22 Agosto 2024
“No recente aniversário do lançamento de duas bombas atômicas pelos Estados Unidos sobre o Japão, o prefeito de Nagasaki recusou-se a convidar o embaixador israelense para o evento, apesar das críticas que recebeu por essa decisão. Num contexto de crescente militarização, a memória ainda alimenta resistências aos massacres”.
A reflexão é de Daniel Gatti, em artigo publicado por Brecha, 16-08-2024. A tradução é do Cepat.
No recente aniversário do lançamento de duas bombas atômicas pelos Estados Unidos sobre o Japão, o prefeito de Nagasaki recusou-se a convidar o embaixador israelense para o evento, apesar das críticas que recebeu por essa decisão. Num contexto de crescente militarização, a memória ainda alimenta resistências aos massacres.
As bombas que foram jogadas há quase 80 anos sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki – a Little Boy em 6 de agosto de 1945 sobre a primeira e a Fat Man três dias depois sobre Nagasaki – mudaram para sempre a forma como concebemos as guerras. Desde então, saber-se-ia que um punhado de homens operando remotamente a partir de um avião poderia varrer do mapa uma cidade inteira e suas centenas de milhares de habitantes. E, com a potência certa, acabar com boa parte da vida no planeta. Décadas depois, viriam os drones e a inteligência artificial aplicados à guerra...
Às 8h15 do dia 6 de agosto de 1945, no exato momento em que a Little Boy, com sua carga de 63 quilos de urânio enriquecido, lançada de cerca de 10.500 metros acima do nível do mar pelo bombardeiro Enola Gay, explodiu sobre Hiroshima, dezenas de milhares de pessoas morreram queimadas. O mesmo aconteceria na manhã da quinta-feira, 9 de agosto, em Nagasaki, após a explosão do segundo artefato atômico, Fat Man, carregado com 6,2 quilos de plutônio 239 e transportado pelo bombardeiro Bockscar.
Nunca se soube exatamente quantas pessoas foram aniquiladas pelos artefatos concebidos pelo físico nova-iorquino Robert Oppenheimer, no Laboratório Nacional de Los Alamos, do Departamento de Energia dos Estados Unidos, no âmbito do chamado Projeto Manhattan. Aos mortos instantaneamente, estimados entre 120 mil e 160 mil nas duas cidades, se juntariam muitas dezenas de milhares nos anos seguintes, vítimas da radiação. O Departamento de Energia dos EUA disse mais tarde que em cinco anos as mortes “podem ter atingido ou mesmo ultrapassado os 200 mil, devido ao câncer e outros efeitos a longo prazo”. No Japão falava-se no dobro.
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Durante muito tempo – até hoje, na verdade – a narrativa dominante sobre as razões que levaram os Estados Unidos a jogar esta arma de destruição em massa tão fatal sobre as duas cidades japonesas baseou-se no fato de que era um “mal necessário” para acabar de uma vez por todas com uma Segunda Guerra Mundial que parecia interminável e forçar o Japão a seguir o caminho dos seus aliados, a Alemanha nazista e a Itália fascista, e render-se. O imperador Hirohito já tinha dado sinais do seu desejo de capitular pelo menos um mês antes e comunicou-o ao britânico Winston Churchill e ao estadunidense Harry Truman.
Num artigo escrito em setembro de 2002 para a revista francesa Le Monde Diplomatique, o escritor e jornalista britânico John Berger recordou a situação imediatamente anterior ao lançamento da Little Boy e da Fat Man: “Setenta das maiores cidades do Japão já tinham sido destruídas pelo fogo após os bombardeios de napalm. Em Tóquio, um milhão de civis estavam em campo aberto e 100 mil tinham morrido. Tinham sido – para usar a expressão do general Curtis Lemay, responsável por estas operações de bombardeamento com fogo – ‘assados, cozidos e cozinhados até a morte’”.
“O filho e confidente do ex-presidente Franklin Roosevelt, prossegue Berger, declarou que o bombardeio deveria continuar ‘até que aproximadamente metade da população civil japonesa fosse eliminada. No dia 18 de julho, o imperador do Japão telegrafou para o presidente Harry S. Truman, que sucedeu a Roosevelt, para mais uma vez pedir a paz. Sua mensagem foi ignorada. Poucos dias antes do bombardeio de Hiroshima, o vice-almirante Arthur Radford vangloriou-se: ‘O Japão acabará sendo um país sem cidades, um povo de nômades’”. No fim de 1946, uma investigação sobre estes ‘bombardeios estratégicos’ realizada nos próprios Estados Unidos admitiu que os ataques nucleares não eram necessários para a rendição japonesa.
Washington tentou durante algumas semanas estabelecer a ideia de que os bombardeamentos tinham como objetivo principal alvos militares. “Há 16 horas – limitou-se a comunicar, na noite do dia 06 de agosto de 1945, o presidente Truman –, um avião estadunidense lançou uma bomba sobre Hiroshima, uma importante base militar japonesa”. Alguns dias depois, Leslie Groves, general que serviu como diretor militar do Projeto Manhattan, chegou a dizer ao Congresso do seu país que a radiação de plutônio e de urânio não gerava “nenhum sofrimento excessivo” e que, em qualquer caso, “proporcionava” às suas vítimas “uma forma muito agradável de morrer”.
Os primeiros testemunhos sobre o horror vieram em setembro de 1945, um mês depois dos ataques, através do jornalista australiano Wilfred Burchett, que visitou um hospital de campanha montado às pressas em Hiroshima para cuidar dos feridos. Logo se acumulariam. E também se conheceriam os meandros da fabricação da bomba, os debates que acompanharam o processo – o conselho de Albert Einstein a Oppenheimer para não prosseguir com o projeto: “Agora é a sua vez de lidar com as consequências da sua conquista”; o subsequente arrependimento de Oppenheimer e sua acalorada discussão com Truman: “Está com sangue nas mãos” – e os detalhes da formalização dos primeiros acordos entre grandes empresas industriais (Monsanto, DuPont) e o Pentágono que dariam origem ao complexo industrial militar estadunidense. E, fundamentalmente, as verdadeiras razões por trás do lançamento da Little Boy e da Fat Man. Entre elas, que a operação ajudou os Estados Unidos a estabelecer-se definitivamente como potência dominante perante os seus inimigos, mas também perante os seus aliados. A “arma absoluta”, como Truman a chamou, seria a partir de então uma pedra angular da diplomacia de Washington.
“Quando, em 11 de setembro de 2001, vi na televisão as imagens [dos ataques às Torres Gêmeas pela Al Qaeda], imediatamente Hiroshima me veio à mente”, escreveu Berger, que no final da Segunda Guerra Mundial já era maior de idade. Parecia ao britânico que, para além das diferenças notáveis, “de escala e de contexto”, entre um acontecimento e outro, um traço os unia: o fato de terem marcado com fogo o início e o fim de uma era. “As bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki anunciaram que os Estados Unidos estavam se tornando a potência militar suprema do mundo. O ataque do 11 de setembro anunciou, por sua vez, que esta potência já não gozava da invulnerabilidade no seu próprio território.
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Os Estados Unidos foram o primeiro e único país a atacar com bombas nucleares. E os japoneses, os primeiros a testar seus efeitos na própria pele. Não os únicos, é verdade. Quase uma década depois de Hiroshima e Nagasaki, em 1954, a potência estadunidense realizou um teste no Atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, e detonou uma bomba de hidrogênio (chamada Castle Bravo) 1.000 vezes mais potente que a de Hiroshima. Bikini estava desabitado, mas não outros atóis situados entre 150 e 200 quilômetros dali, cujos habitantes foram atingidos pela nuvem radiológica; mas também a tripulação de barcos de pesca japoneses que navegavam por aquelas águas. Poucas pessoas em comparação com as centenas de milhares nas duas cidades emblemáticas. O suficiente para provar o horror.
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Com o passar dos anos, vários outros países conseguiram fabricar as suas próprias armas nucleares e tornaram-se árbitros de um eventual desastre final. Entre elas, as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. Enquanto durou a Guerra Fria, esse apocalipse, produto da vontade humana, ficou restrito ao quadro de um confronto que teve as suas regras, as suas negociações e os seus tratados. Depois que o Muro de Berlim caiu, esse quadro desapareceu. Antes e depois, ao clube dos detentores de armas atômicas juntaram-se atores considerados no Ocidente como “Estados falidos”, pouco confiáveis ou membros do Eixo do Mal e outros que são vistos com bons olhos: Coreia do Norte, Paquistão e Índia.
Washington suspeita que o Irã também já faça parte desse grupo ou esteja prestes a integrá-lo. Israel nunca anunciou se pertence ou não ao grupo restrito, mas os dados que efetivamente o colocam nele são bastante confiáveis. A ONG Nuclear Threat Initiative, sediada em Washington, estimou em abril passado que Israel teria um mínimo de 90 ogivas nucleares e reservas de plutônio suficientes para fabricar entre 170 e 278 armas nucleares. Um dos membros do atual governo israelense ameaçou, em novembro do ano passado, varrer do mapa a Faixa de Gaza com uma bomba atômica. Mas Israel é um dileto amigo do Ocidente no Oriente Médio.
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Todos os anos as autoridades municipais de Hiroshima e Nagasaki recordam o desastre com eventos para os quais costumam convidar delegações dos países com os quais o Japão mantém relações diplomáticas. Neste ano de 2024, por ocasião do 79º aniversário dos bombardeios, em Nagasaki a cerimônia foi especial: o prefeito da cidade, Shiro Suzuki, decidiu não convidar o embaixador de Israel. Queria que ocorresse numa “atmosfera pacífica”, e a presença israelense num evento que “tem como principal objetivo opor-se à guerra” não seria a mais adequada num momento em que o país liderado por Benjamin Netanyahu está cometendo um massacre planejado na Faixa de Gaza. Suzuki, no entanto, convidou uma representação da Autoridade Nacional Palestina para a cerimônia.
Em solidariedade a Israel, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Canadá e Alemanha (membros, juntamente com o Japão, do Grupo dos Sete) decidiram não participar do evento com representantes de “alto nível”, como no caso da França, ou simplesmente não participar. “Está politizado”, disse o embaixador dos EUA em Tóquio, Rahm Emanuel. Paris comentou que a ausência de Israel era “lamentável e questionável”. A representação do conjunto da União Europeia desculpou-se com “problemas de agenda” por não comparecer e a Austrália também não enviou delegação. O Reino Unido lamentou que a decisão do prefeito de Nagasaki “faça uma comparação infeliz e enganosa entre Israel e a Rússia e a Belarus”, os outros dois países que foram excluídos dos eventos comemorativos desde a invasão da Ucrânia no início de 2022.
O prefeito de Hiroshima, Kazumi Matsui, não seguiu os passos de seu colega de Nagasaki. Ele convidou o embaixador israelense e não os palestinos. Mesmo assim, no seu discurso falou da “necessidade de um cessar-fogo imediato em Gaza”.
Nas duas cidades existe um forte movimento pacifista. Em Hiroshima, houve protestos contra a decisão do prefeito Matsui de incluir o embaixador israelense na cerimônia de 6 de agosto. Descendentes dos hibakusha, sobreviventes dos atentados de 1945, participaram dos dois eventos. Também participaram alguns hibakusha. Entre eles, Kikuyo Nakamura, mulher de quase 100 anos que tinha 21 anos quando a bomba atômica foi jogada sobre Nagasaki, que disse à publicação online da Al Jazeera AJ+ que chora todos os dias “pelo povo de Gaza”, pelas crianças que ali morrem por causa das bombas, das doenças e da fome e por todos aqueles que fogem sabe-se lá para onde.
Desde 1947, de acordo com o Artigo 9 da sua Constituição, “o povo japonês renuncia para sempre ao uso da guerra como um direito soberano da nação e à ameaça ou uso da força como meio de se resolver disputas internacionais”. As constituições costumam ser letra morta, e há muitos anos que o país do sol nascente está se rearmando ao nível dos mais famosos. De acordo com o índice Global Firepower, que em seu site se define como “um sistema que analisa anualmente as Forças Armadas dos países pela quantidade e variedade de equipamentos que possuem”, em 2023 o Japão já contava com o oitavo exército mais poderoso do planeta, e a tendência é que continue subindo na escala.
Os gastos militares vêm crescendo continuamente há 12 anos, quando o governo do primeiro-ministro liberal Shinzō Abe, assassinado em 2022, decidiu que o Japão deveria dar um salto nesta matéria, o mesmo que a Alemanha, outro país derrotado em 1945, acabou fazendo algum tempo depois, e que supostamente haviam banido a ideia de participar de novas guerras.
No último orçamento aprovado pelo parlamento japonês, o item da defesa foi um dos que mais aumentou, chegando a 50 bilhões de dólares, o maior de sua história. A intenção do governo de Fumio Kishida, outro liberal, é que até 2027 o orçamento da defesa represente 2% do PIB, em sintonia com os planos que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estabeleceu para os seus membros. Fazer isso colocaria o Japão entre as cinco potências com os maiores gastos militares.
O Japão não é membro da OTAN, mas no ano passado decidiu abrir um escritório da aliança em Tóquio e “intensificar as relações entre os dois lados”, segundo Kishida. A ideia do primeiro-ministro é colocar Tóquio cada vez mais sob a asa protetora dos Estados Unidos e dos seus aliados, e é para aí – e no sentido da crescente militarização – que se dirigem a Estratégia Nacional de Segurança, a Estratégia Nacional de Defesa e o Programa de Aquisições de Defesa, adotados no fim do ano passado.
Até há pouco tempo, o enfoque dominante da questão era defensivo e se limitava aos limites do seu próprio território. Não se enquadrava nos objetivos de Washington, que em troca da sua “proteção” quer que o Japão se envolva cada vez mais nos seus planos para “conter” a China e aumentar a sua assistência militar a Taiwan, Coreia do Sul e a outras nações aliadas da região Ásia-Pacífico.
Há um ano, Kishida participou de uma reunião tripartite em Washington com os presidentes dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, Joe Biden e Yoon Suk-yeol, na qual foram discutidas estas questões. Com os Estados Unidos, o Japão faz parte de outra aliança, a Quad, da qual também fazem parte a Austrália e a Índia, e que também visa conter Pequim. Em 2023, Kishida agradeceu aos Estados Unidos “por tudo o que fizeram” pelo seu país desde 1945. Foi no aniversário anterior do lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki por aviões da Força Aérea americana. Há quem fale da síndrome de Estocolmo.
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Memória do fogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU