“Roleta-russa” climática: os desafios da justiça socioambiental e do planejamento transfronteiriço. Entrevista especial com Isabela Battistello Espíndola

"O Brasil se esqueceu que as mudanças climáticas estão no centro do debate geopolítico mundial", afirma a doutora em Geografia

Foto: José Cruz | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 21 Junho 2022


As projeções do IPCC sobre as alterações no regime climático das cidades terão implicações diretas na estruturação das cidades porque "muitas das infraestruturas urbanas (energia, transporte, saneamento etc.) já existentes não servirão ou não estarão aptas para enfrentar um clima diferente daquele para o qual foram projetadas. Isso traz consequências econômicas, sociais, ambientais e políticas bem grandes", disse Isabela Battistello Espíndola na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Entre as exigências a serem adotadas nas cidades em decorrência do novo regime climático, ela destaca a reelaboração dos planos diretores, com alterações na infraestrutura a fim de atender o crescimento populacional e sanar as injustiças socioambientais. "Eu diria que uma das principais questões que ainda não foi explicitamente contemplada pelos planos diretores é a injustiça climática. O plano diretor ainda não endereça a redução de desigualdades, justiça e demanda por direitos frente às mudanças do clima. E é imperativo que isso ocorra na construção de políticas, projetos e planos de adaptação e mitigação. O Acordo de Paris, por exemplo, incorpora esse debate e mostra que o desenvolvimento adotado pela nossa sociedade ainda é racialmente segregador e patriarcal".

 

Isabela Battistello Espíndola (Foto: Arquivo pessoal)


Isabela Battistello Espíndola é graduada em Relações Internacionais e Economia pela Faculdade de Campinas - Façam, mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar e doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente, trabalha na International Water Association em Londres como ponto focal para programas de capacitação e engajamento de jovens profissionais no setor da água.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Como as mudanças climáticas têm afetado as cidades? Quais são os principais problemas evidenciados?

 

Isabela Battistello Espíndola - As mudanças climáticas afetam as cidades de várias formas, seja direta ou indiretamente. Isso é um fato reconhecido e constatado por diversas organizações internacionais e pela comunidade científica. Pensar diferente disso é simplesmente adotar um posicionamento negacionista que não é adequado tanto para combater quanto para mitigar os efeitos dessas alterações do clima em nossa sociedade. É também uma forma de diminuir o ritmo de adaptação que precisamos adotar frente às mudanças climáticas. Isso nos deixa mais vulneráveis às ameaças advindas dessas mudanças.

 

Temos que reconhecer que os impactos e vulnerabilidades decorrentes das mudanças climáticas são diferentes não somente entre as cidades e suas respectivas populações, mas também ao redor do planeta como um todo. Os impactos e vulnerabilidades são, além disso, transfronteiriços, pois não se restringem aos limites territoriais e políticos dos países. E afetam as populações de modos distintos. Ouvimos falar de inundações, aumento da temperatura, ondas de calor crescente, incêndios florestais, tempestades tropicais, escassez de água e alimentos e secas. Ao mesmo tempo, notícias constatam desabamentos e outras calamidades em áreas urbanas. Praticamente uma “roleta russaclimática que mostra o quão difícil é prever exatamente o que vai acontecer e quando vai acontecer.

 

 

Se pensarmos que grande parte da população mundial vive em cidades e que elas concentram as principais atividades econômicas e políticas dos países, fica perceptível o quão importante é trazer esse debate sobre as alterações do clima para os processos decisórios de planejamento urbano. Ficar inerte frente a esse cenário é um risco gigantesco para qualquer cidade.

 

Renda universal e justiça socioambiental. Fundamentos econômicos, éticos e teológicos

 

 

IHU - Como os planos diretores das cidades são pensados e estruturados atualmente? Quais são os elementos prioritários considerados na elaboração dos planos hoje?

 

Isabela Battistello Espíndola - Os planos diretores municipais são umas das principais ferramentas técnico¬-jurídicos para desenvolvimento e planejamento urbano que temos no Brasil. O embasamento jurídico legislativo deles vem com o Estatuto da Cidade, lei federal n. 10.257 de 10 de julho de 2001, e com os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. Segundo o artigo 41 do Estatuto da Cidade, os planos diretores são obrigatórios para cidades:

 

I – com mais de 20 mil habitantes;

 

II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;

 

III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos pre¬vistos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal;

 

IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico;

 

V – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional;

 

VI - incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.

 

Assim, temos a exigência do Plano Diretor para municípios com mais de vinte mil habitantes e a necessidade de participação popular como pré-requisito para a elaboração do plano. Essa participação pode ser instituída via audiências públicas, conselhos ou pela criação de outros espaços decisórios participativos orientados pela ampliação dos tomadores de decisão.

 

Além da participação popular, o plano tem como elemento prioritário o desenvolvimento da cidade. Isso inclui discutir questões de ordenação do uso e ocupação do solo, habitação e transporte urbano (artigo 41, § 2º do Estatuto das Cidades), dentre outras medidas de atendimento das necessidades de população. O artigo 42 do Estatuto da Cidade determina que o Plano Diretor deverá conter no mínimo:

 

I – a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerada a existência de infraestrutura e de demanda para utilização;

 

II – disposições requeridas para o exercício do direito de preempção (art. 25), da outorga onerosa do direito de construir (art. 28), da permissão para alteração do uso do solo mediante contrapartida (art. 29), das operações urbanas consorciadas (art. 32) e da transferência do direito de construir (art. 35);

 

III – o sistema de acompanhamento e controle.

 

Além dos dois artigos mencionados, vale lembrar da Resolução n. 34 de 01 de julho de 2005. Ela prevê que o Plano Diretor deve ter, como conteúdo mínimo:

 

I – as ações e medidas para assegurar o cumprimento das funções sociais da cidade, considerando o território rural e urbano;

 

II- as ações e medidas para assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana, tanto privada como pública;

 

III- os objetivos, temas prioritários e estratégias para o desenvolvimento da cidade e para a reorganização territorial do município, considerando sua adequação aos espaços territoriais adjacentes;

 

IV- os instrumentos da política urbana previstos pelo art. 42 do Estatuto da Cidade, vinculando-os aos objetivos e estratégias estabelecidos no Plano Diretor.

 

Por fim, vale lembrar que o Estatuto da Cidade exige a criação de plano diretor para municípios suscetíveis a riscos climáticos desde 2012.

 

 

IHU - Quais são hoje os principais problemas e limites dos planos diretores das capitais brasileiras?

 

Isabela Battistello Espíndola - Um dos principais dilemas dos planos diretores recai sobre a própria participação popular, pois é um desafio envolver a população nos processos de desenvolvimento, implementação e definição desses instrumentos de política pública. E isso ocorre por vários motivos, desde escassez e fragilidade dos recursos humanos, distanciamento político da população, falta de interesse, comunicação falha, cultura política local, dentre outros. A população se torna uma mera receptora passiva das decisões e medidas acatadas.

 

O Brasil ainda carece de uma proatividade coletiva para a elaboração e definição de políticas, planos e estratégias desse instrumento de ordenamento e desenvolvimento urbano-territorial. O resultado são planos sem legitimidade, tecnicamente irrealizáveis, com participação popular desnivelada e que não recebem aprovação legislativa.

 

 

Outros problemas recaem na incapacidade técnica dos servidores das prefeituras, corrupção e nos altos níveis de judicialização no processo de elaboração do plano diretor.

 

Planejando as Cidades para o Mercado processos de gentrificação do território e a Nova Economia

 

 

IHU - No artigo intitulado "Cidades e mudanças climáticas: desafios para os planos diretores municipais brasileiros", você analisou planos diretores instituídos a partir de 2015 e, destes, somente um abordou as mudanças climáticas. Por que, na sua avaliação, as mudanças climáticas ainda são um tema pouco contemplado nas políticas públicas urbanas municipais e nas diretrizes dos planos diretores?

 

Isabela Battistello Espíndola - Conforme ressaltado no artigo, as cidades ainda se encontram em situação precária em relação à discussão global das mudanças climáticas. E isso é um risco quando o cenário atual mostra que as mudanças climáticas globais são generalizadas, rápidas e cada vez mais aceleradas. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas mostrou em seu último relatório que as cidades vão passar a enfrentar uma grande mudança em seus regimes climáticos durante o ano todo. Ou seja, muitas das infraestruturas urbanas (energia, transporte, saneamento etc.) já existentes não servirão ou não estarão aptas para enfrentar um clima diferente daquele para o qual foram projetadas. Isso traz consequências econômicas, sociais, ambientais e políticas bem grandes.

 

 

Mitigar e adaptar são duas palavras-chave quando falamos em respostas às mudanças climáticas. Esses processos são complementares. No entanto, traduzir isso para a esfera pública é algo extremamente difícil e leva tempo. Em geral, as cidades alegam falta de recursos e tempo. Primeiro, porque remodelar uma cidade tem um custo financeiro elevado e depende de capacidades técnicas que muitas vezes estão fora do alcance de uma cidade de pequeno porte. Segundo, porque a adaptação é lenta. E tempo é um fator crítico se compararmos com o ritmo acelerado das mudanças do clima. Terceiro, pela falta de suporte do governo federal para a implantação de políticas que tratam da questão climática.

 

Urgência Climática e os Riscos para o Brasil

 

No entanto, eu vejo muito mais como uma questão de interesse de quem está no poder. Falar de desastres não é muito atrativo, especialmente em ano de eleição. Falar de mudanças significativas para uma população tradicional também não é fácil. São poucos os políticos que têm um conhecimento real sobre as consequências das mudanças climáticas, e menor ainda é o número que assume a pauta e a traduz em sua agenda política. Infelizmente, é comum vermos uma omissão de governos em questões atreladas à agenda ambiental.

 

 

IHU - A cidade de São Paulo não foi contemplada no estudo apresentado em seu artigo, mas o texto menciona que tanto ela quanto "Rio de Janeiro, Recife, Florianópolis e Curitiba incorporam questões diretamente ligadas às alterações do clima em seus respectivos planos diretores". Em que consistem essas iniciativas?

 

Isabela Battistello Espíndola - As cidades mencionadas não foram incorporadas na análise pelo fato de que os seus planos diretores são anteriores a 2015. São Paulo é uma das pioneiras em iniciativas voltadas às mudanças do clima, possuindo planos, leis e arranjos institucionais locais voltados ao tema. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Curitiba possuem o inventário local de emissões de gases estufa como ferramenta de política pública relacionada às mudanças climáticas.

 

As quatros cidades também possuem planos de mitigação em vigor, sendo que os de São Paulo e Rio de Janeiro preveem parcerias intermunicipais. Florianópolis também possui planos de mitigação que consideram parcerias intermunicipais. Ademais, o plano do Rio de Janeiro é vinculado ao Plano Nacional de Controle de Qualidade do Ar (PRONAR), incorporando ainda práticas de educação ambiental. Com relação aos planos de adaptação, Florianópolis, São Paulo e Rio de Janeiro possuem diretrizes claras. São Paulo, Recife e Rio de Janeiro possuem leis municipais específicas para tratar das mudanças climáticas.

 

 

Os planos diretores de Curitiba, Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo trabalham com perspectivas locais em relação às mudanças climáticas globais. Curitiba, Recife e São Paulo possuem um comitê local sobre as mudanças climáticas.



IHU - No artigo, você menciona os seguintes dados e projeções: "55% da população mundial vivia em áreas urbanas em 2019"; "as previsões são que 68% da população mundial resida em áreas urbanas até 2050" e "projeta-se que o número de megacidades com mais de 10 milhões de pessoas seja de 43 até 2030, especialmente em países em desenvolvimento". De que modo os planos diretores das cidades precisam ser modificados levando em conta os efeitos e o enfrentamento das mudanças climáticas, mas também essa expansão prevista nas cidades?

 

Isabela Battistello Espíndola - Os planos diretores devem possuir diretrizes claras com relação à mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Muitas vezes isso implica em mudar a infraestrutura da cidade visando adaptar os setores de água, saneamento, energia e transporte, dentre outros, para enfrentar os impactos das mudanças do clima e, ao mesmo tempo, atender a demanda dessa população crescente. Precisamos de soluções inovadoras, pois as tradicionais podem contribuir para um agravamento dos problemas. É um processo que leva tempo e demanda investimentos contínuos para sua realização. Ressalto que independente do custo, essa modificação é necessária para aumentar a resiliência das cidades.

 

 

IHU - Quais diria que são as questões urgentes que precisam ser contempladas pelos planos diretores tendo em vista os efeitos das mudanças climáticas?

 

Isabela Battistello Espíndola - Eu diria que uma das principais questões que ainda não foi explicitamente contemplada pelos planos diretores é a injustiça climática. O plano diretor ainda não endereça a redução de desigualdades, justiça e demanda por direitos frente às mudanças do clima. E é imperativo que isso ocorra na construção de políticas, projetos e planos de adaptação e mitigação. O Acordo de Paris, por exemplo, incorpora esse debate e mostra que o desenvolvimento adotado pela nossa sociedade ainda é racialmente segregador e patriarcal.

 

A ação climática deve ser equitativa, incorporando mudanças sistêmicas que também visem reduzir a pobreza e as desigualdades em nossa sociedade. Isso envolve considerar as demandas dos setores da população mais marginalizados e em situação de vulnerabilidade. Sem essa transformação, as estratégias desenvolvidas pouco surtirão efeito nas raízes dos problemas originados em uma sociedade extrativista e capitalista dominante.

 

 

IHU - Qual sua percepção sobre como o tema das mudanças climáticas é compreendido e considerado pelos gestores públicos, mas também pela população em geral?

 

Isabela Battistello Espíndola - Depende muito do nicho que estamos falando. A juventude tem uma voz representativa nas questões climáticas e temos organizações internacionais com posicionamento forte e coerente com relação às mudanças climáticas. As redes de cidades, como a C40 (Cities Climate Leadership Group) e o Iclei (Governos Locais pela Sustentabilidade), também mostram que existe uma preocupação por parte dos municípios.

 

São vários os discursos, mas as ações adotadas ainda são insuficientes. Muitos dos compromissos adotados no âmbito global não são vinculantes, o que faz com que países simplesmente não os cumpram. O resultado é o cenário atual.

 

Eu vejo que precisamos de uma combinação de múltiplas estratégias em diferentes níveis para limitar o aumento da temperatura e adotar um desenvolvimento que seja resiliente ao clima. Ainda temos muito a fazer para nos tornarmos uma sociedade de emissões zero carbono. Precisamos de mudanças estruturais grandes que se sustentem para ter o resultado esperado. E isso tem que ser algo que vá além de um projeto político partidário. É algo que deve ser parte de um projeto nacional.

 

 

IHU - Em comparação com outros países, que balanço faz sobre a discussão global das mudanças climáticas no Brasil e seus efeitos nas políticas públicas?

 

Isabela Battistello Espíndola - O Brasil perdeu muito de sua voz e soft power na agenda ambiental global, apresentando um discurso incoerente com as práticas que têm sido tomadas internamente. Sob o governo de Bolsonaro, o Brasil viu a pior gestão, proteção e conservação de seus recursos naturais e ecossistema. Agora somos reconhecidos pelas nossas pedaladas climáticas, pelas altas taxas de desmatamento na Amazônia, por contribuições insuficientes e pelo despreparo dos principais líderes do país. A NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) brasileira é motivo de chacota nas reuniões internacionais. O Brasil se esqueceu que as mudanças climáticas estão no centro do debate geopolítico mundial.

 

Leia mais