o Governo da Espanha tinha mais de 100 tanques Leopard 2 estacionados. Pelo valor de cada um desses tanques, poderiam ser adquiridos 40 respiradores. É apenas um exemplo.
Existem desafios à nossa segurança que não estão recebendo a necessária atenção midiática, política ou institucional, como o energético, o climático e o sanitário. Ao contrário, o único pacto internacional de investimento orçamentário é o da OTAN, que obriga todos os Estados membros a gastar pelo menos 2% de seu Produto Interno Bruto em armamento.
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Não haverá segurança sem justiça social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU